Movimentos sociais continuarão pressionando, diz especialista
Fonte Valor Econômico
Leia abaixo a entrevista com Marco Antonio Mitidiero, professor da Universidade Federal da Paraíba e autor da tese de mestrado “As Contradições da Luta Pela Terra: o caso do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST)”.
No final de sua tese, o senhor diz que a chegada ao poder do PT amenizaria as táticas do MLST. Por que isso não aconteceu?
Marco Antonio Mitidiero: Esses movimentos atuam de forma autônoma, embora tenham nascido juntos e na mesma época que o PT. Há uma identidade com a esquerda, mas não são a mesma coisa e também tem seus conflitos. Claro que há diálogo, mas atuação deliberada entre partido e movimento, não. Fiz o prognóstico de que o processo de Reforma Agrária seria mais veloz neste governo. Achava que os movimentos atuariam mais na esfera política e as ocupações diminuiriam. Você pode ver que errei.
Por quê?
Mitidiero: O governo Lula nessa área é um fracasso. O número de assentados é menor do que o do governo Sarney.
Por que o governo de um partido que, historicamente, carregou essa bandeira fracassou?
Mitidiero: Há duas razões. O grande poder que a bancada ruralista tem no Congresso é um. São fortíssimos. Veja o resultado da CPI da Terra. O relatório aprovado não discute questão agrária, apenas criminaliza os sem-terra. A oligarquia rural ainda é muito forte. Além disso, a assessoria agrária do PT, que gira em torno do José Graziano, parte de uma concepção diferente da dos movimentos sociais. Acham que reforma agrária é coisa do passado, que serve apenas como paliativo para alguns focos de conflito, áreas com bolsões de miséria. Graziano é marxista e Marx achava que o campesinato iria acabar e que só existiriam duas classes: proletariado e burguesia. Esse foi o prognóstico que Marx deu. Se o campesinato vai acabar, para que Reforma Agrária?
Por isso Bruno Maranhão, em sua tese, diz que a esquerda não se preparou para a Reforma?
Mitidiero: Justamente. Devido a essa leitura dogmática contra o camponês. “O campesinato é arcaico, tradicional, atrasado e vai deixar de existir”. E a história advoga contra, porque todos os movimentos revolucionários da América Latina foram camponeses. O proletariado nunca fez a revolução.
Então a diferença entre o que os movimentos sociais querem e o que o governo faz é ideológica?
Mitidiero: O que os movimentos querem é a reestruturação fundiária brasileira. O fim dos latifúndios e da propriedade privada da terra.
O senhor acha que a forma como o PT chegou ao poder, aliando-se a partidos tradicionalmente contra a Reforma Agrária, prejudicou?
Mitidiero: Sim. A gama de alianças que o PT travou para estar no poder é um impedimento. Exemplo disso é o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ícone da luta contra a Reforma Agrária. Até quem é mais de esquerda, como Graziano, tem concepção ideológica contra. Por isso os movimentos continuaram fortes.
E apareceram fortemente na semana passada….
Mitidiero: Sim. Porque a Reforma Agrária não se realiza. Foi um ato de baderna, de quebradeira? Sim. Mas eles existem e estão descontentes. Aquelas famílias que estavam lá são acampadas, moram embaixo de lona e estão sujeitas a toda sorte. São vítimas de violências também. Ano passado foram assassinados 73 sem-terra. A sociedade está muito brava porque eles quebraram o Congresso, mas quebrar computador é uma coisa, matar é outra. No começo do ano mataram três lideranças do MLST de Pernambuco no mesmo dia. Vi a foto. O rapaz ficou sem cabeça. Tomou um tiro de calibre 12 no rosto e era pai de família.
Há diferenças entre o MLST e os outros movimentos?
Mitidiero: Sim, mas pequena. O MLST, como é pequeno, tem uma estrutura de poder mais centralizada em lideranças nacionais, como o Bruno Maranhão. Isso não quer dizer que sejam ditadores. Centralizam para determinar. É um núcleo estratégico que pensa o movimento. Diferente do MST, que é hoje o maior movimento do planeta porque uniu-se na adversidade. É extremamente autônomo e descentralizado. Não é o Stédile que pensa as ações. A base tem autonomia.
