Carta dos Movimentos Sociais das Américas – FSM Belém 2009
– Construindo a integração dos povos desde baixo (desde a base?)
– Impulsionando a Alba e a solidariedade dos povos frente ao do imperialismo.
1. O Capitalismo tem entrado em uma crise profunda, e tenta descarregar sobre nossos povos
O capitalismo central esta sacudido por uma crise estrutural que questiona os paradigmas difundidos pelo neoliberalismo, e que promove sua própria deslegitimação. É uma crise do sistema, que gera super-produção de mercadorias e super-acumulação de capitais, e como conseqüência, o aumento brutal da pobreza, a desigualdade, a exploração e exclusão dos povos, e o saque, contaminação e destruição da natureza.
Os capitalistas pretendem descarregar com maior violência suas crises sobre os trabalhadores e trabalhadoras, sobre os excluídos e excluídas, socializando as perdas, socorrendo aos banqueiros e subsidiando às grandes empresas transnacionais com os fundos públicos. Ao mesmo tempo se agravam as políticas que nestes anos de globalização mundial, desenvolveram um silencioso genocídio de nossas comunidades originárias, promoveram a precarização de milhares de homens e mulheres -especialmente jovens e idosos, violando os direitos humanos, trabalhistas, sociais, destruindo as possibilidades de acesso à educação, a saúde, a terra, o trabalho, a moradia.
Não é necessário descrever as múltiplas conseqüências sobre a vida cotidiana dos povos da ofensiva das corporações transacionais, que avançaram na recolonização da América Latina, considerada pelas mesmas como um grande canteiro para seus negócios. Denunciamos em diferentes foros internacionais e nacionais que nossas enormes riquezas naturais, e a criatividade cultural de nossas comunidades, estão sendo arrasadas em nome do “progresso”, a “civilização”, e o “desenvolvimento” capitalista.
As forças do capital transnacional e dos grandes grupos econômicos locais – expressados por exemplo nas denominadas translatinas -, associadas a uma parte considerável dos governos da região, sob o comando da hegemonia norte-americana, desenvolvem sua ofensiva, e hoje promovem variações da ALCA, através dos TLCs com EUA e Europa. Estas políticas empurraram ao desaparecimento de povoados completos, arrasadas pelos megaprojetos das indústrias extrativistas e agro exportadoras, e condenaram aos povos a uma difícil sobrevivência, asfixiando-nos com uma dívida externa ilegítima, desconhecendo a soberania popular e a soberania nacional. Projetos e iniciativas como a IIIRSA (Iniciativa de Integração da infra-Estrutura Regional Sul-americana), escondem depois do desenvolvimento de interconexões em infra-estrutura, a apropriação transnacional dos bens da natureza.
Para impor esta lógica, o capital reforça a violência e o controle militar, promovendo guerras, invasões, agressões, assim como o estabelecimento de bases militares, de exercícios militares conjuntos, e a criminalização dos movimentos populares, a perseguição dos líderes, assim como o desalojamento de povoações completa. Utilizam intensamente os meios de comunicação de massa para manipular o consenso da opinião pública às políticas repressivas, à penalização judicial, e inclusive os assassinatos de lutadores e lutadoras populares. Com conceitos como os de “ordenamento territorial”, ou “segurança democrática”, se utiliza a matriz de pobreza e exclusão de nossas sociedades, para o recrutamento de exércitos de civis, e a manipulação das comunidades com um sentido contra insurgente. É neste contexto que EUA ativou a IV Frota, como ameaça para os processos sociais transformadores no continente, e que em muitos de nossos países os governos e parlamentos copiam os pacotes de leis “anti-terroristas” que utilizam para combater aos povos.
Esta crise representa uma enorme ameaça para nossos povos, porém, também vemos nela uma nova oportunidade para promover alternativas populares ao sistema, avançando para uma mudança estrutural, cuja vigência e viabilidade se voltam incontestáveis.
2. Um projeto de vida dos povos, frente ao projeto do imperialismo
Nos movimentos populares percebemos que o contintente está atravessando um novo momento político e social, no qual se expressou de diferentes atitudes, através de povoadas, manifestações massivas, eleições locais e nacionais, lutas políticas e sociais, o cansaço frente às políticas neoliberais.
Nos movimentos sociais estamos em uma nova fase destas lutas, no marco de um longo período de transição, recomposição e acumulação de forças, de confrontações com o capital, de construção de nossas organizações, e de formação de militantes com capacidade para assumir os novos desafios.
Nesta fase vamos intensificando as ações de resistência, e também as experiências alternativas, de poder popular, de exercício de soberania, e inclusive de relação com alguns governos que expressam -de maneira contraditória- os interesses das maiorias.
Nos movimentos populares enfrentamos as dificuldades que surgem de várias décadas de extermínio de nossa população e de nossas organizações, e as debilidades que surgem da confusão social semeada pelo neoliberalismo, através de seus poderosos meios de in-comunicação e manipulação da opinião pública mundial, de suas políticas educativas monitoradas pelo Banco Mundial, de suas políticas de controle social e domesticação, através do assistencialismo, realizado como forma de reprodução da exclusão, da propagação de formas de religiosidade alienantes, da criminalização da pobreza, e da judicialização e repressão do protesto social.
É necessário construir coletivamente um projeto popular de integração latino-americana, que reformule o conceito de “desenvolvimento”, sobre a base da defesa dos bens comuns da natureza e da vida, que avance para a criação de um modelo civilizatório alternativo ao projeto depredador do capitalismo, que assegure a soberania latino-americana frente às políticas de saque do imperialismo e das transnacionais, e que assuma o conjunto das dimensões emancipatorias, enfrentando as múltiplas opressões geradas pela exploração capitalista, a dominação colonial, e o patriarcado, que reforça a opressão sobre as mulheres.
Nos movimentos populares defendemos um projeto de vida, frente ao projeto de morte, no qual a produção não seja destruição, mas parte de um processo criativo, sustentável e com justiça social. Estamos colocando a necessidade de colocar em debate um novo ideal de vida frente ao neoliberalismo e às ordens do capital transnacional e seu comando único, que semeia a morte em guerras, invasões, e o avassalamento da soberania dos povos e das nações em todos os continentes.
3. Nossos princípios
A integração de nossos povos, desde baixo, partindo dos movimentos populares, e inspirados nas batalhas anti-coloniais, anti-capitalistas, anti-patriarcais e anti-imperialistas, que desde mais de 500 anos vêm tomando forma nestas terras, tem como princípios fundamentais:
– A solidariedade permanente entre os povos, a inclinação de ações concretas, frente a cada uma das lutas contra a dominação do capital, e contra todas as formas de opressão e dominação.
– O respeito à autodeterminação dos povos, à soberania nacional e popular.
– A defesa irrestrita da soberania em todas as ordens: política, econômica, social, cultural, territorial, alimentar, energética.
– A integração tecnológica e produtiva, de acordo com um modelo sustentável, a serviço dos povos.
– A soberania das mulheres sobre seus corpos e sobre suas vidas.
– A formação política de nossos movimentos populares e de nossos povos, para tornarmos sujeitos conscientes na criação histórica.
– A unidade dentro da diversidade cultural, social, e o respeito às diferentes opções sexuais que se expressam em nosso continente.
– A defesa dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras e territórios. A demanda aos Estados da regularização com certeza jurídica dessas terras em favor das comunidades e povos indígenas.
– A defesa do reconhecimento por parte dos Estados, de direitos fundamentais dos povos indígenas, como formas de organização própria, estrutura organizacional, autoridades ancestrais, sistemas jurídicos próprios dos povos, etc.
– A inclusão social da subjetividade dos povos negros das Américas.
– A defesa dos direitos humanos das e dos migrantes.
– A defesa da identidade, da cultura, e o respeito pelas formas próprias de inclusão da subjetividade dos povos negros das Américas.
– A plena autonomia dos movimentos populares para definir seus objetivos, suas formas de organização e de luta.
– A recriação de um novo internacionalismo de povos em luta, através de uma autêntica perspectiva de integração popular que seja plural, horizontal, com uma clara definição ideológica anti-neoliberal, anti-capitalista, anti-patriarcal e anti-imperialista.
4. Nossos objetivos
Este processo de integração de movimentos e organizações sociais impulsiona os princípios da ALBA, e por sua vez quer promover diversos mecanismos e potencialidades que oferece a ALBA, para potencializar a integração latino-americana desde os povos.
