O latifúndio que mata e maltrata
Por Joãozinho Ribeiro(*)
Praga encravada no solo brasileiro conseguiu atravessar quase intocável a totalidade dos regimes políticos que já experimentamos, do império à federação republicana, chegando ao século XXI com um rastro de cruéis conseqüências, que até os dias de hoje enlutam milhares de famílias em todas as regiões do país – a praga do latifúndio.
A incontestável melhoria nos índices de qualidade de vida da população brasileira, usufruída nos anos da gestão do presidente Lula, ainda contrastam com o aumento da concentração da propriedade da terra e com a ampliação do financiamento público para o agronegócio voltado única e exclusivamente para a exportação, em detrimento do crédito de mesma natureza dirigido à agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 80 % dos alimentos que chegam diariamente às nossas mesas.
O Censo Agropecuário, divulgado recentemente pelo IBGE, abrangendo um ciclo iniciado em 1995 e encerrado em 2006, revela números que atestam graves distorções na concentração da propriedade e da produção no Brasil.
Os pobres do campo, neste conjunto incluídos aqueles que possuem propriedades inferiores a 10 hectares, tiveram a propriedade de suas áreas reduzidas de 9,9 milhões para 7,7 milhões de hectares, representando apenas 2,7% de todas as propriedades agrícolas do país. Por outro lado, 31.889 fazendeiros, possuidores de propriedades com extensões acima de mil hectares, respondem pela titularidade de 98 milhões de hectares. Voltados exclusivamente para o agronegócio, temos ainda 15.012 proprietários (1% do total dos estabelecimentos), com propriedades acima de 2.500 hectares, representando 46% do total de todas as terras.
Saindo da concentração da propriedade e entrando na concentração da produção, as distorções são ainda mais alarmantes. Para um Valor Bruto de Produção Agrícola equivalente a R$ 141 bilhões em 2006, o Estado disponibilizou em créditos para o agronegócio, através de diversificadas linhas de financiamento, um total de R$ 80 bilhões, que resultou numa produção avaliada em R$ 91 bilhões, utilizando para tanto uma área de 32 milhões de hectares, ocupada pelo plantio de soja, milho, cana de açúcar e pecuária.
Na contramão desta história, para a agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 80% dos alimentos que chegam às nossas mesas diariamente, foram destinados apenas R$ 6 bilhões de crédito, que ainda assim produziram 50 dos R$ 141 bilhões do Valor Bruto da Produção Agrícola de 2006, ocupando uma reduzida área de 7 milhões de hectares, com o plantio de arroz, feijão, mandioca, trigo etc.
Se não levarmos em conta para uma análise menos apaixonada este elenco de dados, o terrorismo jornalístico perpetrado pelos maiores veículos de comunicação do país, representados pelas vozes de profissionais do ramo como Alexandre Garcia e Miriam Leitão, diante das imagens de um trator dirigido por um membro do MST derrubando alguns pés de laranja em plantação da Crutale, passam para a população que a única cultura dos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra no país é a da violência sem justa causa; coisa de criminosos, que deve ser punida com todos os propalados rigores da lei.
Os mesmos rigores da lei não são invocados por estes ilustres arautos do latifúndio para pedir a punição dos mandantes dos homicídios das centenas de trabalhadores rurais que lutam com suas famílias por um pedaço de terra. Pior ainda, dos 1.521 casos de homicídios levados a julgamento entre 1985 e 2008, somente 7,5% foram concluídos. Este levantamento foi apresentado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias, vinculado ao Conselho Nacional de Justiça no I Encontro do Fórum Nacional para monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos, na semana passada, em Campo Grande – MS.
A criminalização dos movimentos sociais hoje se tornou objeto de várias iniciativas da direita reacionária, visando a abertura de CPIs nas duas casas do Congresso Nacional. Se contrapondo a estas iniciativas, a presidência do Senado recebeu um manifesto em apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contendo assinaturas de renomadas personalidades do mundo intelectual, do quilate do jurista Fábio Konder Comparato, do fotógrafo Sebastião Salgado, incluindo o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o ensaísta norte-americano Noam Chomsky.
Se as cenas de “vandalismo” na plantação da Crutale repetidas exaustivamente pelos principais canais de televisão são objeto de comoção nacional, igualmente deveriam ser considerados estarrecedores os dados apresentados pelo IBGE sobre a concentração da propriedade e da produção agropecuária e os dados apresentados pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ acerca da impunidade dos mandantes dos assassinatos de trabalhadores rurais.
As insinuações televisivas chegam a produzir afirmações caluniosas do tipo “recebem subsídio para praticar crimes” (Ministro Gilmar Mendes), ou “crimes cometidos pelos movimentos sociais” (Alexandre Garcia), taxando de mero eufemismo o termo “movimentos sociais”. Em conjunto questionam e reprovam o “orçamento destinado aos assentamentos em 2010”.
O país mudou, mas estes senhores feudais permanecem com os seus valores vinculados aos tempos do Brasil – Colônia. Caso a chibata ainda fosse permitida, com certeza seria utilizada sem dó, nem piedade, no couro dos assentados.
(*) poeta/compositor, ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão.