Fazenda de Dantas: “Há certo receio do judiciário em discutir a propriedade”

Do Amazonia.org.br

Em entrevista exclusiva ao Amazonia.org.br, o procurador-geral do estado do Pará, Ibrahim Rocha, que trabalha em vários processos relacionados à questão fundiária no Estado, fala sobre o caso da ocupação das fazendas do banqueiro Daniel Dantas e, de um ponto de vista jurídico, analisa o caos fundiário na região. Confira.

Quantas ações similares à da Fazenda Castanhal, de propriedade de Daniel Dantas, estão em curso no Pará?

O Estado tem aproximadamente 60 ações ajuizadas

Na sua opinião, todas essas ações são ligadas à grilagem?

São causas variadas de grilagem, mas no geral, o cerne comum são ações de combate à grilagem em terras públicas.

Na sua opinião, qual o principal motivo pela grilagem no Pará hoje?

Primeiro que nós temos cartorários que nunca exerceram de fato o ofício de matricular somente o que era de direito, mas admitiram vários títulos que não eram registrados como representativos de domínio e por aí se criou uma grande facilidade na especulação do direito à terra que gerou esse caos hoje existente no Estado.

A impunidade está relacionada a isso?

Com toda certeza, porque não sendo apurados, não sendo devidamente corrigidos esses descalabros e também com pouca eficiência nas decisões para cancelar esses registros imobiliários irregulares, incentiva-se a impunidade e o pensamento de que é fácil grilar terra pública.

Com relação ao caso do Daniel Dantas e da fazenda Castanhal Espírito Santo, que teve o registro bloqueado recentemente, por que ainda não houve o cancelamento definitivo do registro? Por que por enquanto só houve uma suspensão?

O Estado requereu o cancelamento definitivo por entender que uma vez que o objeto para o qual foi concedido o aforamento – que é a exploração de castanhal – foi totalmente desvirtuado e mesmo no contato de aforamento a terra permanece como pública, na verdade o que tem que se cancelar é a concessão de aforamento.

Então deveria ter sido concedida essa decisão pelo juiz liminarmente, mas não foi o que aconteceu. E neste sentido, estamos apresentando a réplica. Esperamos que então a Justiça decrete – da maneira mais rápida possível – o cancelamento deste registro imobiliário que diz respeito ao contato de aforamento e que a terra então seja plenamente do Estado.

O processo de investigação que dá subsídios à decisão do juiz já está completa?

Sim. Toda a documentação comprova que foi feita a promessa de compra e venda sem autorização do Estado; a prova pública de que na verdade não tem mais castanhal no local, portanto não tem mais sentido nenhum se falar em contato de aforamento – além do que a própria autorização para a consolidação da área do aforamento como propriedade não foi feita na forma da Lei, com autorização do governador. Então há uma série de irregularidade que só levam a um caminho: o reconhecimento de que essas são terras públicas estaduais.

Então já foi proposto esse novo pedido para o cancelamento. Foi um recurso?

Desde que nós ajuizamos a ação, pedimos o cancelamento, não apenas o bloqueio. O juiz é que deferiu pelo bloqueio apenas. E como é uma decisão cautelar e nós achamos que seria difícil convencer o tribunal sem que o juiz titular sentenciasse pelo cancelamento, nós decidimos não recorrer, mas sim insistir que o próprio juiz julgasse rapidamente e decretasse a nulidade.

Qual prazo deve transcorrer até que haja uma decisão sobre o caso?

Esse é o problema, o judiciário tem sido muito lento. Mas estamos insistindo para que o julgamento ocorra em breve. Estamos instigando para isso, mas não temos como antecipar a decisão final.

O senhor acha que o grande número de ações ligadas à grilagem é o que dificulta a decisão rápida das ações ou tem algum outro motivo?

Acho que o pouco conhecimento da matéria por parte dos juízes e o medo de que o Estado vá retirar supostos produtores rurais, quando na verdade o que o Estado quer é que a terra volte a ele.

O que o cidadão tiver de direitos, será reconhecido. O que não pode é ele ficar sobre a terra como se fosse dono dela sem pagar nada a quem realmente é o seu dono, que é o Estado.

Quando o senhor fala desse medo dos juízes, estaria aí o motivo para a Vara de Marabá ter deferido recentemente um pedido de liminar feito de forma fraudulenta por Daniel Dantas? Isso porque o pedido dele se refere à fazenda Espírito Santo, que está sob a vara de Redenção.

Na verdade, a decisão não foi concedida pelo juiz da Vara Agrária e sim pelo tribunal. Quem foi induzido ao erro foi o tribunal e não a vara. A vara não tinha concedido a liminar. A Vara Agrária de Marabá tinha caçado a liminar concedida pelo juiz de plantão e o tribunal reformou essa decisão e concedeu a liminar de forma confusa, vamos dizer assim.

Essa decisão pode ter algum afeito prático, já que ela é inválida por conter vício processual?

Ela não tem o efeito prático, por exemplo, de desocupar uma vara que está a 220 km de Marabá quando a decisão diz que a fazenda está a 105 km. Esse é um problema prático, não tem como cumprir a decisão, se ela fosse legítima.

E não há, até agora, nenhuma iniciativa de cumprir essa decisão?

O Estado não recebeu nenhuma intimação. Quando receber e se receber irá discutir essa questão do objeto, da forma de cumprimento.

O senhor considera que essa decisão foi um erro, uma confusão, ou tem relação com esse medo que o senhor comentou anteriormente?

