“Vida melhor não depende do governo”, diz Stedile
Do Valor Econômico
Por Maria Inês Nassif e Cristiane Agostine
Historicamente, os movimentos sociais vivem ondas de fortalecimento e de crise. Ao contrário do que o senso comum diria após uma reeleição folgada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, ela não foi produto de uma fase de ascensão dessas organizações nem terá um papel fundamental para tirá-las da letargia. Essa é a radiografia que faz do momento político João Pedro Stédile, líder do hoje mais articulado movimento social do país, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Para ele, nem o MST escapa de uma realidade de “descenso” popular – e, na sua visão, se ainda tem alguma superioridade sobre os demais, é por ter se recusado a vincular-se com um partido. O MST foi gerado num processo de crítica à esquerda tradicional, que “aparelhava” os movimentos e transpunha a eles seus “rachas”.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), no entanto, além de um vínculo excessivo com o PT, segundo ele, sucumbiu à crise ideológica do sindicalismo ao optar pela luta reivindicatória e corporativa. A Igreja progressista, por sua vez, sofreu um sério revés no papado conservador de João Paulo II – e, além disso, tem dificuldades para lidar com a massa desorganizada de pobres urbanos.
Na sede do MST, uma casa antiga no decadente bairro de Campos Elíseos, em São Paulo, que já foi palco da aristocracia paulista, Stédile conversou por quase duas horas com o Valor, entremeando análise de conjuntura e goles de um chimarrão.
O MST mantém, ou já manteve, relações orgânicas com o PT? Houve um rompimento?
João Pedro Stédile: Não temos ligação. Somos fruto de um novo período histórico, em que já havia uma consciência crítica dentro da esquerda sobre o comportamento da esquerda clássica, os partidos comunistas. Eles sempre usaram os movimentos de massa como meras correias de transmissão: o Comitê Central dirigia o movimento sindical, o estudantil, o camponês, o de bairro. Essa experiência foi superada pelas crises da década de 60, pelas teses do Guevara e experiências latino-americanas.
Quando o MST nasceu, já incorporou a visão de que os movimentos de massa têm que ser autônomos. Não é uma aversão aos partidos: achamos que são instrumento fundamental para organização do Estado. Mas a experiência da esquerda tinha sido trágica e era importante para construção de movimentos de massa mais saudáveis e mais ativos que eles mantivessem independência orgânica dos partidos, apesar das afinidades ideológicas e de eventuais projetos comuns para a sociedade.
Se o MST estivesse vinculado ao PT, o que teria ocorrido?
Já teria acabado. Nos partidos de esquerda clássicos, cada vez que havia uma disputa ideológica interna, ela se transferia automaticamente para os movimentos de massa. E eles se dividiam em mil e um, não por diferenças políticas, mas ideológicas. Dentro do PT há resquícios disso. O MLST nasceu na corrente Brasil Socialista. O PCdoB, dez anos atrás, tentou construir o MLT, mas recuou.
O problema da CUT é a vinculação excessiva com o PT?
Os problemas da CUT são de outro tipo. Ela não conseguiu se construir como um movimento de massa sindical e ainda reproduziu a forma clássica, européia, de se constituir como uma federação de sindicatos. Essa foi uma disputa política que houve na fundação da CUT: havia correntes de esquerda que defendiam que a central tinha de ser um movimento com unidades municipais, mas foram derrotadas e prevaleceu a central sindical como federação. Quem manda na base não é a CUT e sim a direção do sindicato. Há outras dificuldades que a CUT enfrenta, como conseqüência das trágicas mudanças que ocorreram no mundo do trabalho industrial, fruto do domínio do capital financeiro e das multinacionais e da revolução tecnológica da década de 90.
Além disso, o movimento sindical do Brasil talvez tenha sofrido com mais contundência as conseqüências da crise ideológica que se abateu sobre o sindicalismo. Como tem muito dinheiro, afastou-se rapidamente das idéias socialistas, deixou de fazer formação ideológica e preferiu permanecer apenas na luta reivindicatória, corporativa, que não ajuda a organizar a classe trabalhadora em períodos de crise. Na crise, o que sustenta a unidade do trabalho é a ideologia.
A igreja progressista mantém sua importância junto aos movimentos sociais?
