Imperialismo e violência no Haiti
Por Cássia Bechara
Desde 2004 o Haiti está mais uma vez ocupado por forças internacionais. Primeiro foram as tropas da França, Estados Unidos e Canadá. Depois, com a “queda” do presidente eleito, Jean-Bertrand Aristide, as tropas da ONU – comandadas pelo exército brasileiro – assumiram o papel dos soldados estadunidenses e franceses, mantendo a ocupação militar de um país soberano e independente.
Em março, o Jubileu Sul organizou um giro de debates sobre a ocupação militar e econômica do Haiti. Os haitianos Rachel Beauvoir-Dominique e Didier Dominique visitaram diversas cidades brasileiras participando de debates sobre a situação atual do Haiti.
Rachel Beauvoir, antropóloga, professora da Universidade de Porto Príncipe e uma das diretoras do Batalha Obrera, um dos mais importantes movimentos sindicais do Haiti, nos concedeu essa entrevista quando esteve no Recife (PE), onde participou de um debate no Sindicato dos Bancários.
Os Estados Unidos têm um histórico de intervenções e ocupações no Haiti. Existem diversas denúncias da participação direta do governo dos Estados Unidos na “queda” do governo de Aristide, em 2004, que nunca foram realmente investigadas.
Rachel Beauvoir – Certamente a participação dos imperialistas e, particularmente, do governo dos Estados Unidos no seqüestro do presidente Jean-Bertrand Aristide em 2004, merece uma investigação a nível mundial. É o jogo criminoso do imperialismo em funcionamento que, junto com as classes mais reacionárias do país, organizaram uma mobilização desestabilizadora a fim de eliminar aquele que lhes havia servido.
Há que sublinhar, entretanto, que foi também a perda da popularidade do próprio Aristide que, com seu retorno ao Haiti em 1995, acompanhado de 20 mil soldados americanos, logo depois das negociações com os imperialistas em “Governors Island” (Nova York), que confundiu seu povo.
A assinatura do pacto de Monterrey para a implantação de 18 zonas francas em todo o país, particularmente na fronteira com a República Dominicana, a abertura da primeira dessas zonas em Ouanaminthe – uma idéia que foi rechaçada por mais de 10 anos no Haiti, criticada inclusive pela burguesia haitiana; sua política global de apoio aos grandes interesses multinacionais tanto industriais como – no caso da luta de Guacimal em 1995 – contra os pequenos camponeses sem terra; e, finalmente, a corrupção generalizada de seu governo, às vezes até incitada pelo próprio presidente, como foi o caso das famosas cooperativas de poupança que roubaram muito dinheiro do povo realmente pobre, acabaram por colocar grande parte da população contra o governo.
Essa tendência à acumulação ilícita do governo, quer era uma reprodução completa da burguesia burocrática, se evidenciava por todos os escândalos ocorridos. Sem contar que, desde o início de seu governo, Aristide sustentou a presença de um Duvalierista notório (partidário dos ex-ditadores Fraçois Duvalier e Jean-François Duvalier, que governaram o país com apoio estadunidense de 1957 a 1986) como cabeça do Ministério da Justiça, assim como de burgueses no Ministério de Assuntos e Conflitos Trabalhistas e na Comissão de Economia. Mas a incapacidade crônica do Estado fez com que o imperialismo e a burguesia deixassem de apoiar o populismo demasiado agitado, que se tornava problemático para eles, apesar de sua colaboração em vários aspectos chave.
Qual o papel da intervenção da ONU na atual política econômica do Haiti?
RB – O governo interino, formado pelas Nações Unidas logo após a expulsão de Aristide do país, do primeiro ministro Gérard Latortue – da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (ONUDI), ou seja, um claro agente do capital internacional –, sem nenhuma dúvida aplicou mais radicalmente o plano neoliberal para nosso país. Dada a incapacidade das classes dominantes e de seu Estado de implementar tal plano, foi necessário o acompanhamento de tropas imperialistas para garantir sua implementação. Devemos lembrar que essa ocupação foi solicitada tanto pela oposição burguesa como pelo próprio governo lavalas.
A participação do exército brasileiro no comando das tropas da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, em francês) gera uma polêmica na sociedade brasileira. Muitas pessoas acreditam que o Brasil está fazendo o “trabalho sujo” dos Estados Unidos, comandando a ocupação militar de um país vizinho, pelo simples objetivo de obter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU.
