Ao agronegócio tudo é permitido

Por Marcelo Medeiros Fonte Rets Coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Frei Jean Marie Xavier Plassat é um dos maiores especialistas no assunto do Brasil. Já viajou por diversas partes do país acompanhando ações contra uma prática que, infelizmente, ainda é presente em vários estados. Em entrevista, o religioso é pessimista em relação ao fim desse crime no Brasil em um curto espaço de tempo.

Por Marcelo Medeiros
Fonte Rets

Coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Frei Jean Marie Xavier Plassat é um dos maiores especialistas no assunto do Brasil. Já viajou por diversas partes do país acompanhando ações contra uma prática que, infelizmente, ainda é presente em vários estados. Em entrevista, o religioso é pessimista em relação ao fim desse crime no Brasil em um curto espaço de tempo.

Ele lamenta a demora do Legislativo em votar a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que, entre outras medidas, aceleraria a desapropriação de terras onde fosse registrado trabalho escravo. De acordo com Plassat, a lentidão se deve às ações da bancada ruralista, grupo de deputados contrários à Reforma Agrária e defensores da grande propriedade rural.

E, para piorar a situação, se o Congresso não parece mobilizado para aprovar a PEC, o governo também não demonstra muita pressa, apesar do compromisso assumido com o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. “A impressão é que somente alguns setores do Governo, sem influência decisiva e peso suficiente, têm torcido a favor da PEC”, diz. E critica a influência do agronegócio no governo: “O peso do setor do agronegócio exportador na definição da política deste governo é desmedido: considerado salvador da pátria, tudo vale e a ele tudo é permitido”. E, por fim, diz não acreditar em uma melhoria do quadro atual, ao menos este ano. Leia abaixo a entrevista.

Recentemente, o relator da PEC 438/2001, conhecida como PEC do trabalho escravo, declarou não acreditar na aprovação da proposta ainda este ano. A atitude do Congresso em relação à proposta o surpreende?

Frei Xavier Plassat – Não, absolutamente não. Há mais de dez anos que essa PEC se arrasta no Congresso, sempre postergada, sacrificada a cada vez que os sucessivos governos precisam dos votos da bancada ruralista para aprovar alguma outra matéria. A bancada ruralista é bem representada e nela os porta-vozes do setor que ainda acha natural manter os peões trabalhando \’à maneira antiga\’, como disse certa vez o senador João Ribeiro (em discurso no Senado em homenagem a João Rosa, fazendeiro do Tocantins, que chegou a cometer suicídio, semanas depois de uma operação de resgate de escravos na sua fazenda).

O governo parece interessado em aprovar a PEC?

Frei Xavier Plassat – Tambem não, apesar do compromisso formal assumido pelo Governo Lula em 13 de março de 2003, quando lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. A impressão é que somente alguns setores do Governo, sem influência decisiva e peso suficiente, têm torcido a favor da PEC: o ministro do Desenvolvimento Agrário, o ministro do Trabalho e o secretário especial de Direitos Humanos, que em algumas ocasiões se manifestaram explicitamente sobre o assunto.

Dos outros, só ouvimos o silêncio. Nem a chacina de Unaí [cidade mineira onde quatro fiscais do Ministério do Trabalho foram assassinados enquanto faziam ação de combate à escravidão em 2004] e a comoção que provocou conseguiram mudar o quadro. Na época foi preciso cobrar do governo que incorporasse a matéria da PEC na pauta da sessão extraordinária. Espontaneamente a idéia não lhe tinha vindo.

Desta vez, a pauta da sessão extraordinária também não comporta essa matéria. O peso do setor do agronegócio exportador na definição da política deste governo é desmedido: considerado setor salvador da pátria, tudo vale e a ele tudo é permitido. A opção do governo foi por este modelo de desenvolvimento \’exógeno\’, de enorme custo social e ambiental.

Como o senhor vê a mobilização do governo para a real erradicação do trabalho escravo no país?

Frei Xavier Plassat – Como mencionei, há alguns setores do governo e do Estado que são realmente mobilizados, mas deixou de ser considerado realmente como a meta presidencial que havia sido definida na época do lançamento do Plano. Prova disso é a redução orçamentária decidida pelo Ministério do Planejamento em relação às demandas da Fiscalização do Trabalho. Faltando somente 12 meses para ‘erradicar’ o trabalho escravo, os recursos orçamentários do MTE para o combate a esse crime, atualmente em apreciação no Congresso, apresentam um recuo de 20% (de R$ 3.426.868,00, em 2005, para R$ 2.845.000,00, em 2006). O número de auditores fiscais do trabalho solicitados para o novo concurso de 2006 foi de 300, mas o aprovado no cálculo orçamentário ficou em 100 – um número que não compensa nem a metade das saídas naturais do quadro funcional. E que, depois de muitos anos de cobrança para um reajuste, os custos operacionais da fiscalização terão que incorporar a elevação em 50% do valor das ainda precárias diárias pagas aos fiscais no exercício de suas missões.