De 90 para cá, a igreja sofreu muito os efeitos do neoliberalismo. Isso diminuiu a sua influência sobre setores organizados da classe trabalhadora no campo e, sobretudo, na cidade. O período coincidiu com o papado do João Paulo II, que atrelou todo o episcopado a uma visão neoconservadora. Isso teve influência na orientação pastoral da igreja brasileira. Além disso, ela tinha uma experiência muito importante no período da ditadura, a do trabalho pastoral clandestino, discreto. Com a redemocratização e a maior ideologização dos movimentos de massa, as pastorais refluíram para um campo mais eclesial.
Além disso, o neoliberalismo produziu na classe trabalhadora um “lumpensinato”, com o empobrecimento das massas. Com essas camadas de pobres que vivem nas grandes cidades a igreja católica não sabe trabalhar. Sua tradição é a de atuar no mundo camponês e junto a setores organizados: operário com emprego fixo, família bem organizada, casinha de sua propriedade. Mas quando a família se desestrutura, ou trata-se de um imigrante ou um pobre diabo, a igreja não consegue chegar até ele, que fica à mercê de pentecostais.
Por que os movimentos sociais são fracos nas cidades?
A dinâmica da luta de classes nas sociedades capitalistas produz ondas ao longo da história. No Brasil, tivemos uma onda de ascenso dos movimentos de massa – onde as classes trabalhadoras se organizam e tentam disputar um projeto para a sociedade – em 1900, que foi até 1935. Então, a burguesia industrial recém-chegada ao poder impôs uma derrota e implantou uma ditadura, a do período Vargas. Disso resultou um refluxo, de 1935 a 1945. As lideranças dos movimentos e organizações foram para a cadeia e acabaram destroçadas.
De 1945 a 1964, ocorreu nova onda de reascenso, com novos líderes e novas formas de organização popular. A classe trabalhadora disputou um projeto para a sociedade e perdeu. A burguesia aliou-se ao governo dos EUA, impôs uma nova ditadura e as lideranças foram presas, torturadas e exiladas. Assim foi até 1978, 1979. Houve a crise da industrialização dependente, falta de emprego e volta da inflação – e isso produz um reascenso.
Os trabalhadores começaram a perder o medo da ditadura, embora colocassem toda a culpa nela, não no modelo. Ainda assim, gerou-se um cenário de lutas, de reconstrução das organizações de trabalhadores. Daí nasceu a CUT, o PT e o MST. Esse processo foi até 1989. Na eleição de 1989, disputamos um projeto para a sociedade e Lula, como candidato, era um mero porta-voz desse projeto que foi derrotado. A vitória de Collor não foi eleitoral ou pessoal, mas de um novo pacto entre as elites brasileiras que, diante da crise do modelo de industrialização, adotaram o neoliberalismo.
Ainda assim, era um período democrático…
De 1989 para cá não precisou de ditadura militar. Houve uma ditadura do capital e isso gerou um refluxo do movimento de massas. Suas principais lideranças não precisaram ir para o exílio: foram derrotadas politicamente ou cooptadas ideologicamente. Isso gerou, como em todo refluxo, crise nas organizações.
A vitória de Lula, em 2002, não desmente isso?
Os períodos de refluxo dos movimentos de massa são de derrota da classe trabalhadora e adversos a projetos de mudança. A novidade no Brasil é que, no meio do descenso, quando ninguém esperava, Lula ganhou as eleições. Demorou para que as forças sociais entendessem que sua vitória não era a do projeto de 1989. E não por desonestidade: ele deixou claro na Carta ao Povo Brasileiro que iria continuar a política neoliberal.
Sua eleição não alterou os problemas estruturais dos trabalhadores. Num quadro tão adverso, os desafios são profundos. Não dependem de vontades políticas ou de decisões, mas de novo período histórico. Isso leva um tempo para ser construído. É preciso que se passe esse período de uma geração perdida e surja uma nova geração de lideranças da classe trabalhadora para conduzir ao reascenso. Estamos embaixo e não sabemos se vamos descer mais ou se em algum momento, logo aí, haverá um reascenso do movimento de massas.
O que é um projeto da classe trabalhadora?
A classe trabalhadora tem desafios para reconstrui-lo. Em primeiro lugar, tem que voltar a fazer luta social, porque a melhoria das condições de vida e os avanços sobre o capital não dependem nem do governo, nem de vontade de lideranças.
