“A escravidão é pior hoje”
Por Por Daniel Santini
[email protected]
Da Folha Universal
A advogada armênia Gulnara Shahinian, relatora especial sobre escravidão do Conselho
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) visitou o Brasil em maio.
Convidada, ela participou do 1º Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e informou-se sobre a resistência no Congresso Nacional à Proposta de Emenda à Constituição do Trabalho Escravo (PEC 438) que prevê que terras de escravocratas sejam destinadas à reforma agrária.
Procurou ouvir acadêmicos, autoridades e movimentos sociais sobre o tema. A preocupação da ONU se justifica. A escravidão está longe de ser passado. No Brasil, desde que foram criados programas específicos em 1995, mais de 37 mil pessoas foram libertadas.
“Quando as terras ficam na mão de uma minoria há menos democracia, menos participação do povo”, afirma Gulnara Shahinian, nesta entrevista.
Leia também
Baixe a entrevista em PDF
No mundo, com a sensibilidade de quem construiu carreira internacional defendendo direitos de crianças, mulheres e imigrantes, Gulnara alerta que a situação nunca foi tão grave.
Como é a escravidão moderna?
Infelizmente as pessoas ainda pensam que a escravidão é algo do passado e muitos a relacionam como algo restrito ao tráfico de pessoas. Esta é apenas uma forma. Há muitas outras que escolhemos não ver, algumas velhas e tradicionais. Ignorar não ajuda. A estimativa dos acadêmicos é de que hoje 27 milhões sejam escravos. Kevin Bales (sociólogo britânico) menciona este número. A escravidão moderna está inclusive em países desenvolvidos. A escravidão tornouse fenômeno global por causa da nossa ignorância, da nossa
falta de interesse. É preciso ter atenção com este tema.
É possível comparar a escravidão moderna com a do passado?
Sim, a escravidão é pior hoje. Ter escravos é muito mais barato do que no passado. As pessoas são descartáveis. Você pode ter um escravo e depois jogá-lo fora. Você não paga para ter um escravo. O ser humano virou uma “commodity” (mercadoria primária) barata. Hoje a escravidão se dá não só por coerção física, mas também psicológica.
Escravidão psicológica?
Sim, além do trabalho forçado há escravidão por dívidas, casamentos obrigados, casamentos de menores, trabalho infantil. Há os que dizem que isso tudo não é escravidão porque a pessoa tem liberdade para ir e vir. São mulheres e crianças livres para, por exemplo, ir até o mercado comprar comida para o “mestre”. Mas elas não tem liberdade psicológica ou alternativas. Há regiões em que as mulheres que fogem são olhadas de maneira negativa e não têm empregos.
Muita gente se surpreende ao ouvir falar em escravidão hoje?
Em 2009, em Madri, na Espanha, alguns acadêmicos ficaram surpresos. No fim, acabaram preocupados em saber mais. Foi positivo. Muitos países rejeitam o conceito. Eu fiquei entusiasmada quando recebi o convite para vir ao Brasil. Demonstra vontade política do País.
Há gente que nega a escravidão, como a senadora Katia Abreu (DEM/ TO). Este tipo de visão é comum?
Ouvi isso no Haiti quando estive no paíspara conhecer o “restavec” (sistema em que famílias sem recursos dão filhos para as ricas) e me disseram que aquilo não era escravidão, mas sim uma “tradição cultural”. Perguntaram quem eu era para vir de fora e falar em escravidão. Eu vi como o sistema funciona. É horrível. As famílias entregam suas crianças com a melhor das intenções, mas elas acabam trabalhando como escravas com as novas famílias. Muitas são abusadas sexualmente. Eu vi essas situações.
Como combater a exploração quando ela é tratada como tradição?
Tradição cultural não é explorar as crianças, não é explorar pessoas. São medidas de sobrevivência porque a pobreza virou algo crônico. A melhor maneira de lidar com isso é promover desenvolvimento econômico e estabelecer direitos, chamar atenção para a situação. Temos que providenciar dignidade, garantir que as pessoas ganhem o suficiente para viver e não apenas sobreviver. Ao deixar de investir em educação, saúde, ao deixar a pobreza continuar, estamos perpetuando a escravidão.
Onde a situação é mais grave?
É difícil indicar uma região. Pode ser maior ou menor em algumas partes, mas está presente em todo o mundo. Em alguns países, como na Mauritânia, na África, há relatórios que negam e apontam formas “residuais”. Residual? Escravidão é escravidão. Há situações graves ligadas a conflitos militares. Na África, as crianças são utilizadas como soldados. Em muitos países em guerra, tropas de paz aceitas como salvadoras acabam aproveitando-se das prostitutas locais e intermediando o tráfico de mulheres. Isso acontece no Congo, Bósnia, Somália, Haiti. Há tantos exemplos.
O Brasil é um país com muita desigualdade econômica e concentração de terras. Isso agrava o problema?
Quando as terras ficam na mão de uma minoria há menos democracia, menos participação do povo. Poucos ditam as regulamentações. Isso é perigoso e pode resultar, com base na ganância e na competição, em mais escravidão. Em termos econômicos o aumento da escravidão é péssimo para todos. Quando as pessoas ganham dinheiro só para o “mestre”, não investem no país, nas famílias.
Como vê os processos de privatização e o livre mercado?
Este é o meu medo mais profundo, a falta de regulamentação nos mercados. Sem mecanismos de controle, a ganância, aliada à impunidade e à ausência de leis para punição, criam o ambiente mais propício para a escravidão. Na busca por mercados, na tentativa de se criar produtos mais baratos, as pessoas estão procurando todas as maneiras de se tornarem competitivas. As violações acabam ignoradas e só se pensa em ganhar mais.
Por que a ONU só passou a combater a escravidão em 2008?
Inicialmente a atenção era para o tráfico de pessoas. Só que há outras formas de escravidão e muita gente ficava nas sombras. Hoje temos relatórios, visitas aos países e denúncias. Os leitores que quiserem fazer denúncias podem escrever para o e-mail srslavery@ohchr. org e, se quiserem anonimato, basta indicar. Encaminho as informações para o governo e, se não houver resposta, registro no relatório que apresento ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU.