A luta para além da terra
Crise, desemprego, concentração de renda, fundiária etc. Estes são alguns dos elementos que fazem parte deste momento da História. No campo, o agronegócio tem acesso a recursos públicos e o caminho aberto para suas práticas ilegais e destrutivas. Por outro lado, 4 milhões de sem-terra disputam algum espaço nas já inchadas periferias urbanas e em acampamentos pelo Brasil. O que apontar para a nossa atuação no próximo período? Por qual Reforma Agrária lutamos? Para obter mais elementos para este debate com a militância, o Jornal Sem terra conversou com Débora Nunes, da coordenação nacional do Movimento no estado de Alagoas. Leia abaixo a entrevista.
Jornal Sem Terra – Ao longo destes 25 anos, o MST ocupou e conseguiu democratizar muito latifúndio. Hoje, são mais de 370 mil famílias assentadas. Qual a avaliação com relação à situação de vida dos assentados?
Débora Nunes – A nossa compreensão do que é o espaço do assentamento e do papel que ele tem que cumprir na sociedade tem mudado ao longo dos anos. A gente compreendia que a luta pela terra iria resolver os problemas no campo, e com a experiência passamos a agregar outros elementos à luta pela Reforma Agrária e à luta pela transformação da sociedade. A gente, é claro, ainda encontra limites em nossa atuação na organização dos assentamentos, mas não dá para desconsiderar que avançamos. Não dá para desconsiderar que famílias que se encontravam na exclusão total – que foram expulsas do campo, que não conseguiram se encontrar na cidade, ter acesso às políticas públicas, emprego etc – hoje assentadas, tiveram melhoria significativa em suas vidas. A Reforma Agrária cumpre este papel. Traz de volta o homem para o campo e continua a pressionar o Estado. Olhar para os assentamentos nestes 25 anos é ter esta certeza: de que a luta pela Reforma Agrária, a luta do MST tem possibilitado que pessoas que foram excluídas do campo pelo modelo capitalista possam retornar. Os assentamentos vão cumprir o papel de garantir os direitos negados àqueles que foram expulsos do campo. Garantir, em especial, a elevação da consciência que o processo de luta permite.
JST – Ao agregar outros elementos na luta pela terra, e considerando as mudanças ocorridas na sociedade – o que levou o Movimento a atuar em regiões metropolitanas das grandes capitais – qual seria o perfil do acampado hoje?
DN – Não dá para avaliar o perfil do acampado de forma descontextualizada. O conjunto da sociedade brasileira passou por muitas mudanças nos últimos anos. Ainda no século passado, antes do processo de industrialização, nós tínhamos um maior número de pessoas no campo. Com o processo de industrialização, de mecanização do campo, com a revolução verde, as pessoas passam a ser empurradas para a cidade. E na cidade, sem as condições necessárias para viver,acontece o que a gente vê diariamente. A concentração sem infra-estrutura, sem acesso à educação, à saúde, emprego… Então, dizer que o perfil do Sem Terra mudou, é dizer que a sociedade também mudou. Nas gerações anteriores, os pais destas pessoas expulsas do campo, na década de 80, muitas vezes tiveram contato com a terra, e em outras gerações não. Porém, nosso entendimento é que a Reforma Agrária é uma alternativa para resolver os problemas estruturais que existem hoje na sociedade.
JST – E o que estas mudanças na sociedade refletiram em nossa prática?
DN – O próprio rumo que a Reforma Agrária foi tomando começou a exigir do conjunto do Movimento repensar, reconstruir e rediscutir sua prática, sua forma de organizar, de ver o assentamento, de ver o conjunto da sociedade. A luta extrapolou os limites da terra, e ampliou-se para a necessidade da luta pela transformação da sociedade.
Isso fez o Movimento deixar de olhar somente para o campo, mas passar a olhar para o todo da sociedade. Até porque entendemos que a luta pela Reforma Agrária acontece no campo, mas precisa ser uma luta do conjunto da sociedade. Com esta mudança de entendimento, exigiu-se um novo olhar, uma nova prática também dos militantes. De compreender a dinâmica da sociedade, do conjunto dos problemas…
JST – E as mudanças não se restringem ao olhar para fora. O acúmulo e a experiência em
organizar o espaço do assentamento também passaram por modificações. Como o MST enxerga esta organização hoje?
DN – A lógica de mudanças na organização dos assentamentos dentro do MST partiu de uma demanda da produção. Desde o início, o MST entendeu que o espaço do assentamento precisava ser discutido e construído coletivamente com as famílias. E isso se reflete na formação de conjuntos que discutem este espaço: as coordenações dos assentamentos, grupos comunitários de famílias, cooperativas de produção, cooperativas dos assentados, núcleos de base, comunas, grupo de mulheres, a própria organicidade dos setores. Então, o Movimento sempre teve este olhar, porém muito mais voltado para a dimensão econômica e produtiva do assentamento. Mas os rumos e as próprias contradições e limites que fomos encontrandoforam nos colocando novos desafios, em especial, o de compreender os assentamentos para além da questão da produção e econômica. Conseguir enxergar o assentamento em sua totalidade. Pensar a viabilidade da produção, mas pensar também a moradia de forma a garantir o convívio social das famílias. Pensar as infra-estruturas sociais e produtivas. Pensar a participação de toda a família, com o envolvimento das mulheres, crianças e jovens. Pensar as outras dimensões do assentamento, da educação, da formação, do trabalho e do lazer. E na produção também houve mudanças. Como que a gente pensa um novo jeito de produzir, uma nova matriz produtiva, tecnológica, que seja contraponto ao modelo do agronegócio?
JST – E a gente conseguiu avançar pensando essa totalidade?
