Brasil precisa combater mais o trabalho escravo
O Brasil é referência no combate ao trabalho escravo, mas precisa acelerar suas ações para erradicar o problema. A aprovação de uma emenda constitucional para garantir o confisco de propriedades que exploram mão de obra análoga à escravidão é uma das metas para 2010 das instituições envolvidas no tema.
A reportagem é de Daniel Cassol e publicada pelo Jornal do Comércio, 28-01-2010.
“Não há democracia com a permanência do trabalho escravo”, defendeu ontem o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ele participou de um seminário sobre o tema no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), existem no mundo cerca de 12 milhões de pessoas submetidas a trabalhos degradantes, sendo que 1,2 milhão na América Latina. Em 2009, o número de trabalhadores resgatados foi de 3.571 em todo Brasil. Apesar de estar mais associado ao meio rural, como lavouras de cana e carvoarias, o trabalho escravo está presente também nos centros urbanos. “O trabalho forçado é um fenômeno generalizado e que vem crescendo no mundo globalizado”, diz a diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo.
Para o juiz do trabalho Marcus Barberino, as ações da Justiça devem enfrentar também a prevenção e a conscientização de empresas e consumidores, evitando atacar o problema de forma pontual. “O trabalho escravo não é apenas algo ligado ao trabalho rudimentar nos rincões do País. É uma exploração sistemática que ocorre em toda a cadeia produtiva”, avalia.
Atualmente, é considerado trabalho escravo aquele que envolve cerceamento da liberdade dos trabalhadores, condições degradantes, jornada exaustiva e ameaças de violência por parte dos contratantes. Segundo Vannuchi, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso cerca de seis mil trabalhadores foram libertados, enquanto no período de Luiz Inácio Lula da Silva já foram 30 mil. “O que está aumentando é o enfrentamento ao problema”, destaca.
Uma das metas de Vannuchi e das instituições que atuam no combate ao trabalho escravo é garantir a aprovação, ainda no primeiro semestre deste ano, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que determina a expropriação de propriedades rurais nas quais forem flagrados trabalhadores em condições degradantes. O projeto está parado na Câmara dos Deputados desde agosto de 2004, quando foi aprovado pelo Senado. De acordo com o senador José Nery (P-Sol-PA), além da PEC existem nove projetos que tratam de trabalho escravo tramitando no Senado e outros 12 na Câmara, todos parados. “É impressionante o grau de [img_assist|nid=9012|title=|desc=|link=none|align=left|width=640|height=416]tolerância com que este crime é tratado”, critica.
A data de 28/01 marca o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em alusão ao episódio que ficou conhecido como chacina de Unaí, ocorrida em 2004, quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho foram assassinados enquanto realizavam uma fiscalização na região de Unaí, em Minas Gerais. As investigações apontaram como mandantes os fazendeiros Norberto e Antério Mânica, mas até hoje ninguém foi condenado.
Trabalho escravo está presente em toda cadeia produtiva brasileira
Por Bia Barbosa, da Carta Maior
Apesar de o Brasil ser considerado, no âmbito internacional, a vanguarda do combate ao trabalho escravo, a prática está inserida em toda a cadeia produtiva do país. Elemento inerente à reprodução do sistema capitalista, o trabalho escravo é uma das maiores violações de direitos humanos do mundo contemporâneo. Atividade no Fórum Social Mundial discutiu o que falta fazer para erradicar a prática em nosso território.
“Tudo começa com um moço chamado gato, que é um homem que vai a uma cidade com pessoas vulneráveis e chega lá com boas promessas. A pessoa se anima. Eles dizem que o patrão paga a passagem. Quando chega lá, a escravidão já começou. Quando começa o pagamento, vem o desconto da passagem, das ferramentas, do que você precisa comer. Já está tudo no caderno, anotado, e você tem que pagar. Os vigias passam armados na frente do da gente e deixam claro que o ambiente não é tranqüilo.”
O relato acima é de Francisco José dos Santos Oliveira, da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Prevenção do Trabalho Escravo em Monsenhor Gil, no Piauí. Escravo liberto, Francisco hoje vive no assentamento Nova Conquista, junto com outras 40 famílias de agricultores. Teve sorte de sobreviver a uma das maiores violações de direitos humanos do mundo contemporâneo, e esteve nesta quarta-feira no Fórum Social Mundial para contar sua experiência, numa atividade que buscou fazer do balanço do caminho que o país ainda precisa percorrer para erradicar o trabalho escravo de sua cadeia produtiva.
Segundo levantamento da ONG Repórter Brasil, que integra a Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, a produção de gado bovino é a campeã em número de propriedades que utilizam mão de obra escrava no Brasil. Metade das fazendas onde a prática foi registrada por operações do Ministério do Trabalho e Emprego era de gado. Já em relação ao número de trabalhadores libertos nessas operações, a produção da cana ocupa o triste primeiro lugar. Muitas vezes, mais de mil trabalhadores são libertos de uma só vez nas ações dos grupos móveis de repressão.