RB – As tropas da Minustah mostram claramente sua incapacidade de colocar em prática seu mandato e de participar das resoluções dos problemas estruturais que enfrenta a sociedade haitiana. Não há nem o desarmamento da população, nem perspectiva de paz, de justiça, de governabilidade, impossível na ausência de reformas estruturais profundas (como a distribuição de terra e a transformação das relações de produção em geral). Além disso, a Minustah emprega uma terminologia muito hipócrita, chamando de “bandidos” unicamente aos pobres que possuem armas, mas não aos que os financiam, nem mesmos às classes dominantes também armadas e responsáveis pela organização de diversos crimes. Por outro lado, chamam de “insegurança” ao seqüestro de membros da burguesia e da pequena burguesia, mas não ao terror imposto sobre os bairros populares, que ficam cercados por um cinturão repressivo durante dias e noites. As pessoas ficam sem poder levar seus filhos a escola, sem poder buscar água para banhar-se, estão feridas por balas perdidas, até crianças de 4 anos de idade! Ou simplesmente assassinados (crianças de até 6 meses!). Sem falar na total violação da auto-determinação do povo haitiano, e do perigo que isso significa para todos os povos da região.
As forças da Minustah são denominadas “forças de paz”. Mas há várias denúncias de repressão e violação dos direitos humanos por parte dos soldados da ONU, como é o caso dos massacres de julho de 2005 e dezembro de 2006, quando diversas pessoas foram mortas em uma ação das tropas da Minustah no bairro de City Soleil.
RB – A Minustah é efetivamente um corpo de “paz”. Mais precisamente de uma paz de cemitério; de uma “paz” que protege a dominação; de uma “paz” onde os interesses imperialistas e burgueses (declarados!) de exploração da mão de obra barata (a mais barata do continente) é considerado por eles como uma “vantagem competitiva”. O que, concretamente, quer dizer exploração máxima, repressão permanente e miséria generalizada – para que qualquer um esteja disposto a aceitar o salário de miséria pago pelas fábricas! Contrário aos interesses dos trabalhadores em geral e dos operários em particular, essa “paz” não faz mais do que enterrá-los. A repressão, o terror nos bairros pobres, são as expressões das ações da Minustah.
Como está a situação dos grupos civis armados hoje no Haiti?
RB – Os grupos armados, comumente chamados de “gangs”, longe de representar forças de libertação do povo ou mesmo de apoio a suas lutas, são características de uma violência totalmente desvirtuada, oportunista e também de terror sobre a população. Esses grupos foram armados primeiro pela grande burguesia, donos de fábricas ou de instalações portuárias na zona franca, e depois tanto pela oposição a Aristide como por seu próprio governo. Eles também estão intimamente ligados aos cartéis de drogas e a todo tipo de contrabando. Se hoje elas estão em contradição com as classes dominantes, que as usaram durante um tempo definido e que agora as abandonaram, é por capitulação desses funcionários frente ao capital internacional e, também, pelo desejo de integração ao projeto imperialista e burguês de “democracia”, em vista da exploração direta e máxima da “mão de obra barata”.
As missões na ONU normalmente possuem, além de um contingente militar, também o que chamam de um contingente civil, com assessores e consultores da ONU e de suas agências colocados em postos chave do governo, influenciando assim, diretamente, a política governamental. Como isso se dá no caso do Haiti?
RB – O Quadro de Cooperação Interina (CCI, em francês) é o plano para a “reconstrução do Haiti”que foi elaborado por técnicos das instituições financeiras internacionais. Ele diz claramente que a orientação principal que deve sustentar qualquer governo do Haiti é a produção de Zonas Francas. Estamos, outra vez, frente a clareza do projeto global e dos objetivos específicos de exploração do imperialismo e da burguesia (têxtil, mais precisamente) em Haiti. Tanto os projetos das instituições internacionais (Banco Mundial, FMI, BID) como de seus assessores e consultores internacionais, estão para cumprir essa meta: a implementação da exploração. Nesse caso, o “plano neoliberal” é esse. Não há matérias primas, nem recursos naturais significativos, a “mão de obra barata” sendo a “vantagem comparativa” (outra vez: declarada como tal), o papel das forças da ONU, dentro do CCI é contribuir para a implementação desse plano, mantendo a “ordem” necessária para tal objetivo. O terror nos bairros populares responde de esta lógica fundamental.
