Foices contra a contaminação biotecnológica
Por Douglas Estevam
“Leis injustas existem. Devemos nos contentar em obedecê-las ou nos esforçar para corrigí-las?”
As palavras de Henry David Thoreau, primeiro ativista e formulador da desobediência civil, são reinvindicadas e atualizadas nas ações dos “Faucheurs Volontaires” (em português, os “ceifeiros voluntários”). No início de abril, na cidade francesa de Chartres, ocorreu o primeiro julgamento dos 58 Faucheurs processados pela neutralização do campo de pesquisa de milho trangênico da Monsanto, na cidade de Poinville. A parcela de 2 mil metros quadrados do campo de experimento da Monsanto foi neutralizada no dia 18 de agosto de 2007, por “Faucheurs Volontaires” de diferentes regiões da França.
Na semana seguinte seria José Bové e mais onze Faucheurs que responderiam à um processo no tribunal de correções de Bordeaux, acusados por terem neutralizado um silo com mais de duas toneladas de milho trangênico. Todos eles são acusados, de acordo com o Código de Procedimento Penal francês, por “destruição do bem de outrem”.
“Eu destrui minúsculas usinas que podem destruir e contaminar minha alimentação. Eu conheço o princípio da propriedade privada. Se eu cometi um ato grave, é porque a situação é grave. A Monsanto transgride minha integridade física, ela não tem rédeas para sua monstruosidade”, afirma Phillippe, carpinteiro e um dos acusados em Chartres.
Os “Faucheurs Volontaires” defendem a não-violência como forma de intervenção, o engajamento consciente e a ação coletiva. O movimento conta hoje com mais de 7 mil integrantes na França, de diversas faixas etárias e condições sociais. Entre eles estão não só os camponeses ou produtores prejudicados pela contaminação de suas produçoes, mas também médicos, escritores, jornalistas e estudantes.
Por meio da neutralização dos campos de experiências e outras ações, são denunciados os riscos de contaminaçao irreversíveis de outras espécies vegetais, entendidas como um atentado ao patrimônio da humanidade. Em seu programa, os Faucheurs se negam à aceitar o totalitarismo dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM) na agricultura e na alimentaçao, assim como as imposições da Organização Mundial do Comércio (OMC), que submetem
os camponeses do norte e do sul à dominação das empresas de biotecnologia.
Riscos para a saúde e o ambiente
Os Faucheurs envolvidos na neutralizaçao de Poinville publicaram a Declaração de Chartres, onde eles expõem os motivos que os levaram à ação. Neste documento, eles afirmam que agiram em nome do Princípio de Precaução, inscrito na Constituição Francesa pela Carta do meio-ambiente e adotado como Lei Constitucional em março de 2005. De acordo com o terceiro artigo da Carta “toda pessoa deve, dentro das condições difinidas pela Lei, prevenir sobre os atentados que ela é suscetível de provocar ao meio-ambiente ou, ao menos, limitar suas conseqüências”. Em sua
Declaração, os Faucheurs afirmam que “os autores de disseminação voluntária, empresas ou agricultores, não podem deixar de responder à populaçao sobre os amplos riscos e perigos sociais, ambientais, econômicos, políticos e sanitários que sua atividade provoca”.
Alegando recusar-se a entrar em debates científicos, a Monsanto não apresentou testemunhas no tribunal de Chartres. Por parte dos acusados, cientistas, escritores, senadores e agricultores serviram de testemunhas. Christian Velot, mestre de conferências em genética molecular na Universidade de Paris-Sud, relatou a experiência realizada na Itália na
qual ratos alimentados com soja transgênica durante seis meses apresentaram alergias no estômago. “Depois que a alimentação com está soja foi interrompida, as alergias cessaram”, afirmou.
Outra testemunha, o agricultor Patrick de Kocho, contou ao tribunal que em 95 começou a produzir cereais e em sua primeira colheita já foram encontrados traços de soja OGM. Os processos movidos na justiça francesa não resultaram em nada e ele moveu um processo contra a Monsanto nos EUA, ainda sem definição. Em seu testemunho, ele disse que “os atos de cidadania que os Faucheurs realizam, com o objetivo de evitar as contaminaçoes que colocam em risco os agricultores engajados numa produção de qualidade, acordam os cidadãos e interpelam a justiça sobre seu trabalho”.
“A desobediência civil é uma verdadeira escola. O que estamos fazendo aqui é uma faculdade popular. Estes debates, estes julgamentos, são formadores de consciência”, foram as palavras de Jean Baptiste Libouban, o idealizador da organização dos “Faucheurs Volontaires” , ao término do primeiro dia de jugamento. Com efeito, um conjunto de atividades foram organizadas na cidade de Chartres durante o processo. Cientistas, pesquisadores, filósofos, jornalistas, entre outros, proporcionaram uma profunda compreensão dos aspectos políticos, econômicos e ambientais
envolvidos na temática de OGM.
[img_assist|nid=8779|title=|desc=|link=none|align=left|width=480|height=640]História dos Faucheurs Volontaires
As ações de neutralização de campos de pesquisa em OGM na França começaram pouco após a implementação desta tecnologia no país. Em 97, seria realizada a primeira ação – organizada pela Confédération Paysanne – contando com a participação de mais de 300 pessoas. A atividade foi reconhecida pela Justiça local por seu caráter agrícola e rural e constatou que o sindicalismo consiste também na defesa da saúde e do meio ambiente. Após a ação de 98 contra um estoque de sementes de milho trangênico da Norvatis, aconteceu a primeira prisão de José Bové e Riesel,
porta-vozes do sindicato. A segunda prisão de José Bové, em 2003, depois da desmontagem de um unidade do McDonalds e a quantidade de processos movidos contra a Confédération, dificultavam cada vez mais as ações e tornava preocupante o futuro do sindicato.
Ciente destas dificuldades, Jean Baptiste – militante histórico que acompanhou o caso do agricultor canadense Percy Schmeiser, condenado pela Monsanto a pagar royalties quando ele teve sua produção contaminada – apresentou à José Bové a proposta de constituição do movimento dos “Faucheurs Volontaires” . Em 2003, por iniciativa de Bové, foi realizado um grande encontro para preparar um contra-debate à Conferência de Cancún da OMC. Foi neste encontro que Jean Baptiste Libouban lançou a proposta de organização do movimento, que neste primeiro momento se constituiu com 400 membros. Nos três primeiros anos de atuação, os Faucheurs tinham neutralizado campos de experiências com trangênicos em toda a França. Mais de vinte ações tinham sido realizadas, jornadas de propaganda, conferências, julgamentos, destruição de silos, etc. Em junho de 2006, o Ministério da Agricultura estimava que mais de 40% dos campos de produção transgênicas tinham sido eliminados.
O que caracteriza a organização dos Faucheurs é seu engajamento como um chamado à consciência, não uma incitação à destruição. Também não se reduz a um setor da sociedade, mas ao conjunto de homens e mulheres empenhados em conter a destruição engendrada pelo mercado. Inúmeras vezes centenas de voluntários se apresentaram para serem julgados junto com os acusados. As ações realizadas pela organização se configuram como coletivas, como um engajamento pessoal vivido coletivamente em nome do bem comum.