Quando a dor se transforma em resistência
Por Gardene Leão de Castro, Susana Piñol Sarmiento, Giorgio D’Onofrio, Paloma Klisys e Paulo Pereira Lima
Fonte Revista Viração
Torcedor do Vila Nova, Murilo Soares Rodrigues adorava futebol. Aplicado no campo como atacante, colecionava medalhas conquistadas nos campeonatos infantis de Goiânia (GO). Cursava a 7ª série e não faltava sequer a uma aula. Murilo tinha 12 anos. Seu sonho era ser jogador de futebol. Em 24 de abril de 2005, a tragédia. “Só pelo fato de estar em companhia de um suspeito, Paulo Sérgio Pereira Rodrigues, Murilo foi seqüestrado e executado por oito policiais”, conta a mãe, Maria das Graças Soares, 36 anos. Ele, oficialmente, é considerado “desaparecido”. Maria das Graças exige que a polícia reconheça que matou seu filho.
A casa, no bairro de Aparecida de Goiânia, não é mais a mesma: o quarto onde dormiam Murilo e o irmão, Orton, 16 anos, está intocado. As camas vazias. Transtornado, o irmão mais velho não consegue dormir ali desde o assassinato. “Sinto-me só e deprimida. Só consigo dormir quando tomo comprimidos”, diz Maria das Graças. Separada do marido, não consegue trabalhar e vive de pensão. Murilo agora está só nas boas lembranças do álbum de retratos. Lá está ele, em fotos posadas em piqueniques, churrascos, em acampamentos e nos treinos do time do coração.
Em São Paulo (SP), a 926 quilômetros de Goiânia, a violência policial faz parte do dia-a-dia dos jovens de bairros de periferia. É o que narra o adolescente Jonas Ribeiro Moraes, morador do Grajaú, zona Sul de São Paulo. Ele já foi abordado inúmeras vezes pela polícia: “Aqui, eles enquadram muitos jovens e você leva muito tapão”.
Segundo Jonas, os “tiras” andam com identificação, mas não deixam os meninos olharem para a cara deles. Mandam ficar de costas para o policial e com a cabeça abaixada. “Mas comigo aconteceu o pior. Envolvi-me em um roubo de carro com três colegas”, conta. Jonas percebeu que a ronda escolar estava perto deles circulando com as luzes da viatura apagadas. Os três saíram correndo e ele escondeu o revólver que estava segurando embaixo do banco do carro. Dois policiais apontaram revólveres em sua direção. Abriram a porta do carro e puxaram-no pelo braço, forçando-o a deitar-se no chão. Enquanto um policial torcia seu braço, outro deu um chute em seu rosto. Eles queriam saber onde estava a arma utilizada na tentativa de roubo e para onde haviam corrido os outros três adolescentes.
Tortura
Os policiais pediram reforço. “Levaram-me para uma barraca de madeira e me bateram muito. Não gosto de lembrar”, desabafa Jonas. Oito policiais participaram da sessão de torturas. Ele lembra que enquanto o surravam, os policiais perguntavam se ele tinha dinheiro, se sua família tinha dinheiro ou se ele devia algum dinheiro para a polícia.
Quarenta minutos depois, os policiais tiraram sua roupa, deixando-o apenas de cueca, e o jogaram dentro de uma represa, nas proximidades de onde fora espancado. Com fios conectados à bateria de uma das viaturas, permaneceram uns quinze minutos dando choques no jovem. “Pensei que fosse morrer e que nunca mais fosse ver meu pai e minha mãe”, recorda.
Depois, os policiais o levaram para dentro da barraca. Começaram a espetar agulhas embaixo de suas unhas. Um policial segurava seu braço, outro os seus dedos, e um terceiro enfiava a agulha entre a carne do dedo e a unha. Um quarto, finalmente, batia na agulha com um martelo, a fim de empurrar a agulha para dentro. Foram quatro horas seguidas de torturas, das 22h às 2:00, quando levaram o garoto para o exame de corpo de delito.
Chegando ao distrito policial, o jovem contou ao delegado o que os policiais haviamfeito. Mas nada foi feito. Da delegacia, Jonas foi encaminhado para uma Unidade de Atendimento Inicial da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Ele passou quase quatro meses, alternando períodos na Febem e de liberdade assistida.
