Os Sem Terra na Universidade!
Por Bernardo Mançano Fernandes e Antonio Thomas Jr.
É de conhecimento público que a revista Veja tem publicado diversas matérias descaracterizando as experiências de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. As escolas dos assentamentos de Reforma Agrária são públicas, mantidas por prefeituras ou pelas secretarias estaduais de educação, nas quais o Setor de Educação do MST tem participado na construção de propostas pedagógicas, que contribuam para a compreensão dos territórios dos assentamentos, a partir das realidades da agricultura camponesa.
Na matéria em questão a Veja procura descaracterizar os cursos especiais de nível superior. Por meio de convênio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA com universidades federais e estaduais, o MST, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, entre outros movimentos camponeses têm participado como parceiros na realização de cursos de Pedagogia, Geografia, Agronomia, História, Direito etc.
A descaracterização explícita na matéria se apóia em dois eixos argumentativos: a) as distinções entre os cursos regulares e os cursos especiais; b) os “fatos surpreendentes”. Quanto às distinções, destacamos alguns pontos para mostrar os sentidos ideológicos da matéria.
1) A denominada “encenação teatral” é de fato um ato cultural que os movimentos chamam de “mística”. Neste ato, os alunos se utilizam de livros de história e literatura para representar fatos da história do campesinato: lutas, conquistas, massacres, costumes, danças, etc. A mística é uma arte em que por meio da música, teatro, poesia, os alunos manifestam suas leituras das realidades representadas.
2) Na matéria há a afirmação que “as disciplinas são definidas em assembléias”. Como é amplamente conhecido, os programas dos cursos são definidos pelas universidades. O que os alunos podem definir em assembléias são as escolhas por disciplinas optativas oferecidas.
3) A respeito da disciplina História dos Movimentos Sociais. Esta é uma disciplina optativa presente em quase todos os cursos. Evidente que um curso especial dirigido para um público específico, necessita ter disciplinas optativas que contribuam para a melhor compreensão de suas historias.
4) Calendário: todos os cursos oferecidos aos assentados acontecem nos meses de janeiro, fevereiro e julho, obedecendo a carga horário definida nos programas dos cursos.
5) “Privilégios na reserva de vagas”. O que a matéria denomina de privilégios nós compreendemos como direito. Esses jovens entraram nas universidades por meio de programa de políticas públicas criadas pelo governo federal para possibilitar o acesso desses jovens ao Ensino Superior. Considerando que os jovens do campo têm menos probabilidade de entrar na universidade, foram criadas políticas públicas específicas (denominadas de ações afirmativas) para garantir o direito desses jovens ao acesso a uma condição que seria impossível sem as políticas públicas. Portanto, eles concorrem entre eles. É o caso das políticas de cotas para negros. Essas políticas proporcionaram condições para que algumas universidades criassem cotas para alunos egressos de escolas públicas.
6) Che Guevara e Karl Marx. Livros desses dois pensadores estão presentes nas bibliografias de disciplinas específicas, assim como há centenas de outros autores para respectivas disciplinas. Destacar somente esses dois autores demonstra o desconhecimento das bibliografias dos programas dos cursos.
Quanto aos “fatos surpreendentes” há alguns pontos que queremos comentar para uma melhor compreensão da intencionalidade da matéria.
Primeiro “fato surpreendente” é que os cursos especiais ocorrem nas melhores universidades e que oferecem diplomas reconhecidos pelo MEC. Se o “surpreendente” tivesse sentido de magnífico, admirável, não seria de se estranhar. Mas não é esse o sentido. O sentido da matéria é de espantar, assombrar, ou seja, questiona: como é que os sem-terra podem estudar nas melhores universidades?
Outro “fato” é menção a um “currículo aparentemente convencional” em que predomina o discurso anti-capitalista e o ódio ao agronegócio (sic). Essas ênfases correm por conta da jornalista. Os programas dos cursos possuem bibliografias críticas que analisam as desigualdades geradas pelo modo de produção capitalista e, principalmente, pelo agronegócio que expropria milhares de famílias camponesas todos os anos em quase todos os países do mundo.
Ainda há outras ênfases da jornalista que se refere a “visões dogmáticas”, “catequese marxista” e outros termos próprios da lógica da matéria, que procura descaracterizar, sem conhecer os cursos e sem apresentar evidências. Mas o que demonstra melhor o desconhecimento da jornalista é a afirmação que é o “sistema capitalista que financia os cursos especiais”. Ela ignora que o financiamento é de recursos públicos a partir dos impostos e não do “sistema”.
Por fim, ela fecha a matéria com um conhecido preconceito: que esses cursos representam um atraso e não contribuem para a formação de jovens numa sociedade moderna. Se a jornalista se propor a estudar de fato estes cursos e conhecer as comunidades onde esses jovens vivem, verá que estamos contribuindo para o desenvolvimento das comunidades camponesas. Isso é uma forma de atuar na sociedade moderna.
Ainda é importante informar que a jornalista telefonou para os coordenadores dos cursos especiais de Geografia da UNESP e de Pedagogia da UFMG. Ambos solicitaram que as perguntas fossem enviadas por e-mail e que as repostas fossem publicadas integralmente, sem cortes e interpretações da jornalista. O que não foi aceito pela jornalista da Veja.