Avaliação dos programas de crédito fundiário do Banco Mundial no Brasil
Por Maria Luisa Mendonça*
INTRODUÇÃO
Este artigo traz o primeiro diagnóstico abrangente sobre os programas do Banco Mundial para o campo no Brasil. O estudo foi realizado pela Rede Terra de Pesquisa Popular, constituída por organizações da Via Campesina no Brasil – Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento Sem Terra (MST), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), e pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A coordenação técnica do estudo foi realizada pela Criterium Assessoria em Pesquisas.
No levantamento, foram realizadas 1.677 entrevistas. Esta amostra representa um universo de cerca de 60 mil famílias. A pesquisa abrange os programas Cédula da Terra, Banco da Terra, Crédito Fundiário e Nossa Primeira Terra, durante o período de 1997 a 2005.
Os projetos do Banco Mundial se contrapõem à reforma agrária baseada na função social da propriedade, como determina a Constituição brasileira. Esta política promove a compra e venda “negociada” da terra ou a contra-reforma agrária.
A Contra-Reforma Agrária do Banco Mundial
O Banco Mundial tem sido alvo de denúncias de movimentos sociais em todo o mundo, que protestam contra os impactos das políticas e da ideologia dessa instituição, que promove a expansão do neoliberalismo.
Sob o pretexto de “ajuda econômica”, o Banco Mundial influencia a concepção de desenvolvimento e as políticas econômicas dos países periféricos. Na medida em que o Banco exige uma contrapartida dos governos, o orçamento do Estado fica comprometido com o financiamento de seus projetos.
Essa política tem se refletido no meio rural, onde o Banco Mundial concentra seus programas, promovendo a privatização do território através das regras do mercado. De acordo com essa concepção, os camponeses devem buscar a “eficiência” nos moldes de um modelo integrado ao agronegócio.
Nas últimas décadas, foi construída em diversas partes do mundo a idéia de que o território rural não era significativo para o desenvolvimento. Os processos de êxodo rural se baseiam na imagem dos centros urbanos como os principais geradores de renda e de oportunidades econômicas.
Porém, as maiores regiões concentradoras de recursos naturais – como água, terra, minério e biodiversidade – estão no meio rural e passaram a ser o centro das políticas de agências financeiras multilaterais, especialmente do Banco Mundial. Não é aleatório que, hoje, os principais projetos do Banco estejam voltados para o campo.
No Brasil, a ideologia do Banco passou a ter maior impacto no governo FHC, que estabeleceu uma política agrária denominada “Novo Mundo Rural”, centrada basicamente em três princípios: (1) o assentamento de famílias sem terra enquanto uma política social compensatória; (2) a “estadualização” dos projetos de assentamento, repassando responsabilidades inerentes à União para estados e municípios; (3) a substituição do instrumento constitucional de desapropriação pela propaganda do “mercado de terras”, o que significa a compra e venda negociadas da terra.
Durante o governo FHC, o Banco Mundial iniciou três programas que inauguravam uma trajetória de acesso à terra e uma concepção de desenvolvimento rural: Cédula da Terra, Banco da Terra e Credito Fundiário de Combate à Pobreza. Esses programas beneficiam o latifúndio improdutivo com o pagamento à vista da terra, com a aquisição de terras devolutas, muitas de má qualidade e com preço inflacionado. As associações criadas para a compra das áreas são muitas vezes organizadas pelos próprios latifundiários, sendo que diversas terras adquiridas poderiam ser passíveis de desapropriação.
Por outro lado, as condições desses projetos impossibilitam o pagamento dos empréstimos pelos trabalhadores rurais e inviabilizam a produção até mesmo para a subsistência das famílias.
Com o início do governo Lula, o conjunto dos movimentos sociais do campo depositou suas esperanças na reversão desse processo. A expectativa era de que a reforma agrária estaria no centro da agenda política, como uma forma importante de geração de empregos, de garantia da soberania alimentar e como base de um novo modelo de desenvolvimento.