São nossos objetivos:
– A rejeição às políticas, planos e leis de minerarias, de hidrocarburos, agronegócios, agro-combustiveis, mega projetos, às iniciativas de infra-estrutura do IIRSA, que destroem às comunidades, desconhecem seus direitos fundamentais, eliminam a diversidade cultural, destroem os ecossistemas e o ambiente.
– A denúncia do modelo de agricultura das transnacionais, que se apropriam da natureza, e transformam os alimentos em mercadorias, e a proposta de apoiar um modelo de agricultura popular, camponesa, indígena, promovendo a reforma agrária integral.
– O repúdio ao pagamento das dívidas ilegítimas e o re-impulso à luta continental contra o pagamento da dívida externa.
– A luta pelo cancelamento dos tratados de livre comércio com Estados Unidos e a Europa, como o TLCAN, com a América Central, o Chile, Peru; e pela não aprovação do tratado com a Colômbia.
– A defesa do direito das comunidades e habitantes, pelo direito à moradia, a terra, e por “zero desalojamento”.
– Toda a propriedade tem que ter uma função social coletiva.
– A defesa dos direitos dos desalojados e desalojas a retornar a suas terras, e a ter acesso a todos os direitos humanos e a condições de vida digna onde se encontrem.
– A denúncia do papel das instituições financeiras internacionais, como instrumentos do capital.
– A denúncia do uso que faz o sistema capitalista de situações como a mudança climática, a crise alimentar, energética, para promover a privatização e mercantilização da natureza, e impor a liberação do comércio dando maior poder às transnacionais.
– A defesa de nossos territórios, contra a mercantilização e privatização da natureza.
– A defesa do direito ao trabalho, o enfrentamento a todas as medidas neoliberais de flexibilização e precarização trabalhista, de deterioração do salário.
– A promoção em todos os espaços da paridade de gênero, e a luta contra a violência as mulheres, assim como pela possibilidade de decidir sobre suas próprias vidas.
– A erradicação das diferentes formas de trabalho escravo.
– A denúncia da exploração do trabalho infantil, e a luta pela sua erradicação.
5. Nossas prioridades
Nesta primeira etapa de criação de uma integração popular, analisamos como prioridades:
– Elevar a mobilização de massa contra o capital transnacional e os governos que atuam como cúmplices do saque. É a mobilização de massa que criará a força necessária para promover transformações populares.
– Elevar o nível cultural e educacional, e a consciência da população.
– Avançar na formação política dos e das militantes populares. Promover processos de formação política de massa, e impulsionar o trabalho de educação popular nas bases.
– Promover um debate profundo sobre o modelo de desenvolvimento capitalista, e sobre a necessidade de gerar modelos alternativos em todos os planos.
– Promover uma batalha continental pela reforma agrária, contra o uso das sementes transgênicas, os agrocombustiveis industriais, e o agronegócio em todas suas fases.
– Viabilizar o aporte do trabalho não remunerado das mulheres à economia, e incorporar esse olhar nas lutas e propostas políticas sobre a migração, a soberania alimentar e o modelo de desenvolvimento.
– Desenvolver ações práticas de solidariedade antiimperialista: frente à repressão, a militarização, tal como se manifesta em nosso continente, através, por exemplo, da implementação do Plano Colômbia, e da ocupação do Haiti por tropas de países latino-americanos, contra as bases militares norte-americanas no continente, a criminalização dos movimentos sociais, a luta pela liberdade dos e das pres@s políticos.
– Impedir e rejeitar os assassinatos e desaparecimentos forçados de líderes sociais e populares, e de seus próximos. Que pare o método de impor o lucro do grande capital e do latifúndio, com sangue do povo.
– Defender a livre circulação das pessoas em nosso continente.
– Contribuir com os planos de cooperação que existem entre os governos da ALBA, assegurando que beneficiem aos setores mais postergados de nossos povos.
– Apoiar as iniciativas e desenvolver ações próprias dirigidas a erradicar o analfabetismo em nosso continente.
– Potencializar a comunicação entre os povos, articulando suas redes existentes, e criando novas redes onde seja necessário.