Hoje, cada uma dessas hipóteses corresponde ao trabalho análogo ao escravo no Brasil: o trabalho forçado, onde a pessoa é obrigada a trabalhar pela força das armas; a servidão por dívida; a jornada exaustiva, quando de alguém, para além da jornada legal, é exigida uma produtividade que o corpo não agüenta; e o trabalho degradante, quando são suprimidas as condições básicas de saúde e segurança. Todas elas são encontradas nas cadeias produtivas brasileiras, e seus produtos chegam a toda a rede de varejo nacional.
“O trabalho escravo tem crescido no contexto da globalização. Hoje há mais de 12 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado no mundo. Na América Latina, são 1,3 milhão. O lucro obtido por esta forma de trabalho ao ano passa de 30 bilhões de dólares, e o custo para os trabalhadores que estão submetidos a esta situação é de mais de 21 bilhões de dólares. Ou seja, apesar de muito poucos Estados nacionais reconhecerem oficialmente a existência do tema, este é um fenômeno mundial, presente na cadeia produtiva de grandes e modernas empresas multinacionais”, afirma Laís Abramo, diretora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
“A sociedade brasileira está acordando para o fato de que o trabalho escravo contemporâneo não é restrito à atividade rudimentar nos rincões do país. Trata-se de uma atividade sistemática, que perpassa toda a cadeia produtiva e está na mesa de todos os brasileiros. É algo central da organização do próprio mercado de trabalho”, explica Marcus Barberino, juiz do trabalho da 15ª região e coordenador das oficinas jurídicas da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. “Ao contrário do que pensam, o trabalho escravo não é exceção. É termômetro do mercado de trabalho brasileiro, que continua a explorar o trabalhador de uma forma bastante excessiva”, acrescenta.
Referência internacional
De acordo com a OIT, o Brasil é uma referência internacional positiva em relação à luta contra este crime, estando na ponta dos esforços mundiais de erradicação. Há 15 anos o Estado desenvolve políticas de combate à prática. De acordo com os números da Secretaria Especial de Direitos Humanos, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, foram seis mil trabalhadores resgatados. No governo Lula, foram 30 mil, como resultado do aumento do enfrentamento.
No entanto, muito ainda precisa ser feito para eliminar em definitivo tal violação de direitos. Um dos maiores desafios no campo legislativo é a aprovação da Emenda Constitucional 438/01, que prevê a expropriação de terras, sem direito a indenizações, onde for encontrada mão de obra escrava. Em 2001, a PEC foi aprovada em pelo Senado, mas até hoje espera a aprovação em segundo turno na Câmara dos Deputados, onde se encontram diversos parlamentares que já figuraram na chamada lista suja do trabalho escravo.
“Há anos lutamos pela aprovação prioritária da PEC. Mas apesar dos compromissos manifestados, não conseguimos avançar”, relata o senador José Nery, do PSOL/PA, presidente da subcomissão de combate ao trabalho escravo da Comissão de Direitos Humanos do Senado. “O trabalho escravo nada mais é do que um elemento inerente à reprodução do sistema capitalista vigente em nosso país e as forças degradantes de trabalho são algo que se reproduz historicamente desde a colonização. Aprovar a PEC e garantir o confisco de terras sem indenização aos escravagistas contemporâneos corresponde para nós a uma segunda lei áurea”, acredita.
No dia 13 de maio deste ano, um abaixo assinado que já conta com mais de 200 mil assinaturas será entregue ao presidente da Câmara dos Deputados reivindicando a votação da PEC em segundo turno na Casa. O objetivo é aprovar a emenda constitucional ainda no primeiro semestre de 2010. Em fevereiro, será lançada uma Frente Parlamentar de combate ao trabalho escravo no Congresso Nacional.
No campo jurídico, além de ações de formação e treinamento de juízes, o Ministério Público do Trabalho tem ampliado sua atuação no combate ao crime. Em vez de trabalhar a partir do recebimento de denúncias, como era feito anteriormente, os procuradores agora desenvolvem um trabalho menos reativo, de busca de dados e maior abrangência das ações movidas na Justiça.
“É preciso ir além de uma atuação pontual, em que algumas empresas são acionadas e outras não, já que a violação permeia todo um setor produtivo”, explica Sebastião Caixeta, procurador do trabalho à frente da Coordenação Nacional do Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho. “Também estamos movendo ações de dano moral coletivo, na construção de uma teoria que vem se firmando, com acolhimento da Justiça do Trabalho, que é a imposição de um pagamento pelo dano genérico já causado por essa violação, com os valores sendo revertidos para a classe trabalhadora. Hoje o trabalho escravo não ataca apenas a liberdade individual, mas também a dignidade da pessoa humana. Por isso, merece a repressão criminal, administrativa, trabalhista e civil do sistema de Justiça”, afirma.
Neste 28 de janeiro, Dia Nacional de combate ao trabalho escravo, a esperança dos ativistas e militantes que participam da décima edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre é acabar com a sensação de impunidade que ainda paira sobre aqueles que praticam o crime, e construir mecanismos que, de fato, erradiquem o trabalho escravo no país.
“E isso só vai acontecer quando o Brasil realizar a reforma agrária. É algo que passa por uma mudança no modelo de desenvolvimento no país, um modelo não exploratório, que não utilize pessoas como bucha de canhão para obter lucro”, concluiu Leonardo Sakamoto, coordenador da Repórter Brasil.