Você faz parte da direção do movimento Batalha Obrera, que organiza os trabalhadores do Haiti, em especial os das Zonas Francas. Qual é a situação desses trabalhadores hoje?
RB – No Haiti, a situação dos trabalhadores é a pior do continente. Economicamente, o salário de miséria pago pelas fábricas não dá para nada, considerando seu valor real, em comparação com o custo de vida (comida, saúde, habitação, mas, sobretudo nesse caso específico, transporte) e a desvalorização da moeda nacional. A maioria dos operários já não almoça, para que possam levar algo para a casa. Para manter tal situação, a burguesia efetua de maneira permanente uma repressão anti-sindical da mais brutal. O Estado, por seu lado, não tem nem capacidade nem vontade real de interceder, temendo, por um lado, “assustar os investidores”, como declara em cada conflito trabalhista onde os operários nunca alcançam justiça, e por outro lado, interromper sua lucrativa carreira de funcionários corruptos. Os bairros onde vivem os operários, os trabalhadores e as classes populares em geral, cobertor pelo terror dos grupos armados, da polícia nacional e, mais particularmente, da Minustah, estagnam em um terror brutal que se une à miséria permanente, em una situação de desolação indescritível.
E como é a situação dos camponeses no Haiti?
RB – A situação dos camponeses não é diferente. Se por um lado o pouco de comida que se pode conseguir das poucas árvores que ainda restam pode sustentar alguma vida precária (às vezes os trabalhadores da cidade voltam a sua origem rural para poder comer!), a situação estrutural é ainda pior: se trata da decomposição do campesinato, precisamente e sempre dentro do projeto de exploração da mão de obra têxtil nas cidades. Essa decomposição, iniciada desde a primeira ocupação norte-americana de 1915, quando foram roubadas uma quantidade enorme de terras para a agroindústria de exportação, teve outra onda com a saída de Jean-Claude Duvalier do poder, que com seu totalitarismo continha o êxodo rural através de um grande esforço de controle político. Em 1986, entretanto, ondas de camponeses entraram em Porto-Príncipe, Cabo Haitiano, Gonaïves, Saint-Marc, criando o exército de operários tão desejado pelo capital. O campo se desintegrou ainda mais.
Mas havia que esperar a implementação do plano Reagan (o CBI, Caribbean Bassin Initiative, concebido pelos Estados Unidos nos anos 80) que definia o Caribe, com exceção de Cuba, como a grande reserva de mão de obra barata para a industria têxtil. A destruição consciente do açúcar, o “dumping” do arroz, as pragas da banana e do café, deixadas propositadamente sem intervenção do Estado. A dívida que por meio do crédito a juros altos é paga pelo campesinato pobre, acabou pouco a pouco e de maneira coordenada, com o panorama rural. Hoje ele está em quase total decomposição: a maioria das terras do interior não é cultivada e os camponeses pobres são obrigados a vê-las queimar sob o sol.
O que o povo haitiano espera da solidariedade internacional?
RB – A solidariedade internacional ao povo haitiano, tão heróico, mas também tão golpeado tanto pelo império mais sangrento e cínico da historia da humanidade como por uma das classes dominantes mais repugnantes do mundo, é um imperativo urgente. Mas, mais que solidariedade, se trata de luta comum, já que o inimigo de todos nós, operários, trabalhadores e povos do mundo inteiro, é o mesmo. São as mesmas forças repressivas brasileiras que atuam no Rio, em São Paulo, em Recife; são os mesmo chefes militares seguidores de Pinochet, que recentemente conseguiram impedir seu julgamento e sua sentença; são as mesmas multinacionais, com a mesma exploração, com a mesma dominação política e militar, trazendo sempre a mesma e infinita humilhação. São os mesmo políticos locais, colaboradores – cada um a sua maneira – e oportunistas – cada um a seu tempo.
Isso foi o que quisemos mostrar com esse giro de debates pelo Brasil. Descrevendo a situação do povo haitiano, mas, sobretudo, ressaltando a lógica da necessidade de tal miséria e terror por parte das classes dominantes e do imperialismo global, dentro do marco de seu projeto de dominação e exploração geral.