Internacionalização da Amazônia
A Ditadura Militar de 1964 nos tirou coisas que ainda hoje têm conseqüências fortes no imaginário brasileiro. Uma delas é a confiança nos militares das Forças Armadas do País. Grande parte das monografias apresentadas pelos representantes das três forças apresentam indícios de uma possível investida internacional sobre a Amazônia. No entanto, essas afirmações não são levadas em conta pelos governantes. O professor Humberto Lourenção realizou uma grande pesquisa exploratória documental em sua tese, intitulada Forças Armadas e Amazônia, sobre essas monografias construídas pelos militares que trabalharam na floresta. Com isso, apresenta um panorama do pensamento militar brasileiro sobre a Amazônia. Na entrevista, Humberto falou a respeito deste problema, suas possíveis conseqüências e, ainda, sugere algumas estratégias para que a internacionalização da Amazônia não aconteça.
Humberto Lourenção é formado em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), e em Psicologia, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Realizou diversos aperfeiçoamentos, como em Estado e Desenvolvimento da Questão Nacional no Brasil e Políticas Públicas e Cidadania. É especialista em Filosofia da Educação. Pela Unicamp, obteve o título de mestre em Ciência Política e de doutor em Ciências Sociais. Atualmente, atua como professor na Academia da Força Aérea Brasileira.
Confira a entrevista publicada originalmente no portal IHU On-Line
Observar a Internacionalização da Amazônia sob um olhar humanista e filosófico, e não brasileiro, muda a ótica deste problema?
Humberto Lourenção– Muda um pouco. O olhar humanista filosófico às vezes pode estar acima dos interesses do Estado, da visão da chamada razão de Estado, dependendo do enfoque. Os militares têm uma visão diferente, pois o dever das Forças Armadas é pensar na defesa do Estado. O pensamento deles tende a ver o setor estratégico, porque as relações no plano global são internacionais. As nações, desde a Idade Moderna, são uma realidade no nível global no nosso Planeta. Desse modo, os militares se preocupam com a defesa do Estado, que é a defesa territorial. Conseqüentemente, a Amazônia é a área mais exposta, mais desprotegida, que nós temos no Brasil.
E já há indícios de que há uma grande cobiça internacional por ela, o que faz parte da história da humanidade, de países ou globos mais poderosos, com maior projeção de poder militar. Sob esse ponto de vista, não é inconcebível que alguns países tenham interesses em recursos amazônicos que são escassos, críticos, como, por exemplo, os recursos hídricos. Então, o dever militar é protegê-los. E daí vem a pergunta: por que proteger para os brasileiros e não para toda a humanidade, para todos os seres humanos? Ora, apesar de sermos seres humanos, nós vivemos numa realidade inter-estatal. Você não pode ir agora aos Estados Unidos e aproveitar o sistema previdenciário deles se não tiver a cidadania estadunidense. Isto significa que há recursos que estão confinados aos cidadãos de cada estado, de cada estado nacional.
O senhor observou inúmeros trabalhos de oficiais das Forças Armadas Brasileira. Qual é o pensamento dessa organização em relação à Amazônia? Esse pensamento equivale ao da Igreja, dos movimentos sociais e da população local?
Humberto Lourenção – Eu analisei vários trabalhos. Foram, em grande maioria, monografias produzidas pelas escolas de estado maior das três forças: Marinha, Exército e Aeronáutica. Eu fiz um levantamento de outras publicações também, de revistas oficiais dos comandos militares e também do pensamento deles a respeito da defesa da Amazônia. É um pensamento que difere substancialmente de outras instituições, como o da Igreja, o órgão que representa os movimentos sociais. A Igreja, através do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), atua bastante na Amazônia e tem uma visão antropológica mais voltada para preservação dos costumes, da cultura original dos indígenas de diversas tribos, principalmente, mais isoladas. Já os militares não vêem com bons olhos esse isolamento. Eles optariam por uma integração planejada, racional, dos indígenas com a sociedade ocidental, ou, como queiramos chamar, branca, européia, capitalista, cristã, industrial, pós-industrial, enfim. Então, eles gostariam que o País estivesse provendo aos indígenas um sistema de saúde – dentário, médico -, de educação. Isso iria descaracterizar, é claro, a sua cultura original. Os indígenas estariam aculturados, mas a maior parte dos militares que serviram na Amazônia, que tiveram convivência com eles, pensa que essa aculturação, de qualquer forma, é inevitável, ou seja, ocorrerá inexoravelmente. Então, que ela seja feita de forma planejada, com o que há de melhor da nossa contribuição para os indígenas. Esses, sem dúvida, irão sofrer, recebendo, possivelmente, um subproduto da nossa civilização, o que há de pior, no que se incluem o álcool e outras drogas, além dos programas de televisão menos educativos possíveis. Por isso, tanto melhor se for planejada e feita com cuidado. Essa é uma visão que destoa mais da Igreja, porque ela tende a manter o isolamento, com influência do cristianismo, mas não com outras influências, como as do idioma, da educação, da saúde, da economia – como, por exemplo, levar empresas para lá e encaixar os indígenas em atividades produtivo-capitalista. Existem muitas pessoas da esquerda ligadas à Igreja e que são críticas do capitalismo. Outra crítica dos militares é em relação às ONGs que atuam na Amazônia. Eles não têm bons olhos em relação a elas, principalmente quando as ONGs realizam um trabalho que deveria ser tarefa do estado, antes de tudo em relação à saúde e educação.
Há, realmente, uma conspiração para internacionalizar a Amazônia? Quais são as teorias para a organização dessa conspiração?
