“Que continuem a luta de João Pedro e a minha”, diz Elizabeth Teixeira
Mayrá Lima e Marina Costa,
de Brasília (DF)
No meio de 18 mil pessoas, surge uma senhora idosa. A voz é baixa, mas o microfone ajustado faz com que a força da história possa levar que todos e todas presentes no Ginásio Nilson Nelson, em Brasília, a uma recuperação de memória. Não individual, mas àquela que se carrega quando se nasce, que já vem enraizado nos que lutam pela terra, dignidade e sobrevivência. O reencontro com um passado não tão distante assim, mas fundamental para que àquelas tantas mil pessoas pudessem estar exatamente ali, diante dos olhos fortes e das mãos calejadas.
Elizabeth Teixeira, 82 anos, é o nome desta senhora. O que ela foi levar ao 5º Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi sua luta dentro das Ligas Camponesas, junto ao seu esposo, João Pedro Teixeira, o fundador das Ligas entre os camponeses de Sapé, na Paraíba. De repente, atenção a cada etapa contada. Uma história de luta e, ao mesmo tempo, por que não, de amor pelo esposo e ao povo do campo que, mesmo com com a morte de João Pedro Teixeira, a fez continuar. Uns se emocionam. Os nordestinos se orgulham, afinal, uma paraibana. Uma salva de palmas e pronto? Não! Hora de jantar. Mas ainda são 5 da tarde? Perguntamos. “Ela dorme cedo”, disse uma das assessoras do Congresso.
É difícil resumir o que foram as Ligas Camponesas. Há diversas teses acadêmicas sobre este movimento que, em 1945, surgiu em Pernambuco e se espalhou por boa parte do Nordeste brasileiro na década de 50. O que marcou a ação das Ligas Camponesas foi o fato de os agricultores irem às ruas, realizando marchas, comícios e congressos. Procuravam não só reforçar sua organização interna, mas também queriam ampliar sua base de apoio nas cidades e, dessa forma, colocar-se defender-se dos latifundiários.
Desta forma, as Ligas fazem parte da memória histórica que forma o MST. A presença de dona Elizabeth Teixeira significou o exemplo que deve ser seguido. As poucas linhas a seguir não podem ser consideradas, nem de longe, a descrição de sua história, muito menos das Ligas. É muito pouco! O tempo também foi curto e ela ia jantar na cozinha do Estado da Bahia. Já estava esfriando em Brasília e a roupa dela era fina… precisava voltar ao hotel, mas ainda tivemos a sorte — essas repórteres e os militantes, nordestinos, em sua maioria — de conversar por 20 minutos e, devemos confessar, cheias e cheios de admiração.
O que fez a senhora integrar as Ligas Camponesas?
Elizabeth Teixeira – Eu participei das ligas camponesas porque meu marido, João Pedro Teixeira, foi quem fundou a Liga Camponesa em Sapé, na Paraíba. Ele fundou em 1958. Na época, o homem do campo dos engenhos, das fazendas estavam todos se associando. E porque ele foi tomando conhecimento da situação do homem do campo, foi assassinado barbaramente. O homem do campo vivia uma situação muito difícil. Próximo à casa que a gente morava, tinha o engenho Melancia, o Sapucaia e o João Pedro foi tomando conhecimento da sobrevivência daqueles trabalhadores, pai de filhos, a situação dos filhinhos passando fome, analfabetos, sem ter direito a ir a uma escola. O João Pedro foi conversando com eles, fazendo reuniões, até que fundou a Liga Camponesa e eles foram se associando e o número da liga crescendo. Passou para dois, três mil e um latifundiário mandou tirar a vida de João Pedro numa emboscada, em 2 de abril de 1962, numa estrada que ligava João Pessoa, Sapé, e Café do Vento.
Como era a participação da Senhora na Liga?
Elizabeth – Ele como meu esposo e eu, como mãe de 11 filhos, a minha luta era em casa, mas, nos sábados, acontecia de eu chegar até lá, na Liga Camponesa, e era justamente era o dia dos companheiros do campo irem se associar. Eu ia escrever o nome deles, ia fazer a carteira deles para entregar. Com o João Pedro, o número de associados cresceu tanto que ele dizia pra mim que iam tirar a vida dele, mas que a reforma agrária ia ser implantada em nosso País. Já fez 45 anos da morte dele, agora, no dia 02 de abril, e ainda não foi implantada a reforma agrária.
Como a senhora se sente diante disso?
Elizabeth – Eu me sinto triste… por que já era pra ter sido implantada uma reforma agrária em nosso País. Justa! Uma reforma agrária, como João Pedro dizia, reforma agrária: terra para os sem terra e condições para que ele pudesse plantar, colher, ver seus filhinhos ter alimentação, ter direito a uma escola que não tinha. Eles trabalhavam naqueles engenhos como escravos, o filho do homem do campo não tinha direito nem a estudar.
E depois que o João Pedro morreu?
Elizabeth – Eu assumi a liderança dele na Liga, lutava na Liga camponesa o dia todo. Acontecia muitas prisões a minha pessoa, até que chegou o golpe militar e com ele eu tive que ser presa. Passei seis meses presa no Exército. Quando me liberaram, o Exercito já me disse que a Polícia ainda ia me prender. Eu tive que fugir para um Estado, o Rio Grande do Norte, para qual ninguém me conhecia e fiquei lá todo o tempo da ditadura militar. Trabalhei como lavadeira de roupa. Lá o sol era muito quente e eu era Marta Maria da Costa e não Elizabeth Teixeira.
