Do Tropicalismo à Indústria Cultural
Por Francisco Alambert
Fonte Jornal Brasil de Fato
O filósofo alemão Walter Benjamin afirmou que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. De barbárie o nosso mundo está cheio. E também de “cultura” para todos os gostos, sobretudo “cultura” compreendida como “negócio” de alguém.
Por isso outro pensador marxista, o estadunidense Fredric Jameson, afirmou que a lógica do capitalismo tardio (ou pós-moderno) é ela mesma “cultural”. Assim, em qualquer processo de emancipação cultural ou política, a “cultura” deve resistir tanto a si mesma (a seus aspectos conservadores e confirmadores do sistema do poder opressivo) quanto à violência que está na base de sua formação e na forma de sua permanência.
Mas em qual tradição histórica a nossa bárbara modernidade cultural, bem como a forma de administrá-la, está incluída? O Tropicalismo, a última das grandes “vanguardas nacionais”, e sua forma de conceber a cultura é uma dessas “tradições” que ainda persiste nas condições atuais da política cultural e em seus impasses contemporâneos.
Surgido durante o pior período da ditadura militar, o Tropicalismo se alimentou de idéias vindas do Modernismo de 1922, da vanguarda concreta e neoconcreta dos anos 1950, dos movimentos de contestação do contexto de 1968, etc. Mesmo perseguidos pela ditadura, os êxitos dos tropicalistas em todos os campos são notáveis. Tanto que mesmo depois do desaparecimento de todas as condições históricas de seu surgimento, podemos dizer que a “Verdade Tropical” se tornou a ideologia cultural dominante no Brasil: um de seus principais pensadores é o atual ministro da Cultura de um governo que era para ser “de esquerda”; e o outro, Caetano Veloso, recentemente chegou ao pódio máximo que um artista do sistema internacional pode chegar, a “cerimônia” do Oscar. Ou seja: os próceres da vanguarda dos anos 60 estão hoje no topo tanto da Indústria Cultural quanto da burocracia estatal da cultura.
Nos círculos do poder
Desse modo, a herança da vanguarda tropicalista se assenta nos círculos do poder contemporâneo. Por um lado, seu aspecto contestador dos costumes da vida burguesa da periferia do capitalismo desapareceu. Por outro, sua feroz crítica aos pressupostos da esquerda cultural, sempre acusada de “patrulhamento” (crítica que em seus piores momentos pouco se diferenciava da histeria anticomunista da própria ditadura) e sua apologia da Indústria Cultural como uma realidade tanto inescapável quanto atualizadora, permitiram a sobrevida da “forma tropicalista” e garantiram sua escalada vertiginosa ao topo do poder.
Assim, o mundo “pós-moderno”, neoliberal, anti-revolucionário, multicultural (e demais ideologias oficiais) convive com uma versão quarentona do Tropicalismo. Entender como se dá a dialética dessa “tradição” (agora tanto razão de Estado quanto centro da Indústria Cultural) e dessa “modernidade” é central para se compreender a questão cultural no Brasil contemporâneo, sobretudo no que tange à possibilidade de revitalização de uma cultura de “resistência”.
No Brasil de hoje, a máquina da produção cultural vive espremida entre a falta de recursos do Estado dinamitado pela experiência neoliberal e a produção orientada pelo mercado mas usando o dinheiro público por meio de leis de incentivo – que ao invés de equilibrar os pólos público/privado, os embaralha, dando ao segundo mais vantagens que ao primeiro. Nesta “dialética rarefeita”, a síntese é a Indústria Cultural, que reina soberana e diz o que deve ou não deve ser visto ou produzido.
Neste quadro, o velho tema nacionalista da “Identidade Nacional” perde de vez o sentido, na medida em que o Estado luta para “preservá-lo” como atrativo de espetáculo para empresas financiadoras e a Indústria Cultural faz a mesma coisa (estereotipando o “nacional”, tal como as novelas e minisséries nacionalistas da Rede Globo, em busca de se afinar com o governo “tropicalizado” e vagamente de “esquerda”).
