Herança colonial é “turbinada” pelo agronegócio
Do Brasil de Fato
É consenso que o Brasil possui concentração de terras, excesso de latifúndio. Mas sabe-se também que essa concentração aumentou? O Censo Agropecuário 2006 (que comparou dados de 1996 a 2006) aponta que as pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais. Já as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. Mas em quantidade, as pequenas propriedades representam 47% do total de estabelecimentos rurais no país, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,91% desse total.
Sobre o agronegócio, um dado sintomático também em relação à concentração de terras. A soja foi a cultura que mais se expandiu no país na última década. No período entre 1995, quando foi realizado o levantamento anterior, e o censo atual, a soja apresentou um aumento de 88,8% na produção. Em entrevista, Osvaldo Russo, fala do aumento da concentração de terras no Brasil, da soja e de outros assuntos. Ele é estatístico, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do PT. Foi presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre 1993 e1994.
A impressão que se tem é a de que entre 1996 e 2006 houve muita luta social no campo, mas mesmo assim aumentou a concentração. Por quê?
A concentração escandalosa de terras no Brasil é o retrato da nossa herança colonial e escravista. Em 1996, deu-se o Massacre de Corumbiara (RO). Em 1997, ano do Massacre de Eldorados do Carajás (PA), deu-se a Marcha do MST (100 mil) que ganhou grande destaque nacional e internacional. A mobilização social foi intensa a partir de 1993, quando foram promulgadas a Lei Agrária e a Lei do Rito Sumário, que regulamentaram o capítulo da reforma agrária da Constituição de 1988. No governo FHC, entretanto, foi grande a criminalização do movimento sindical e dos movimentos sociais, em especial do MST.
Ficou provado com o estudo que a pequena propriedade emprega e produz muito mais que o latifúndio. Qual será o peso político dessa informação para que o governo se sinta mais pressionado a fazer a reforma agrária de fato ou, ao menos, faça a atualização dos índices de produtividade?
O Censo Agropecuário de 2006 confirma aquilo que pesquisadores e ativistas vêm dizendo: apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores representam 77% do total de pessoas ocupadas. As informações do IBGE revelam ainda que a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras, gerando um valor de produção de R$ 677 por hectare, enquanto que a não familiar gera um valor de R$ 358 por hectare. Acredito que esses dados podem contribuir para que governo e sociedade mobilizem e acelerem as mudanças necessárias nas políticas para o campo, dando maior ênfase à reforma agrária e à agricultura familiar. Isso deve ser expresso em maiores recursos para o setor e na adoção de novos índices de produtividade, já que os atuais estão defasados 34 anos.
Os serviços públicos de extensão rural (auxílio técnico) foram desestruturados especialmente na década de 1990. Por quê?
Em primeiro lugar, a extinta Embrater estava aglutinando, como em geral e historicamente as empresas públicas e estatais, uma cultura de política pública de Estado voltada para os interesses nacionais e da maioria do povo brasileiro. O sucateamento da assistência técnica e da extensão rural fez parte da política neoliberal de liquidação do Estado promovida pelos governos Collor e FHC. Em segundo lugar, a desestruturação da assistência aos pequenos agricultores favoreceu ao agronegócio.
Em que pesa mais negativamente a expansão de 63,9% na área de soja no Brasil? É uma cultura que mais amplia a concentração de terras e a dependência econômica num único setor? Mais que a cana?
A expansão da monocultura da soja, da pecuária extensiva e do agronegócio, ao lado da ação criminosa de grileiros e madeireiros na Amazônia e no Centro-Oeste é a responsável pelo crescimento do desmatamento e pela concentração de terras na região. O cultivo da cana-de-açúcar ganhou escala preocupante em São Paulo e em outros estados, o que pode vir a competir com a produção de alimentos internamente se não houver uma regulação, sem o que haverá danos para a soberania alimentar do país.
Foi verificado no censo um intenso uso de agrotóxicos nos estabelecimentos rurais brasileiros. A baixa taxa de assistência e a falta de conhecimento contribuem com o excesso de uso de agrotóxicos?
De um lado, o modelo agrícola hegemonizado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, é responsável pelo envenenamento da agricultura brasileira. De outro, a ausência de educação ambiental, desde as escolas até a mídia, cria um vazio na conscientização da sociedade, onde o lucro e a ganância prevalecem em detrimento das necessidades de uma alimentação saudável da população brasileira.
Qual década foi mais importante para que tenha ocorrido o aumento da concentração de terras? A de 1990 ou a partir dos anos 2000?
O quadro de concentração fundiária é endêmico na história brasileira. O censo do IBGE mostra que em 2.600 municípios a concentração diminuiu, mas nem por isso ela deixou de ser elevada e de crescer nacionalmente. Os dados revelam a concentração tanto na década de 1990 quanto nesta metade dos anos 2000. Ainda que de 1 milhão de assentamentos realizados no Brasil desde a criação do Incra em 1970, mais da metade se deu de 2003 pra cá, e de o Pronaf ter crescido de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 15 bilhões previstos para a safra 2009/2010, ainda assim nos preocupa a articulação de interesses entre o agronegócio, as grandes empresas multinacionais de insumos e alimentos e os bancos, o que anula qualquer esforço de distribuição da terra.