E como ficou sua família?
Elizabeth – Dos meses que eu fiquei presa, a família foi resgatada da casa que eu morava e foi dividida com meus irmãos e meu pai. Quando o Exército me liberou e disse que a polícia poderia me prender, eu cheguei na casa de meu pai ele disse que ali eu não ficava por causa da polícia. E ainda tinha meu filho que era a cara de João Pedro e ele não queria. Papai nunca aceitou meu casamento com João Pedro. Eu casei com ele fugida, papai nunca aceitou e a luta dele pior. Papai nunca aceitou a luta de João Pedro. Assim que eu casei com o João Pedro, eu morei cinco anos em Recife. A gente trabalhava numa pedreira lá. A pedreira parou e meu pai tinha comprado um sítio que ficava distante da fazenda dele que era de meu padrinho e tinha uma farmácia. Era um sítio muito bom. Daí, papai mandou me convidar quando soube que o João Pedro estava parado e a situação difícil e eu já com 5 filhos. Eu fui morar no sitio, mas não que papai desse apoio a João Pedro. Morando lá no sitio em Sapé, foi quando João Pedro iniciou a luta. Era uma casa boa… tinha muita fartura, muito inhame, muita batata, milho… quem tirou a vida de João Pedro foram dois policiais… com a morte dele, eu continuei a luta e fui presa várias vezes. Teve um dia que dois tenentes e um policial foram me prender. Chegaram lá em casa, chamou a mim numa certa distância e a cada passo que eu dava era um tiro de um lado, outro de outro de um jeito que meus pés ficaram cobertos de terra. Foi quando eu disse: “tenente, é uma prova de covardia. Vocês não mataram meu marido de emboscada? E dá tanto tiro nos meus pés… cheios de terra” Ele disse que eu estava presa e mandou eu entrar no carro. Pedi que esperasse para eu pegar meus documentos. Quando eu voltei em casa, a filha mais velha, Marluce Teixeira disse “mainha, vão tirar a sua vida… painho eu vi ele morto, eu peguei na mão dele e fiquei toda melada de sangue, mas a senhora eu não quero ver morta” Eu falei: “minha filha, não vão tirar a minha vida. Estão fazendo isso para me fazer medo. Pode ficar ai tomando conta de seus irmãozinhos que eu vou, mas volto.
E depois?
Elizabeth – Eu fui levada para João Pessoa e o advogado Doutor Santa Cruz já estava para me defender. Defendeu e liberou. Quando eu chego em casa, a minha filha mais velha já estava morrendo. Ela tinha ingerido veneno com o mel. Tinham mandado comprar num mercado que tinha próximo. Era para colocar nos ratos que estavam comendo o inhame, mas ela ingeriu e quando eu cheguei ela tinha me dito que ela tinha tomado veneno com mel e que estava morrendo. No mesmo carro do Doutro Santa Cruz, eu voltei com ela para João Pessoa. Quando cheguei lá, o médico disse que ela estava morrendo… já estava lá… Ela morreu e foi uma tristeza muito grande. Quando João Pedro morreu, eu tinha 11 filhos… era tudo vivo os bichinhos… Hoje só tenho 6 vivos. Um deles levou um tiro com 10 aninhos. Foi na cabeça e perdeu o cérebro e foi o mesmo capanga que mandou matar o pai. O João Pedro Teixeira Filho e o João Eudes Teixeira foram assassinados. O Zé Eudes, depois que eu voltei com a anistia, ele chegava, abraçava e dizia que ia continuar a luta do pai dele para o que der e vier. Minha mãe já havia morrido, em 85. Meu pai tinha me dado um pedaço de terra e Zé Eudes me pediu os hectares de terra para construir a casa para ele morar e um salão para fundar o sindicato do camponês. Ele construiu a casa e o salão e fundou o sindicato rural e já estava com 200 companheiros associados e mulheres, quando meu irmão mandou matar… tirar a vida dele. Ele tinha me convidado para uma reunião com os homens e com as mulheres do campo para falar lá. Quando cheguei lá, veio um cara, chamou ele e pá… pá… pá… não tinha chegado ainda nenhum camponês…na minha presença, ele caiu e bateu a cabeça no meu pé e ali morreu. Pensei também que iam até me matar, mas não me mataram. Matou meu filho Zé Eudes, porque ia continuar a luta do pai para o que der e vier.
E qual mensagem que a senhora deixa para os atuais trabalhadores rurais que buscam a reforma agrária?
Elizabeth – A mensagem que eu deixo é que todos continuem. Que todos os companheiros que lutam no campo continuem a luta por uma reforma agrária justa, que dê condições para sobreviver dignamente no campo, porque era isso que João Pedro dizia pra mim que poderiam tirar a vida dele, mas que a reforma agrária iria ser implantada. Eu desejo para todos os companheiros que continuem a luta de João Pedro, que Deus os abençoem e que essa reforma agrária seja implantada para todos os companheiros que trabalham no campo, que tem uma vida sacrificada no campo, sem condições financeiras. Que continuem firme com a luta de João Pedro e a minha luta, com o poder de nosso senhor Jesus Cristo…