Ao contrário, o que assistimos foi a continuidade das políticas do Banco Mundial para o meio rural. Em novembro de 2003, o Ministério de Desenvolvimento Agrário anunciou o “Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural”. Uma das principais metas do plano, com a previsão de atingir 130.000 famílias, foi a continuidade do programa de Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, que segue a lógica do “mercado de terras”. Esse projeto enfraquece o Estado nas suas atribuições, concorre com os instrumentos e recursos públicos da reforma agrária baseada na função social da terra e legitima as oligarquias rurais.
DADOS SOBRE A REALIZAÇÃO DA PESQUISA
Universo : Famílias participantes dos programas de Crédito Fundiário do Banco Mundial.
Respondentes: Proprietários ou responsáveis pelas terras financiadas pelos programas do Banco Mundial.
Amostra : 1.677 entrevistas em 161 municípios, em 13 estados da Federação:
Bahia, Maranhão,Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina. Esta amostra representa um universo de cerca de 60 mil famílias.
Notas:
1) Nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em que o contrato é individual, foram feitas 292 entrevistas (118 em SC e 174 no RS), em 40 municípios (16 de SC, e 24 do RS). Nos outros estados, onde os contratos são coletivos e feitos através de associações, foram realizadas 1.385 entrevistas em 121 municípios.
Desenho Amostral: Amostragem probabilística estratificada por estado.
Margem de erro: ±4 pontos percentuais, para mais ou para menos, para os resultados do conjunto da amostra, com intervalo de confiança de 95%.
Data da coleta dos dados: Julho a dezembro de 2005.
Principais resultados no sítio: http://www.social.org.br/cartaz_final_rede_color.pdf
A OBTENÇÃO DA TERRA
A pesquisa revela que 35% das famílias investigadas não tiveram oportunidade de escolha da sua terra. Esse percentual sobe para 51% entre as famílias em contrato coletivo e para 52% entre as famílias que ingressaram no programa entre os anos de 2003 e 2005.
Em relação à negociação para a compra da terra, 41% dos entrevistados revelaram não ter participado deste processo. Este número sobre para 61% quando se trata dos contratos coletivos, que representam a maioria dos projetos do Banco Mundial. Entre as famílias que ingressaram no programa entre 2003 e 2005, 58% não participaram da negociação.
Em 50% dos casos, houve substituição das famílias nos lotes, o que significa um alto índice que abandono e rotatividade nestes programas.
O CONTRATO DE FINANCIAMENTO DA TERRA
Apenas 53% dos entrevistados afirmaram ter recebido uma cópia do contrato de compra e venda de sua terra. Apenas 36% leram o conteúdo do contrato; 15%, apesar de terem recebido, não o leram.
Entre os entrevistados que participam de projetos coletivos, através de associações, somente 31% tiveram acesso ao contrato.
42% dos entrevistados não souberam responder quais as penalidades previstas em contrato caso não consigam honrar o compromisso com o banco. Entre as famílias com contrato coletivo, este número sobe para 48%.
Mais de um terço dos entrevistados (36%) não sabem em quantas prestações financiaram suas terras: 26% admitiram que não sabem, 7% não lembram e 3% dão respostas erradas quanto ao total de prestações previstas no contrato. Entre as famílias com contratos coletivos, 50% desconhecem o número de prestações.
A grande maioria dos entrevistados (81%) desconhece as taxas de juros cobradas nos financiamentos: 51% admitem que não sabem, 11% não lembram e 19% citam taxas incorretas. O desconhecimento assumido das taxas de juros é mais acentuado entre os entrevistados com contratos coletivos (64%) e entre os que assinaram o contrato entre 2003 e 2005 (68%).
ASPECTOS E CARACTERÍSTICAS DA TERRA
Quando à produtividade da terra que compraram, 48% das famílias afirmam ter encontrado terras que estavam totalmente abandonadas. Este número sobe para 56% entre as famílias com contratos coletivos e que compraram suas terras através de associações. Como nestes casos as áreas compradas possuem grandes extensões (e podem ser caracterizadas como latifúndios), isto significa que estas terras deveriam ter sido desapropriadas para a reforma agrária.
INVESTIMENTOS EM BENFEITORIAS E/ OU PRODUÇÃO
36% das famílias entrevistadas não receberam financiamento para dar início às suas atividades. Entre as famílias com contratos coletivos, apenas 47% receberam algum financiamento.