Um pouco de cada. Há certo receio do judiciário em discutir a propriedade, em notificar para saber se a pessoa é realmente proprietária da terra.

E há grande repercussão na mídia sobre a suposta invasão da propriedade. Isso induz o juiz ao erro, como a empresa conseguiu induzir nesse caso concreto.

Só a partir dessa ocupação pelo MST é que acabou sendo discutindo a questão agrária na região, por que antes não foi feita nenhuma investigação nesse sentido?

Não, na verdade foi feito. Tanto que a nossa a ação foi ajuizada em setembro de 2008, muito antes da invasão. E a concessão da liminar do Estado, nesse caso concreto da (fazenda) Espírito Santo, foi em janeiro de 2009. Portanto, foi muito antes da invasão. Na verdade o Estado já vinha sim, discutindo isso.

E o processo de reunião de provas é lento mesmo?

Na verdade, nós temos uma grande dificuldade que é os cartorários não informarem para o Estado sobre os títulos quando o Estado pede informação.

Inclusive, nós estamos entrando com pedido na Corregedoria de Justiça do Interior para que ela obrigue os cartórios a acelerar o fornecimento dessas informações, que são essenciais para a gente poder ajuizar as ações.

Esse caso da decisão do Tribunal de Justiça, assim como o fato de dois habeas corpus que foram concedidos pelo Gilmar Mendes para o Daniel Dantas, revela uma conivência do poder judiciário com as invasões de terras e com os grileiros?

Eu não diria que o poder judiciário atua de forma conivente, porque isso seria muito forte, seria desacreditar na Justiça e assim ficaria sem função, a função do advogado. A gente poderia dizer que esses advogados têm, vamos dizer assim, um apurado técnico que torna mais fácil chegar aos tribunais do que as causas dos pequenos, e com isso, eles conseguem muitas vezes obter essas liminares.

Mas não posso desacreditar no poder judiciário. Não posso pensar que o poder judiciário está conivente com os banqueiros e com a grilagem, isso seria muito forte.

E caso o juiz acate o pedido que foi feito pelo senhor já será possível que a Agropecuária Santa Barbara deixe as terras?

Não, ai é que está. Se a gente conseguir que se decrete que a terra é pública, o Estado vai ver o que de fato a Agropecuária ocupa e o que ela tem direito a regularização fundiária na forma da lei. Boa parte daquela terra não é ocupada e ai vai retornar ao Estado e o que ela tiver efetivamente ocupado, vai ter que demonstrar que cumpre sua função social e vai ter que comprar do Estado. É assim que funciona.

A agropecuária também vai ter a possibilidade de alegar boa fé na aquisição das terras?

Na verdade o Estado não vê a boa fé, o Estado vê a questão da produção. O que interessa para o Estado é que esteja produzindo. Não interessa se ele pagou para A ou B, se estava de boa ou má fé. O que interessa é que ele está ocupando. A boa fé dele é demonstrada pelo que ele estiver ocupando.

O Estado indenizaria essa produção que foi feita no local?

Não, não indenizaria. Isso seria um requisito para ele ter o direito de comprar a terra do Estado e nada mais.

O interesse público nessa hora também é avaliado ou apenas o nível de produtividade?

O próprio nível de produtividade tem a ver com o interesse público, porque se o Estado eventualmente entender que ele não tem direito à terra, por qualquer motivo, ele tem que sair de lá. Nesse caso, evidentemente, as benfeitorias teriam que ser indenizadas. Então não faz muito sentido o Estado ter que pagar, podendo reconhecer um direito menor. É isso que acontece em qualquer área do poder público.

Caso se comprove mesmo que a Agropecuária Santa Bárbara incorreu em todos esses crimes, qual será a penalização?

Civilmente o Estado vai requerer o direito à terra, à propriedade, portanto vai haver a perda da propriedade em toda sua extensão.

O Estado vai regularizar somente o que estiver efetivamente ocupado, sem prejuízo, claro, de qualquer dano ambiental. No que diz respeito à questão penal, já foi remetido os atos ao Ministério Público e a qualquer momento pode oferecer uma denúncia criminal contra o grupo (Opportunity – proprietário das fazendas, cujo maior acionista é o banqueiro Daniel Dantas).

Foi lançado na semana passada o resultado de uma pesquisa feita pela comissão permanente de monitoramento, estudo e assessoramento das questões ligadas a grilagem. O senhor está acompanhando essa pesquisa, os resultados?

Sim, eu estava lá no lançamento. A procuradoria geral do estado integra a comissão, nós ajudamos a elaborar o estudo da comissão.

E qual a avaliação que o senhor faz dos resultados?

Sempre houve uma denúncia dos vários movimentos sociais, é de conhecimento público, desse caos fundiário, mas você nunca tinha os números. O que a comissão fez foi isso foi demonstrar de forma cabal os números desse absurdo fundiário.

Quais seriam as medidas emergenciais que a sociedade deveria cobrar para que houvesse melhoria desse caos?

Seria e foi feito pela comissão, requerer que o tribunal admitisse a possibilidade de cancelamento administrativo. Inclusive agora, e nós estamos apoiando isso, o Estado vai recorrer ao Conselho Nacional de Justiça requerendo que reforme e oriente o tribunal no sentido de criar um procedimento que permita o cancelamento administrativo dos casos ditos fraudulentos.

Ao invés de o Estado ficar entrando com ações para cancelar títulos que levam anos na Justiça, na verdade seria o grileiro que teria que correr atrás do Estado para provar que a terra dele é legítima. Teria muito mais agilidade, porque não teriam recursos administrativos ali cabíveis.