Quais os objetivos da invasão do Congresso?
Mitidiero: O MLST é um movimento pequeno e aquilo foi uma ação para dizer à sociedade: existimos. Hoje o Brasil inteiro sabe quem eles são. Outro aspecto é que estamos em período eleitoral, em que a máquina pública pára e, conseqüentemente, param os processos de desapropriação, de liberação de recursos e de assentamento. O ato teve esse caráter de sacudir a máquina pública.
A invasão favorece a oposição?
Mitidiero: Com certeza. Foi uma atitude infeliz porque causou repúdio tanto da administração pública quanto da sociedade. E a oposição agora vai tentar fazer a correlação Lula-Bruno Maranhão.
É certa a correlação?
Mitidiero: De forma alguma. Fiquei trabalhando com eles três anos e não há nenhuma relação do MLST com Lula e o PT. Se houvesse, seria um suicídio. Por mais que o PT venha tendo atitudes burras e mirabolantes, creio que eles não comungariam de uma ação dessas para lesar seu próprio governo. Tenho certeza de que os petistas estão com o cabelo em pé.
Então o MLST sabia do prejuízo político que isso poderia causar.
Mitidiero: Disso eu tenho certeza absoluta. Mas resolveram assumir seu discurso de radicalizar.
Se o PSDB voltar ao poder, pode-se dizer que a pressão será maior?
Mitidiero: Os movimentos sociais continuarão pressionando enquanto não existir uma política pública sistemática de Reforma Agrária. Eles pensam apartidariamente. Quem não realizar Reforma Agrária pode ter a certeza de que sofrerá pressões.
Quem, afinal, foi melhor na questão agrária? Quais os prós e contras de Lula e FHC nessa área?
Mitidiero: Na academia chamamos a era FHC como a da luta pela terra e não pela Reforma Agrária. Porque Reforma Agrária é política pública espontânea e sistemática, e isso não ocorreu. Assistimos naqueles oito anos a eficácia da pressão dos movimentos sociais. FHC assentou mais porque foi refém dos movimentos sociais. No entanto, desenvolveu muitas ações contrárias. Veiculava propaganda enganosa pela televisão. Tinha uma, hilária, que falava de cadastramento pelos Correios. Você ia aos Correios, inscrevia-se e eles te chamavam para dar terra. Teve também medida provisória contra as ocupações. Houve ainda o apoio claro do governo a outros movimentos, que não o MST. Mesmo assim, a luta pela terra foi eficaz e houve muitos assentados. Mas de uma forma precária. Acho que 80% dos assentamentos não tinham energia elétrica, 70% não tinham água encanada. Literalmente, as famílias foram jogadas na terra. É o que chamamos de favelização dos assentamentos. Já o governo Lula foi uma decepção pela expectativa que se criou. Esperávamos um processo de transformação da estrutura fundiária. Chegou a haver a elaboração de um plano nacional feito por cerca de 40 pesquisadores e intelectuais que há muito estudam a questão agrária. Isso foi por água abaixo. Acabou que Lula também ficou refém dos movimentos. Os assentamentos estão sendo feitos onde já existia acampamento. Lula acabou por assumir um discurso de revitalização dos assentamentos do FHC. Houve também muitas liberações para esses assentamentos. O resultado disso a gente ainda vai ver.
Esses grupos de luta pela terra querem o poder para fazer a Reforma Agrária ou basta a Reforma Agrária?
Mitidiero: Não são movimentos que queiram tomar o poder. Nenhum deles tem esse discurso. Fazem parte de um movimento nacional da esquerda que reclama pela transformação do país.
Mas falam constantemente em reestruturação fundiária e no fim dos latifúndios. Sem tomar o poder, isso é difícil de ocorrer.
Mitidiero: Por isso houve o entusiasmo quando Lula chegou ao poder. Claro, já sabiam que ele não ia acabar com a propriedade privada. Mas se pensou que iria desapropriar latifúndios improdutivos como nunca. E não aconteceu. Então, eles revitalizam esse discurso anti-burguês. Tem que entender que eles fazem parte de um movimento mundial em que ainda persiste a utopia de um mundo mais igualitário. Ocupam terras, mas são contra a Área de Livre Comércio das Américas, por exemplo.