Quanto à infra-estrutura existente nas áreas pesquisadas, observa-se algumas carências indispensáveis para a manutenção das famílias em suas propriedades. Dentre elas destacam-se a ausência de energia elétrica (20%), de água potável (27%), de escolas ou creches (48%) e de água para produção ou irrigação (74%), a inexistência de postos de saúde (76%), ambulâncias (72%), agentes de saúde (29%) e transporte escolar (22%). Observa-se ainda a falta de assistência técnica especializada: apenas 14% recebem regularmente a visita de algum técnico.
CONHECIMENTO DE DESVIOS DE RECURSOS
Apesar da possível intimidação causada por perguntas sobre desvios de recursos nos projetos, 16% dos entrevistados revelaram conhecer casos de corrupção na negociação da terra e 15% nos projetos de infra-estrutura. Como este tipo de pergunta pode causar intimidação, é possível que o número de casos de corrupção seja ainda maior.
QUALIDADE DE VIDA, APÓS A COMPRA DA TERRA
Além das dificuldades vivenciadas com as carências de investimentos em infra-estrutura, os entrevistados também não conseguem produzir o suficiente para o sustento de suas famílias e muito menos para pagar as prestações do financiamento. Em 46% dos casos, o que a terra produz hoje não supre as necessidades para o sustento das famílias e 47% delas revelam que o que ganham com a produção não é suficiente para pagar as prestações do financiamento.
Nos contratos coletivos, 56% das famílias disseram que o que a terra produz hoje não é suficiente para seu sustento e 54% delas revelam que o que ganham com a produção não é suficiente para pagar as prestações do financiamento.
Apesar do Banco Mundial argumentar que seus projetos promovem o “alívio da pobreza”, 19% das famílias revelaram que passam ou já passaram fome desde que ingressaram no programa. Entre as famílias com contratos coletivos este número sobe para 26%. Como esta pergunta pode causar constrangimento, principalmente para homens provedores da alimentação da família, podemos deduzir que este número seja ainda maior.
PARTICIPAÇÃO EM MOVIMENTOS SOCIAIS
A pesquisa mostra que 58% das famílias nunca participaram em nenhuma organização para defender seus direitos. Este dado revela o alto grau de alienação destas famílias, que muitas vezes são enganadas sobre as reais condições do programa. Quando ingressam no projeto, muitas delas não entendem nem mesmo que terão que arcar com uma dívida.
Na busca legítima por um pedaço de terra para viver e trabalhar, estas famílias são enganadas por associações sem legitimidade ou real participação coletiva, ou por propaganda enganosa de órgãos do governo, sindicatos e outros intermediários. Muitas famílias já moravam nas áreas compradas e poderiam reivindicar a posse de suas terras. Mas os próprios fazendeiros organizam estas famílias para obter lucro fácil, vendendo terras ociosas e de má qualidade a preços superfaturados.
Quando a pergunta se refere à disposição para participar em algum movimento para lutar por direitos, 78% respondem positivamente. Isto revela que há disposição da grande maioria das famílias para se organizar.
Apesar de toda a propaganda contrária que estas famílias recebem sobre a reforma agrária, 25% delas admitem que participariam de uma ocupação de terra.
PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO
Muitas famílias que participam do programa dependem de outras fontes de renda para sobreviver. Em muitos casos, trabalham para os latifundiários da região ou recebem algum auxílio dos programas sociais do governo. Isto significa que as famílias que conseguem pagar alguma prestação da terra podem estar utilizando recursos de fontes como aposentadoria, bolsa família, etc.
A maioria das famílias que participam do programa já morava no campo (73%). Porém, um percentual relevante (26%) morava na cidade. Isto significa que, como também se constata na reforma agrária, há hoje no Brasil um setor que tenta fugir dos problemas sociais na cidade (desemprego, falta de moradia, etc.) e vê a conquista de uma terra como opção de vida. Este dado revela a grande demanda por uma ampla reforma agrária no Brasil.
Os/as pesquisadores/as encontraram ainda muitos projetos abandonados. Em muitos casos, a inviabilidade do programa causou o abandono das áreas pelas famílias sem-terra. Em outros casos, a terra foi comprada por pessoas de classe média que vivem na cidade e usam as áreas para fins de recreação ou veraneio.
* Maria Luisa Mendonça é jornalista e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.