Seguiremos rompendo cercas
Por Kelli Malfort
Para traçarmos um quadro sobre as perspectivas da atuação do MST para 2009, é necessário entendê-lo no contexto do momento político internacional e no papel que devem cumprir as organizações da classe trabalhadora em torno do projeto da esquerda.
Estamos inseridos num contexto de hegemonia mundial do capitalismo, que historicamente convive e precisa das crises pra se recompor. No entanto, a esquerda brasileira vem produzindo uma análise de que a atual crise é de caráter estrutural e não conjuntural como em outros momentos políticos, com consequências desastrosas para a classe trabalhadora. Estão colocadas questões que não encontram respostas definitivas dentro do atual modo de produção, nas esferas econômica, ambiental, social e política.
Somado a esta análise, a esquerda vem apontando uma ampliação do espaço de organização da classe em torno das necessidades concretas, que estão se tornando cada vez mais gritantes; e também a possibilidade de reascenso das lutas de massas, com um potencial político de enfrentamento ao Capital.
Portanto, está colocado objetivamente que 2009 será um ano de lutas com potencial de avanço na organização enquanto classe trabalhadora. Porém, isso precisa estar na essência das organizações com uma intencionalidade política de caráter estratégico. Este é o desafio principal. E o MST, no marco de seus 25 anos de existência, tem papel fundamental nesta tarefa.
Construímos o MST rompendo cercas e travando lutas importantes não somente para nós Sem Terra, mas para o conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras. Definimos, desde o início de nossa organização, três objetivos principais que nortearam nossa trajetória política: a conquista da terra, a Reforma Agrária e a transformação da sociedade. Conquistamos terras, construímos assentamentos, nos desafiamos na destruição de outras cercas para além do latifúndio, mas não conquistamos a Reforma Agrária.
Nossa luta tem origem na expropriação das terras pela burguesia, o que criou a necessidade material para a organização e a luta dos Sem Terra por um lado e a acumulação de riquezas por outro. “A expropriação do produtor rural, do camponês, quer ficou assim privado de suas terras, constitui a base de todo o processo (…) Aconteceu que uma elite foi acumulando riquezas e a população vadia ficou finalmente sem ter outra coisa pra vender além da própria pele.” (Marx, O Capital, livro I, capítulo 24).
No Brasil, indígenas, posseiros, quilombolas e cangaceiros travaram esta luta. Nos anos 60, a Reforma Agrária entrou na pauta política do país pela força das Ligas Camponesas. Estava colocado para a esquerda brasileira um campo feudal que precisava se desenvolver por meio da Reforma Agrária.
Neste período, a Reforma Agrária estava no centro do projeto político que previa uma etapa nacional burguesa, dentro de uma aliança tática entre a esquerda e a burguesia nacional contra o atraso do latifúndio. Este projeto político foi derrotado pela ditadura militar, que impulsionou um desenvolvimento no campo com a Revolução Verde, perpetuando o latifúndio. Produziu-se no país, neste período, uma cultura de contestação e protestos, impulsionada pelo movimento estudantil e pelo setor progressista da igreja católica.
Com o processo de redemocratização e abertura política, produzido pelo movimento de massas em torno da campanha pelas “Diretas Já” na década de 80, novos instrumentos políticos de organização da classe trabalhadora foram construídos, com destaque para a formação do PT, da CUT e do MST. Autônomos entre si, mas sob o mesmo contexto político, formando um bloco de esquerda com papéis distintos e ao mesmo tempo complementares. Experimentamos um processo fecundo de lutas de massas e avanço nas conquistas concretas.
Neste processo, a esquerda produziu um projeto político Democrático Popular, na certeza que a luta por reformas teria que ser impulsionada pelos trabalhadores e trabalhadoras de maneira autônoma, sem qualquer tipo de aliança com a burguesia.
No final da década de 80, enfrentamos uma derrota do projeto socialista com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS. Para a esquerda, a questão da transformação da sociedade e do socialismo como transição, pouco a pouco, foi ocupando lugar apenas como um valor místico, uma utopia, e deixando de ser um projeto estratégico. Em geral, os instrumentos políticos forjados no contexto anterior foram perdendo sua combatividade e trilhando o caminho da burocratização.
O projeto político da esquerda – Democrático e Popular – foi, e até hoje vem enfrentando barreiras no próprio desenvolvimento capitalista. No campo, o capitalismo se desenvolveu e se consolidou pelo agronegócio, sem a necessidade e espaço para a Reforma Agrária.
A aliança da esquerda em torno do projeto democrático popular está em crise. No entanto, não construímos nenhum projeto político que o supere e é evidente que o descenso das lutas de massas contribui para isso.
O MST é parte integrante desta história e também passa por essa crise. Na busca de nossos objetivos originários – terra, Reforma Agrária e transformação da sociedade –, só encontraremos saídas em conjunto com a organização da classe trabalhadora.
Seguimos nas lutas por conquistas. E pra alcançar a Reforma Agrária, temos que enfrentar e derrotar o capitalismo. Temos o desafio de projetar a materialidade do MST a partir desta perspectiva, produzindo lutas e expressando, nas nossas conquistas, este caráter de enfrentamento à ordem do Capital. As linhas políticas das principais frentes de atuação do MST devem se nortear a partir disso: formação política, relações com a sociedade, assentamentos e massificação.
Temos a tarefa de projetar a nossa organização como uma referência de luta política para a sociedade, nos dispor a contribuir com a construção de outros instrumentos políticos de organização dos trabalhadores e das trabalhadoras e forjar uma nova concepção norteadora da esquerda.
Na luta pela Reforma Agrária não temos todos os elementos materiais para afirmar que 2009 será o ano da massificação, mas temos todas as condições de declará-lo como o ano de intensificação das lutas de caráter político, a partir de alguns elementos históricos acerca da Reforma Agrária e da crise do Capital.