DN – Acredito que sim. Primeiro porque não ficou simplesmente a cargo do Estado fazer isso. Demandamos as políticas, mas temos contribuído também na discussão e na organização com as famílias. A partir das experiências, dos equívocos, dos limites encontrados, temos feito um processo permanente de discussão, avaliação, debates. Estes avanços ainda são limitados pela própria lógica do Estado. Nós participamos, discutimos e remetemos as demandas para o Estado, mas como a Reforma Agrária nunca foi uma política prioritária, que tivesse dentro de um projeto popular de desenvolvimento nacional, ela tem limites. Mas há uma apropriação maior do conjunto da organização no que se refere à forma de organizar e o olhar que temos sobre os assentamentos. Sem dúvida há avanços. A gente tem avançado, mas ainda de forma insuficiente.
JST – Todo este novo olhar nos levou a acumular nos debates e na elaboração de um projeto de Reforma Agrária. Quais as diferenças entre a Reforma Agrária clássica e a Popular?
DN – Até pouco tempo se tinha um entendimento que a Reforma Agrária teria que cumprir o papel de democratizar o acesso à terra, garantir o desenvolvimento da indústria nacional, fortalecer o mercado interno. Durante muito tempo acreditamos nessa Reforma Agrária. Inclusive porque esta Reforma, que a gente chama de clássica e tradicional, o próprio capitalismo impõe como necessidade para sua manutenção e desenvolvimento. E no caso do Brasil essa Reforma Agrária não pôde ser realizada, foi impedida pela elite brasileira, que entendia, equivocadamente, que ela seria um limite para o desenvolvimento do Brasil. Mas nosso acúmulo nos permite dizer com clareza que este modelo tradicional está superado. Hoje a gente tem lutado para a realização de uma Reforma Agrária Popular que garanta, primeiro, o assentamento de todas as famílias acampadas. E aí falamos dos acampados, mas não podemos deixar de falar que hoje no Brasil existem 4 milhões de famílias sem-terra, segundo dados do próprio governo.
Uma Reforma Agrária que assente todas as famílias que não têm terra, que garanta de forma massiva a democratização da terra, que deve estar casada com um projeto de desenvolvimento para o campo que estabeleça um novo jeito de produzir, uma nova matriz produtiva e tecnológica, que estimule e desenvolva práticas agroecológicas, que priorize a produção de alimentos, de preservação das sementes crioulas, uma produção que respeite e cuide do meio ambiente. É preciso repensar tudo isso na atual lógica da estrutura fundiária. E pensar também em uma Reforma Agrária que possa se aproximar dos grandes centros das cidades, que viabilize não só esta relação, mas que minimize custos, permitindo que a produção chegue às cidades e que o trabalhador urbano tenha acesso a alimentos diversificados e a custos baixos. Uma Reforma Agrária que garanta as condições estruturais de acesso à escola, educação universal em todos os níveis, que respeite a diversidade cultural. Então, uma Reforma Agrária que foge dos moldes de distribuição de terra, que desenvolva o mercado interno e a indústria nacional. E não pode ser feita de forma pontual, somente para resolver os conflitos. É preciso dar uma nova cara ao campo, dando atenção ao conjunto das necessidades, das demandas sociais e culturais do povo brasileiro.
JST – É necessário demandar ao Estado as necessidades do povo. Há uma diferença de atuação do Estado dentro dos acampamentos e assentamentos. Qual é esta diferença?
DN – A grande diferença entre a relação ou atuação do Estado parte de que o acampamento, em sua totalidade, não é reconhecido. Isso é contraditório, porque as pessoas acampadas, independente das condições, teoricamente têm direito a uma série de coisas, e não é preciso ser assentado para ter acesso a esses direitos. Mas, pela dinâmica do Estado, esses direitos são negados. Com o assentamento, o Estado passa a reconhecer e coloca lá a sua placa. O Estado teve uma inserção muito mais forte há alguns anos, na lógica de querer estimular que o acampamento é um problema dos movimentos sociais e quando se tornava assentamento, passava a ser uma questão para o Estado cuidar. Então passou a ser uma lógica de querer agir como tutor, inclusive tirando a presença dos movimentos destes assentamentos. Na época do FHC, havia alguns agentes que iam para os assentamentos justamente para desmobilizar as famílias.Temos clareza que o Estado tem um papel a cumprir, tem que garantir as políticas públicas e subsidiar a agricultura,mas a gente entende que isso não dá a ele a competência de querer gerir politicamente os assentamentos. Às vezes o Estado confunde isso. E nesse confundir, deixa de garantir as políticas que seriam necessárias para desenvolver os assentamentos. A presença do Estado deve existir, mas não pode se confundir com a organização política, com o referencial de organização que cabe ao Movimento.
JST – Considerando que a luta por Reforma Agrária não se restringe aos trabalhadores do campo, o que o MST tem feito para dialogar com a sociedade para assumir e ampliar a luta pela Reforma Agrária?
DN – Dentro da compreensão de ampliação das nossas lutas e do entendimento do papel que a Reforma Agrária Popular deve cumprir; dentro da mudança do perfil do acampado, do entendimento que a luta pela Reforma Agrária extrapolou o território do rural e do urbano, o MST entende que é de fundamental importância que os movimentos e organizações urbanas, que não fazem a luta pela terra, se engajem na luta pela Reforma Agrária. A luta como uma forma de resolver os problemas do campo, mas entendendo que parte destes problemas também está presente nas cidades, como fruto da lógica de mudança na sociedade: há um tempo, a maioria da população estava no campo e hoje se concentra nos grandes centros urbanos. A gente ganhou aliados e apoiadores com a compreensão de que as transformações da sociedade passam necessariamente pela realização da Reforma Agrária.