A luta social é inclusive civilizatória, pois agrega pessoas, dá unidade e sentido para sociedade. Quando as pessoas perdem a possibilidade de lutar socialmente, elas apelam para o individualismo. E o individualismo, para pobre, é o banditismo. Rosa Luxemburgo advertia que a classe trabalhadora, ao longo da humanidade, só tem dois caminhos: ou o socialismo – mas não no sentido doutrinário, e sim de socialização dos bens -, ou a barbárie.
Segunda tarefa: dedicar esforços para formar lideranças: recuperar o valor do estudo, do conhecimento, para que aquela parcela que naturalmente se projeta dentro da classe trabalhadora tenha capacidade de interpretar o momento que está vivendo, senão sempre vai ser manipulada – ou pelo Estado, ou por políticos, ou pela mídia. O que dá consciência? É o estudo, é a compreensão e a dedicação à formação. Não é um doutrinarismo de decorar manual. É ter capacidade de interpretar o mundo que está vivendo, para encontrar saídas para seus problemas.
Terceira tarefa é construir meios de comunicação populares, que possam então ter um grau de influência cultural e política no meio do povo. Quarto desafio é construir unidade entre os vários movimentos que estão fragilizados. Os movimentos urbanos e os do campo estão esfacelados. A Assembléia Popular – que é, na sua origem, uma idéia visionária da CNBB – serve a essa unidade.
Em 2006, a assembléia definiu um documento conjunto. Será apresentado ao governo?
Vamos seguir debatendo um projeto para o país nas nossas bases para que as pessoas entendam o momento que vivemos e, assim, entremos no processo de construção de um projeto alternativo ao neoliberalismo, mas sabemos que isso é de longo prazo. Não é uma pauta de reivindicação. É um processo em que se vai acumulando conhecimento sobre quais seriam as soluções para os problemas estruturais do país. Esse é tempo de plantar, não de colher. Estamos plantando árvores, não alfaces, que se colhe em três semanas. O tempo de maturação será de anos. É um processo unitário e tiramos algumas linhas: redução da tarifa elétrica, mudança na agricultura, acesso à educação, trabalho e moradia popular. Tudo isso culmina no desafio de acumular consensos em torno do que seria um projeto. Porque a esquerda não tem, o PT não tem, o governo não tem, nem a classe trabalhadora. Há hegemonia absoluta do projeto das classes dominantes.
No segundo turno das eleições vocês fizeram a clara opção por Lula. Por quê?
O primeiro turno foi um campeonato de marketing, não um debate de idéias. Mas a parcela mais reacionária da burguesia optou por Geraldo Alckmin. O dossiê foi um sinal de que era possível derrotar Lula e a oposição foi com todas as armas -e chegou perto.
Isso alterou a correlação de forças para a direita: o que estava em jogo era a consolidação do processo neoliberal sob controle de uma parcela mais reacionária. Mobilizamo-nos para evitar o pior. Se vencesse Alckmin, iria retardar o processo de rearticulação de forças da classe trabalhadora.
Na história nada se repete mas, no quadro da ditadura militar, é como se fosse o risco de reproduzir o AI-5. A vitória de Alckmin prolongaria o período de derrota da classe trabalhadora, com efeitos inclusive na América Latina.
Fragilizaria posições do (Hugo) Chávez e do Evo Morales (presidentes da Venezuela e da Bolívia). Embora não fosse nossa prioridade, nos voltamos para as bases e fizemos trabalho político – não de propaganda eleitoral, mas de conscientização.
Para resgatar o apoio dos movimentos populares, Lula adotou um discurso mais à esquerda…
Lula, por interesses eleitorais, fez uma inflexão no discurso mais à esquerda e incorporou temas que eram importantes para poder derrotar o Alckmin, como as privatizações. Mas mesmo no segundo turno não houve disputa de projeto. Eles só representaram. A política no Brasil está tão desorganizada em termos de interesses de classes que mesmo as disputas eleitorais estão muito mais revestidas de fetiches políticos do que por forças reais: Lula era do povo e Alckmin, dos ricos. Mas, na luta política, não havia tanta diferença nas idéias. Prevaleceu o fetiche, não as idéias. Nós, dos movimentos sociais, só apostamos em uma coisa: na capacidade do povo lutar. Se o povo lutar, mobilizar-se, nós teremos um novo reascenso e isso empurrará o governo para esquerda. Se não, vai ser mais do mesmo.
