O capitalismo financeiro seqüestrou a agricultura
Do Instituto Humanitas Unisinos
Realizou-se entre os dias 16 e 23 de outubro, em Maputo, Moçambique, o quinto encontro internacional da Via Campesina, que reuniu ativistas rurais de todo o mundo. A reportagem é de Luis Hernández Navarro e publicada no jornal mexicano La Jornada, 21-10-2008. A tradução é do Cepat.
Uma das principais causas da atual crise alimentar mundial é a especulação financeira, se diz na quinta conferência da Via Campesina. Mas, como assegurou a indiana Shalmali Gutri, “não se fala disso nos relatórios oficiais”.
A agricultura foi seqüestrada pelo capital financeiro; já não é capaz sequer de definir seus preços, afirma João Pedro Stedile, dirigente do MST.
“Devido à crise financeira dos Estados Unidos – garante o documento de trabalho da Via Campesina para o Congresso – os especuladores começaram a trocar os produtos financeiros por matérias-primas, incluindo os produtos agrícolas. Isto afeta diretamente os preços no mercado doméstico, pois muitos países dependem cada vez mais da importação de alimentos. Isto está ocorrendo enquanto ainda há alimentos suficientes no mundo para alimentar a população global”.
O preço alto dos produtos agrícolas não chegou àqueles que os produzem no campo. O mexicano Alberto Gómez, integrante da coordenação internacional da Via, disse que enquanto os especuladores e grandes negociadores se beneficiam com a crise atual, a maioria dos homens e mulheres do campo não obtém benefícios. “Semeiam, mas a colheita está comprometida por conta dos usurários, dos atravessadores e dos coiotes de colarinho branco dos fundos de investimentos”.
Na Bolsa de Chicago, ilustra João Pedro Stedile, já foram vendidas as safras dos próximos sete anos. Ainda não foram produzidas, mas já têm dono!
As referências à estreita imbricação existente entre a crise financeira, ambiental, energética e ecológica, são comuns nas participações de delegados em mesas regionais e painéis de discussão do Congresso.
“Nunca se havia vivido uma crise como a atual. E não fomos nós que a criamos”, disse o hondurenho Rafael Alegría. “A humanidade está ameaçada, mas não por nós. Pelo contrário, somos aqueles que garantimos os alimentos. Agora, entretanto, é o capital financeiro que tem o controle das colheitas. Especulam com elas. Nós somos chamados a produzir os alimentos que fazem falta. Nem os excedentes da União Européia nem dos Estados Unidos poderão resolver o problema”.
“Em nossos países se produziram revoltas devido à fome, mas aconteceram nas cidades em que se consomem alimentos importados, não no campo”, pontualiza Ibrahima Coulibaly, do Mali. “Em nossas aldeias não houve problemas. Mas, em vez de consumir os nossos alimentos, os governos decidiram subsidiar os alimentos importados”.
Os dados proporcionados no encontro são demolidores. Mostram como, apesar de a produção permanecer elevada, a aposta dos especuladores na escassez para incrementar artificialmente os preços teve sucesso. A produção mundial de grãos na safra 2007/2008 está estimada em 2,1 bilhões de toneladas, o que representa um aumento de 4,7% em relação à safra anterior. Apesar disso, o número de esfomeados no mundo cresceu dramaticamente até alcançar a cifra de um bilhão de pessoas.
João Pedro Stedile sintetizou em cinco pontos a ofensiva do capital financeiro internacional pelo controle da agricultura através de vários mecanismos. Primeiro, através de seus excedentes de capital financeiro; os bancos passaram a comprar ações de centenas de empresas que atuavam em diferentes setores relacionados com a agricultura. E a partir do controle da maior parte das ações, promoveram um processo de concentração monopolística.
Segundo, mediante a dolarização da economia mundial. Isto permitiu que as transnacionais se aproveitassem das taxas de câmbio favoráveis e entrassem nas economias nacionais comprando facilmente as empresas locais dominando assim os mercados produtores e o comércio dos produtos agrícolas.
Terceiro, utilizando as regras impostas pelos organismos internacionais, tais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e os acordos multilaterais, que normalizaram o comércio de produtos agrícolas segundo os interesses das grandes empresas, e obrigaram os governos servis a liberalizarem o comércio destes produtos.
Quarto, graças ao crédito bancário a produção agrícola, cada vez mais dependente de insumos industriais, ficou à mercê da utilização de créditos bancários para financiar a produção. E os bancos financiaram a implantação e o domínio da agricultura industrial em todo o mundo.
Finalmente, na maioria dos países os governos abandonaram as políticas públicas de proteção do mercado agrícola e da economia camponesa.
As conseqüências da crise financeira no campo já começaram a se sentir. O coordenador geral da Via Campesina, o indonésio Henry Saragih, assinala que está havendo uma retração no crédito, e sem crédito não é possível cultivar a terra.
A crise – explica Dena Hoff, da Coalizão de Agricultores Familiares dos Estados Unidos – pode ser para os camponeses “a ocasião que bate à porta”. Shalmali Gutri concorda com ela e adverte que o tsunami financeiro serviu para sacudir e questionar a fé neoliberal. A agricultura camponesa ganhou legitimidade.
João Pedro Stedile concorda com essa análise. Segundo ele, “graças a Deus e ao fato de que Deus continua sendo camponês, a crise nos abre grandes oportunidades”. É o momento não de ficar com os braços cruzados vendo o capitalismo cair, mas de participar de seu enterro.