Somos aquilo que comemos
Luiz Hernández Navarro (para Agência Carta Maior)
Entre 23 e 27 de fevereiro passados a comida se transformou em política no sentido mais genuíno da palavra, ou seja, em um assunto de interesse público. O velho lema “somos aquilo que comemos”, defendido por naturistas, consumidores organizados e camponeses radicais, hoje se tornou mais amplo.
O Fórum Mundial para a Soberania Alimentar – Nyéleni 2007 – foi a reedição de um novo “Fitzcarraldo”, o célebre filme de Werner Herzog, no qual Brian Fitzgerald – Fitzcarraldo – decide empreender uma aventura tão ambiciosa quanto audaz: construir um teatro de ópera em plena selva amazônica. Para torná-lo realidade, consegue o dinheiro negociando com
borracha e transporta um grande barco fluvial fora da água e por cima de morros com ajuda de um grande número de nativos.
Segundo Herzog, “o projeto de “Fitzcarraldo” nasceu metade desafio às leis da gravitação, metade desafio aos parâmetros da razão; um projeto totalmente concebido contra as leis da natureza. Ninguém acreditava naquilo. Fui considerado mais louco e irracional do que o próprio protagonista”.
Nyéleni 2007 é um novo “Fitzcarraldo”, só que transportado para a África Ocidental, uma das regiões mais pobres do planeta. O Fórum foi preparado durante dois anos. Obteve-se financiamento, foram tecidas as alianças e realizadas reuniões preparatórias. Em menos de três meses, foi levantada uma vila completa com adobe e palma, dotada de água, bebedouros e sanitários.
Mais de 600 representantes de mais de 80 países, aos quais se albergou, alimentou e cuidou, informaram, analisaram e discutiram sua visão sobre a soberania alimentar, em condições precárias, mas dignas. Eram provenientes de uma enorme diversidade de experiências políticas, ideológicas e religiosas. Falavam quatro idiomas oficiais (inglês, francês, espanhol e bambará) e muitas outras línguas: indonésio, tagalo, holandês, coreano. Dezenas de intérpretes traduziram para eles, através de rádios ou pessoalmente.
A União de Agricultores da Turquia explicou, no encontro, o que muito bem pode ser a matriz central da luta campesina pela sobrevivência nesta época. Segundo Abdullah Aysu, seu porta-voz, no setor agrícola estão se confrontando dois modelos de produção rural que são opostos: “de um lado, há homens e mulheres que são obrigados a sobreviver nas suas
terras produzindo comida saudável. São pequenos agricultores e camponeses. Eles defendem a sustentabilidade e os recursos naturais. Do outro, estão a agricultura transnacional e as corporações trasnacionais, que querem um modelo agrícola baseado na produção industrial de alimentos, no uso intensivo de agroquímicos e maquinária agrícola, no livre comercio e nas exportações”.
Apesar desta diversidade, o Fórum lançou, por unanimidade, uma declaração política e um plano de ação. Foi, no dizer de Paul Nicholson, um dos organizadores do ato, “um resumo impossível de uma semana irrepetível”.
O documento político central reconhece que a herança dos produtores rurais ali reunidos é fundamental para o futuro da humanidade. Contudo, adverte que “esta herança – e nossas capacidades para produzir comida saudável, boa e abundante – está sendo desafiada e corroída pelo neoliberalismo e o capitalismo global”.
Segundo os participantes, a luta pela soberania alimentar coloca quem produz, distribui e consome a comida no coração das cadeias alimentares e das políticas públicas, mais do que nas corporações e nos mercados. Defende os interesses e a inclusão da próxima geração. Oferece uma estratégia para resistir e desmantelar o comércio corporativo.
Os delegados estiveram de acordo em lutar contra o “imperialismo, o neoliberalismo, o neocolonialismo e o sistema patriarcal, e contra todos os sistemas que deterioram a vida, os recursos naturais e os ecossistemas, assim como os agentes que os promovem, tais como as
instituições financeiras multilaterais, a Organização Mundial do Comércio, os acordos de livre comércio, as corporações transnacionais e os governos antagônicos a seus povos.
Também se manifestaram contra o “dumping” que faz baixar artificialmente os custos de produção e os preços agrícolas no mercado mundial; a privatização dos sistemas alimentares, os serviços públicos, a água, a terra, as sementes e as formas de vida, além de contra a criminalização daqueles que lutam por direitos. Finalmente, comprometeram-se a formar um amplo movimento internacional em favor da soberania alimentar.
Desafio às leis da gravitação do mercado e aos parâmetros da razão do capital, a nova nave de “Fitzcarraldo”, da soberania alimentar, desembarcou em Sélingué, entre tambores africanos, encontrando um porto seguro.
Agora, o navio que simboliza a aposta por um novo modelo civilizatório, no qual a agricultura com camponeses, a agropecuária com pastores e a pesca com pescadores tenham um espaço privilegiado, se prepara para uma nova travessia: transformar-se em forças regionais capazes de mudar suas realidades locais e nacionais.
Luiz Hernández Navarro, Editor de Opinião do jornal La Jornada, México.