O que mudou do primeiro para o segundo mandato?
O governo agora é mais honesto, mais transparente. Caiu um pouco a ilusão de 2002, quando havia o fetiche de que esse Lula era o de 1989. Levou quatro anos para nos darmos conta. Agora o governo assumiu: “somos de composição, não de esquerda. E no meu governo vai ter forças de direita, de esquerda e de centro”. Ótimo. Seria péssimo se os ministros continuassem com lorotas de que esse é governo de mudanças.
Qual a sua avaliação dos programas sociais do governo Lula, do Bolsa Família em especial?
Salvou algumas vidas, de quem passava fome.
É desmobilizador?
Não. O Bolsa Família atinge a camada mais pobre. Mas as pessoas têm que ter consciência de que nos últimos 15 anos se manteve a concentração de renda. Nunca o capital ficou com uma cota tão grande, que chega a 62% da renda nacional. O que aconteceu no governo Lula foi que, dentre os que vivem de trabalho, houve uma eqüidade maior. Os que ganhavam mais, que é a classe média, se proletarizou um pouco. Os que estavam embaixo, sem rendimentos, passaram a ganhar R$ 74. Mas isso não é solução para eles, nem é solução política para o governo. O governo que não se iluda que essa base vai ser seu reduto eleitoral, ou do PT. Em geral ela votou no Lula, mas em governadores conservadores e num Congresso conservador. Deu nesse Congresso transgênico. Temos um presidente que derrotou a direita e um Congresso mais conservador que o passado. O eleitor brasileiro ainda é despolitizado. Ele não vota por ideologia, mas por afinidade, conhecimento, propaganda. Embora aceitemos como medida necessária, o Bolsa Família tem de ser temporário. As soluções reais são da reforma agrária, distribuir terra, geração de emprego, construção de moradia popular e universalização da educação. É isso que distribui renda.
Vocês foram chamados a conversar com o presidente?
Procuramos preservar que as conversas com o presidente sejam dentro do que representa a Presidência: têm de ser audiências formais. Não queremos tratar o presidente Lula como compadre. Compadrio é outro campo de relações sociais. Mas o presidente nos chamou para conversar, ainda em janeiro.
Quais são as sugestões para a reforma agrária?
Temos uma longa agenda de pontos que são mais do que reivindicações: são sugestões. Como a vinculação da estrutura administrativa do Incra à Presidência, para dar mais agilidade à autarquia. Não é nenhum desprezo pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. O MDA é para cuidar da agricultura familiar – para a reforma agrária, não serve para nada. Queremos uma nova estrutura administrativa para a reforma agrária, que junte três autarquias: o Incra, a Conab – que é fundamental para viabilizar a produção dos assentamentos – e uma terceira autarquia, que o governo Collor acabou, a antiga Embrater. É organizar a assistência técnica e a extensão rural pública. A assistência técnica para os assentados e pequenos produtores não existe. É uma fantasia. Têm também a idéia a de priorizar regiões, para acalmar produtores honestos. Do jeito que são feitas as desapropriações pelo Incra, o vizinho pode se sentir inseguro. O espírito da reforma agrária e do Estatuto da Terra é eleger regiões onde têm predominância de latifúndio. Aí se reforma toda uma região. De resto, não precisa se preocupar. Aqui no país tem muita terra mal utilizada. Só falta o governo acordar e aplicar a lei.
Qual é a leitura feita da conjuntura latino-americana?
A leitura que a Via Campesina faz é que o resultado no campo institucional gerou três blocos de governos diferentes. Um bloco é o de esquerda, com Cuba, Venezuela, Bolívia e agora, Equador. Há o bloco dos moderados, que adotam políticas ambivalentes: à vezes antineoliberal e antiimperialista e às vezes pró-mercado. É o caso do Brasil: é contra Alca mas é a favor da OMC. Estão nesse grupo também Argentina, Uruguai, Peru. O terceiro grupo é o pró-neoliberal: Chile, o Paraguai e a Colômbia, na América do Sul.