Humberto Lourenção – A tese levanta justamente essa idéia: de que há uma parte de integrantes das Forças Armadas que tem chamado a atenção insistente para o risco da internacionalização da Amazônia, para o risco de o Brasil perder a soberania sobre, principalmente, as áreas expostas, que ficam na fronteira norte, com as Guianas, principalmente, e ao sul do Pará, onde existem conflito de terra, além daquelas localizadas na fronteira com a Colômbia e com a Venezuela. Então, eles estão tentando expressar uma preocupação do risco da internacionalização. Para isso, apresentam vários argumentos, afirmando que há indícios desse interesse e um pensamento em se investir contra a Amazônia, se não agora, daqui a 20 ou 30 anos. Ninguém sabe, afinal, quais os recursos, no futuro, estarão realmente chamando a atenção das potências militares e econômicas.
Não se trata de teorias. Os militares têm algumas conjecturas baseadas em declarações de estadistas, de autoridades governamentais estrangeiras, da atuação de ONGs estrangeiras em território brasileiro. Então, não há uma grande formulação embasada. Inclusive, essa investigação seria um bom tema para pesquisa, mas os militares se baseiam em indícios. Por exemplo, há anos atrás circulava na Europa nos carros da Bélgica e Inglaterra um decalque escrito: “Salve a Floresta Amazônica, queime um brasileiro”. Isso, pelo menos para os militares, já é um indício. Ora, se você está formando uma opinião pública mundial de que os brasileiros são irresponsáveis, inconseqüentes e incapazes de cuidar do patrimônio da Amazônia, dos recursos naturais, do meio ambiente, dos índios, então alguém precisa fazer alguma coisa. Nesse caso: “Salve a Amazônia, queime um brasileiro”, que corresponde a algo como: “Vamos tirar a Amazônia dos brasileiros, porque eles não são adequados para a proteção desse patrimônio da humanidade”. Portanto, esse tipo de campanha que ocorreu na Europa é algo que desagrada aos militares. Trata-se de um indício de que está sendo feito aí um meio de campo, preparando a opinião pública mundial para olharem com naturalidade uma intervenção futura, se for o caso. Isso porque já estaria nas mentes e nos corações das pessoas que realmente nós não temos o devido cuidado com aquele ecossistema sensível que é o sistema amazônico.
Os mecanismos atuais de internacionalização operam pelo capital ou pelo território? Por quê?
Humberto Lourenção – Eles apontam para ambos. Porque eles falam já de uma exploração econômica, pelo capital. Afinal, por exemplo, o Brasil assinou a lei internacional de patentes. Hoje, acontece na Amazônia aquilo que é denominado biopirataria, isto é, o tráfico de essências, de plantas, de caules, de animais para pesquisas. Ora, um país mais desenvolvido, que tem uma estrutura muito maior do que a nossa de pesquisa, se vier a fazer um estudo, isolar um princípio ativo e patenteá-lo, fará com que, no futuro, tenhamos que pagar royalties para usar esse princípio ativo que é da flora tradicional da Amazônia. Então, existem agentes na selva coletando isso e também, mais do que isso, se informando com a população local indígena sobre os conhecimentos que ela tem da região, o que gera um problema. Muitas riquezas do nosso subsolo também têm sido tiradas e levadas para fora do país como commoditie, ou seja, sem um valor agregado.
Por que não se dá a devida atenção a esses trabalhos produzidos pelos militares e que alertam para esse grave problema?
Humberto Lourenção – Há uma separação entre o pensamento civil e o pensamento militar. Eu não fiz o levantamento propriamente disso. No entanto, sei que, primeiro, há um certo preconceito contra o pensamento militar por causa da nossa história recente, em relação à Ditadura Militar que criou grandes ressentimentos. A geração de professores e acadêmicos, que são ícones nas universidades, ainda se ressentem do período do regime militar. Pelo menos até agora, não tem havido um bom diálogo entre o pensamento militar e o pensamento civil. Além disso, nós temos um país com várias precariedades e várias demandas. Os militares chamam a atenção para a defesa da Amazônia, assim como outros Ministérios chamam a atenção para a desigualdade social, para a saúde, para a questão da violência urbana nas cidades. No momento, estamos percebendo que nossa infra-estrutura está bastante defasada – de estradas, de portos, de aeroportos -, então são muitas demandas. Portanto, a falta de atenção em relação à defesa da Amazônia se justifica pelo fato de que o País tem muitas precariedades que, talvez, mereçam uma solução mais urgente. Assim, no processo decisório governamental, todos estão apoiando suas queixas, suas demandas. Somando ao preconceito com o pensamento militar, pouco se faz em relação à Amazônia. Se é importante colocar soldados na fronteira norte, também é importante melhorar nossa estrutura de importação, com estradas melhores. A crise aérea demonstra esse problema: pensava-se que tínhamos um sistema aeronáutico eficaz, e ele tem mostrado falhas muito graves.
Que tipo de estratégia o Brasil deveria organizar para defender a floresta?
Humberto Lourenção – Os militares apontam uma estratégia que implica o poder dissuasório, que é fazer uma estratégia de guerra de guerrilha, ou seja, uma estratégia em que desestimule uma eventual investida. Uma estratégia além dessa, falando do aspecto militar, é uma estratégia de integração, porque a defesa hoje se dá por muitos fatores não militares, ou seja, para que as pessoas se sintam brasileiras, se sintam cuidadas pelo Estado, assistidas, deve haver um desenvolvimento sustentável da região, que por si só já seria uma grande defesa da Amazônia, pois ela estaria economicamente ativa. Desse modo, teríamos, ao mesmo tempo, um progresso e uma valorização da atividade do ribeirinho, de cooperativa, de seringueiros, de coleta etc.