Centralização do mercado
Como a produção é centralizada na forma dos interesses de mercado, acaba-se criando um padrão do “nacional” que é imposto, estereotipado e circunstancial (pois se vale da “nação” até o momento em que ela faz parte do negócio e jamais como exercício de um projeto de autonomia nacional).
E para embaralhar ainda mais as coisas, lembremos que a mesma televisão que dá “acesso” aos temas nacionais “típicos” entende que o brasileiro “médio”, espectador de seu maior telejornal (justamente o Jornal Nacional), deve ser tratado como um “Homer Simpson”, segundo pensa o próprio editor do telejornal. Ou seja: para ela, o brasileiro típico é o típico estadunidense pateta de desenho animado.
O escárnio “global”, curiosamente, lembra a ação tropicalista em seu desejo de assentar uma imagem do Brasil a partir de contradições e choques – eterno vai-e-vem entre tradição e ultramodernidade. Só que agora, instrumentalizado às últimas conseqüências pelo poder formativo da Rede Globo, essa “mistura”, essa “estratégia de choque”, constitui um enorme rebaixamento crítico, bem como uma estratégia de manipulação do espectador.
Para escapar desse círculo de interesse e de cinismo é preciso compreender literalmente a cultura de resistência como acesso à produção. Essa é a questão chave em uma política emancipadora e autêntica – coisa que a política tropicalista, centrada na crença da inexorabilidade da Indústria Cultural, nunca levou a sério. E aqui entram bons projetos atuais, como os Pontos de Cultura, que levam os agentes culturais a tomarem para si o processo de produção livre de interesses de mercado, possibilitando a produção cultural emancipada da simples idéia do espetáculo, que é a idéia que norteia a lógica do financiamento pelas leis de incentivo do tipo Lei Rouanet – que faz com que o Estado financie o marketing das empresas, permitindo que publicitários e marqueteiros decidam o que vai ser produzido ou não, o que devemos ver ou não, o que é mais “brasileiro” ou “moderno” (ou as duas coisas de preferência).
Neste contexto, entendo que os meios culturais e tecnológicos só se tornarão transformadores se saírem desse círculo vicioso, se forem apropriados e ocupados pelos agentes culturais “vivos”. Cultura é luta política de interesses tanto quanto a economia. Para que ela seja transformadora e revolucionária (inclusive do ponto de vista da “linguagem”) é preciso que o processo de produção esteja na mão dos agentes culturais (e não do “povo” entendido como números de IBOPE, como massa de assistência). Para isso é preciso interferir (sem medo do discurso furado do “patrulhamento”, péssima herança da despolitização tropicalista), com o Estado garantindo não apenas exibição, mas também a produção e circulação livres. Só que isso contraria interesses de mercado, que freia o quanto pode, que sabota projetos.
Arte e cultura de resistência têm que estar sempre contra a bárbarie, como diz o movimento mais efetivo que conheço, justamente o “Arte contra a Barbárie”, que não se negou a ajudar a elaborar uma lei de incentivo ao teatro, na cidade de São Paulo, baseada na ocupação de espaços públicos praticamente abandonados. Seus princípios, assim como os princípios dos coletivos de Cultura do MST, não são mais pautados pela aceitação, complexa porém festiva, da “modernidade” contemporânea “convivendo” com a Indústria Cultural, herança da acomodação tropicalista, mas sim pela luta para que os grupos organizados de agentes culturais, ao mesmo tempo produtores e pensadores, surjam por suas necessidades e sem a pressão dos interesses da Indústria Cultural ou de um Estado atrelado (ou freado) pelos interesses de mercado. Sua lição seria essa: precisamos esquecer as fantasias tropicalistas e politizar as ações de grupo.
* Francisco Alambert, é professor de História Social da Arte e História Contemporânea da USP