Pesquisa
Seu caso, e o de tantos outros jovens e adolescentes da zona Sul, levaram o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Interlagos a inovar em sua atuação contra a violência. A entidade promoveu uma pesquisa para investigar a trajetória do adolescente julgado autor de ato infracional, desde a abordagem na rua até a inserção no sistema de justiça. A pesquisa, intitulada “Segurança Pública para qual público?”, tem 45 páginas, com depoimentos de vítimas e os resultados da pesquisa feita com 116 adolescentes, de ambos os sexos, com idades entre 12 e 20 anos. O estudo traz ainda análises sobre a violência policial e dicas sobre como se defender dos atos arbitrários dos policiais, cuidados fundamentais na hora da abordagem e em que casos procurar os órgãos públicos.
Para Cláudio Hortêncio, coordenador do Núcleo de Defesa do Cedeca, o que mais chocou a equipe “foi o dado correspondente ao número de vezes que os adolescentes foram abordados pela polícia”.
Pela pesquisa, a grande maioria dos adolescentes (96%) já foi abordada por policiais, sendo que 78% foram abordados 4 vezes ou mais.
Fundado em 1999, o Cedeca Interlagos acompanha adolescentes que cometeram atos infracionais e que estão inseridos em medidas sócio-educativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade.
Em virtude de sua atuação, seus funcionários recebem ameaças, seja por parte de policiais, seja por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo de criminosos da cidade.
Abordagem
A pesquisa, que também estuda o modo de agir dos policiais, revela que 86% destes não estavam identificados no momento da abordagem, “o que traz a conotação de que possivelmente houve ação em desacordo com o regulamento na abordagem ao adolescente e que, dessa forma, podemos compreender que essa prática policial tem sido um componente de práticas arbitrárias, ressalvando as operações especiais, que é defendida pela corporação como proteção”, diz o estudo.
Na pesquisa, 51% dos adolescentes responderam que já sofreram algum tipo de agressão física; e 51% sofreram agressão psicológica. Ambas somadas resultam em 94%. E mais: a Polícia Militar é responsável por 70% dos casos de violência – 48% dos entrevistados foram vítimas de violência física e 51% de violência psicológica nas delegacias.
Parentes criam entidade para acabar com as agressões
A goiana Maria das Graças Soares pretende transformar a perda de seu filho, assassinado por policiais, em luta por justiça. Com outros parentes de vítimas, criou o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial. Fundado em 26 de abril, o grupo reúne 16 famílias e conta com o apoio da Casa de Juventude Padre João Bosco Burnier (Caju). São pessoas que tiveram seus filhos torturados, espancados, executados por policiais e vivem, dia e noite, acreditando no lema “Quando a dor vira resistência”. Dentre seus objetivos está fortalecer o movimento social que busca mudanças dentro da própria polícia, além de denunciar e cobrar justiça para casos de vítimas consideradas “desaparecidas”.
Propõem: o monitoramento dos 32 veículos de operações especiais da Polícia Militar, a instalação de câmeras nas viaturas e o melhor preparo dos policiais. Em entrevista à revista local, Hoje, o coordenador do Centro de Apoio Operacional de Controle Externo da Atividade Policial, Carlos Alberto Fonseca, diz que 16 desses veículos já foram equipados com câmeras e, a partir de setembro, haverá cursos de reciclagem para preparar melhor os policiais.
As famílias redigiram um relatório sobre a violência policial na cidade. As denúncias vão fazer parte de um dossiê sobre violação aos direitos humanos, a ser entregue à Organização das Nações Unidas (ONU).
Tema brasileiro
Para Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a violência policial é um tema muito propriamente brasileiro. “Anos atrás, poderíamos dizer que o problema era mais grave no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje, infelizmente, está se alastrando para outros Estados”, afirma.
Segundo o cientista social, há um abismo separando policiais e as comunidades de baixa renda.
“Mas o problema pode ser transposto com as políticas adequadas”, acredita. Uma delas é o policiamento permanente nas favelas, “não para uma invasão policial, mas para uma polícia que fica lá dentro, que estabelece uma relação pessoal com a comunidade”.