É paradoxal cortar na fiscalização, inclusive porque a fiscalização traz de volta aos cofres públicos um bom dinheiro. Entre os setores mobilizados vemos particularmente, além da SEDH (que priorizou o apoio a vários projetos de prevenção e combate), a Fiscalização Móvel (mas nem em todas as Delegacias Regionais do Trabalho); o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que entrou em 2005 com um plano específico de combate ao trabalho escravo; o Ministério Público do Trabalho e setores da Justiça do Trabalho; alguns setores do Ministério Público Federal. Entre os pouco mobilizados continua a Polícia Federal, que até hoje não tem nem orçamento próprio para esse combate específico.

De acordo com a bancada ruralista, há um grande preconceito em relação aos produtores rurais. O senhor acredita na existência de interpretações enganosas em relação aos proprietários?

Frei Xavier Plassat – Acredito que as organizações ruralistas teimam ainda a vender seu tradicional discurso negacionista, apelando para argumentos insustentáveis para tentar derrubar as evidências mostradas diariamente pela fiscalização: dizem que as normas impostas no campo são abusivas e importadas da realidade urbana, dizem que esta é a maneira de trabalhar no campo, que os peões vivem em casa realidades ainda mais cruéis. Ou seja, numa demonstração de cinismo impressionante, tentam justificar o tratamento que dão pela miséria que “\’já” prevalece entre as vítimas (quando a miséria evidentemente se perpetua graças a essas práticas de dominação secular). Cegueira suicida! Quantas matérias da BBC ou do Daily Telegraph [jornais ingleses que recentemente fizeram reportagens sobre a existência de trabalho escravo no Brasil] serão necessárias para acordar nossos exportadores de carne bovina e levá-los a tomar a iniciativa de mudar?

Poucos setores produtivos são tão cegos. Porém já está mudando: a Maggi anunciou em dezembro passado que vai assinar o Pacto Nacional contra a Escravidão proposto pelo Instituto Ethos e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir do estudo da cadeia produtiva do trabalho escravo realizado pela ONG Repórter Brasil. Interessante para um grupo cujo maior expoente – o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi – costumava dizer até agora que nunca encontrou escravidão no MT.

A PEC sofreu uma emenda que inclui as áreas urbanas em seu espectro, desapropriando propriedades onde seja constatado trabalho escravo. Acredita que isso seja positivo?

Frei Xavier Plassat – Foi pura e esperta artimanha feita pela bancada ruralista. Não se sabia de tanta preocupação dela até então para com os milhares de bolivianos explorados na confecção paulista. Claro que há um enorme problema de escravidão urbana, que, inclusive, é insuficientemente investigado. Mas este outro universo da superexploração apresenta especificidades que em nada permitem que se possa confundi-lo numa mesma política de combate ou de repressão: o contexto (urbano), as vítimas (imigrantes ilegais), o sistema econômico envolvido (pequenas unidades de confecção) etc. Essa inclusão só tinha como meta jogar mais areia na mecânica para ganhar no mínimo mais dois anos de discussão.

Outra emenda foi a adição de um termo que garante que haja desapropriação apenas depois da sentença ser julgada. O quanto isso pode dificultar a desapropriação de terras no futuro?

Frei Xavier Plassat – Obviamente, quando se considera que até hoje só uma ínfima parcela das ações penais resultando de flagrantes escravistas tem prosperado até uma eventual condenação (só tivemos duas condenações a prisão até hoje), por indeterminação até da competência para julgar, parece bastante surrealista a idéia de ter que esperar o trânsito em julgado como condição para confiscar uma terra que foi instrumento do crime. Na Justiça de Trabalho, porém, sentenças têm sido conseguidas com celeridade nos últimos tempos.

Sempre achei que o princípio do confisco da terra é mais uma questão simbólica, uma linha divisória que serve para distinguir os que na escala de valores têm a propriedade em primeiro lugar e os demais, que têm a dignidade neste primeiro lugar. Vale lembrar que o artigo constitucional que prevê o confisco de glebas flagradas com plantio de psicotrópicos nunca veio a ser aplicado até hoje.

Um ano de eleição pode acelerar as ações contra o trabalho escravo?

Frei Xavier Plassat – Provavelmente não, sobretudo no contexto de desgaste que o governo sofreu ultimamente.