– Contribuir a que os e as jovens tenham um espaço fundamental neste projeto, participando desde seus próprios objetivos, você interesse, conceitos e metodologia de construção.
– Promover a organização dos/as trabalhadores/as, impulsionando práticas que promovam a democracia de base, e uma autêntica democracia sindical.
6. Metodologias
Um tema fundamental, para respeitar os processos coletivos de construção de nossa integração, é definir uma metodologia que nos permita ir avançando para esse objetivo. Em tal sentido, a proposta que colocamos em discussão parte de:
– Promover processos de integração popular em nossos países. Promover reuniões nacionais para construir uma agenda mínima de trabalho com esta Carta. Este processo de integração buscará contar com mecanismos concretos de unificação das lutas, que favoreçam a participação dos movimentos e organizações sociais.
– Organizar um grande debate dos movimentos sociais em todos os níveis, partindo e priorizando o trabalho de base.
– Definir planos de ação muito concretos, que apontem a um exercício prático de busca de soluções concretas para as necessidades cotidianas da vida da população.
– Fazer um diagnóstico que nos permita identificar as nossas próprias forças, e definir o espaço estratégico que seria necessário potencializar.
– Criar uma pedagogia de construção do espaço comum.
– Sustentar e reafirmar a autonomia dos movimentos populares em relação aos governos. Desde essa autonomia estabelecer uma relação entre os movimentos, com os governos que promovem a ALBA.
– Organizar o intercâmbio e o conhecimento direto de nossas experiências de construção de poder popular, assim como a coordenação continental das reivindicações e demandas de nossos movimentos territoriais, sindicais, culturais, camponeses, e de comunicação popular.
7. Avançar agora
No novo contexto latino-americano, há numerosas oportunidades para ir gestando uma nova ofensiva dos povos. Mas existem também muitas ameaças aos processos em andamento. É impossível de enfrentar as políticas do grande capital transnacional e do imperialismo, desde as resistências dispersas de nossos povos. Não é possível também delegar os processos de integração latino-americana nos governos (por mais que estes tenham uma responsabilidade indiscutível em promovê-la). O que se avanço desde os governos nesta direção, será um estímulo à criação de laços de cooperação solidárias, que apoiaremos e sustentaremos como parte das lutas antiimperialistas. Mas é imprescindível estimular processos de integração, baseados em um poder popular, criado desde as raízes mesmas da luta histórica de nosso continente.
E é necessário avançar agora, superando sectarismos, cálculos estreitos, mesquinharias. É necessário avançar agora, para que preparemos a plataforma de unidade que permita sustentar e defender as lutas, por uma nova façanha de independência latino-americana, dos povos e para os povos, por uma integração popular, pela vida, pela justiça, pela paz, pela soberania, pela identidade, pela igualdade, pela liberdade da América Latina, por uma autêntica emancipação, que tenha no seu horizonte o socialismo.
CONVOCAÇÃO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS DAS AMÉRICAS
Desde Belém, onde nos reunimos centenas de movimentos sociais de todos os países das Américas, que nos identificamos com o processo de construção da ALBA, nos convocamos e nos comprometemos para:
1. Em cada país realizar plenárias nacionais, que gerem coletivos unitários de construção da ALBA.
2. Promover um grande encontro continental de todos os movimentos, para o segundo semestre de 2009, em caminho à articulação dos Movimentos Sociais com a ALBA.
3. Colocar todas as nossas energias para a Mobilização Mundial Contra a Guerra e a Crise, na semana do 28 a 4 de abril, reforçando o dia 30 de março, como dia de mobilização continental.
4. Participar de forma ativa nas mobilizações e interesse dos povos, nas jornadas do 8 de março, 17 de abril, 1 de maio e 12 de outubro, como datas históricas de nossos povos.
5. Seguir impulsionando a solidariedade concreta com os povos em luta contra o império, no Haiti, Colômbia, Cuba, Venezuela, Bolívia.
5. Seguir impulsionando as ações concretas de construção da ALBA, como os programas: ELAM, de alfabetização de adultos, os cursos latinos da ENFF, o IALA, a Operação Milagro, etc.
“A unidade e integração de Nossa a América, está em nosso horizonte e é nosso caminho.”
Belém, 30 de janeiro de 2009