Médicos das Usinas dão pinga para cortar o efeito do agrotóxico no corpo
Por Charles Souto
Do Brasil de Fato
“De repente a menina cansava sem ninguém sabe como. Tinha que pegar e levar pro hospital às pressas”, relembra Madalena. A cena se repetia todos os dias. Sua sobrinha, à época com quatro anos, tinha crises respiratórias a cada fim de tarde e era socorrida no hospital de São Lourenço da Mata, zona da mata norte de Pernambuco. “Foi então que a médica descobriu que os ataques só aconteciam quando meu irmão chegava em casa do trabalho. Ela pediu pra ele se afastar do serviço por algum tempo. Passou um mês e a menina não teve mais nada, quando ele voltou a trabalhar os ataques voltaram”. O irmão de Madalena aplicava agrotóxicos nos canaviais da usina Petribu.
Os ataques de asma que a sobrinha de Madalena sofria eram causados pelos vestígios de agrotóxico que permaneciam no corpo de seu irmão, “muito embora”, ressalta Madalena, “quando largava do trabalho, ele tomava banho na usina e trocava de roupa antes de ir pra casa”.
O relato de Madalena é reforçado por outras esposas e mães da região, cujos nomes verdadeiros foram preservados para evitar retaliações da usina. “O fedor é muito forte”, lembra Regina, cujo esposo de 30 anos aplica veneno nos canaviais da Petribu pela segunda safra consecutiva. “Quando ele chega do serviço, só entra pela porta de trás. A roupa que ele usa pra ir e voltar do trabalho tem que deixar na porta da casa. Boto na água sanitária e nada do cheiro sair. Tem dia que o fedor é tão forte que não consigo nem ficar perto dele”, completa.
Regina revela que seu esposo já foi parar no hospital municipal depois de passar mal e desmaiar durante a aplicação dos agrotóxicos. “Ele tomou soro e foi liberado. O médico não disse nada sobre o veneno e não passou nenhuma medicação. Até hoje tem dia que ele acorda no meio da noite com o corpo cheio de câimbra.”
Cachaça como remédio
A denúncia mais grave é feita por Rosângela. Há três anos seu marido aplica veneno nos canaviais da Petribu. Segundo ela, desde o ano passado, os médicos da usina determinaram que todos os trabalhadores que manuseassem os agrotóxicos “tomassem uma dose de cachaça por dia, depois de terminado o serviço. Eles disseram que era pra cortar o efeito do veneno no corpo.”
Madalena confirma a acusação: “Na safra passada, eles chamaram meu filho de 19 anos pra trabalhar com veneno. O salário era um pouco maior, mas tinha um porém. Antes eles davam um saquinho de leite pra cada funcionário. Mas agora eles não estavam mais fornecendo leite e sim uma dose de pinga. Quando ele saísse do serviço, ia pra usina, tomava banho, trocava de roupa e recebia uma dose de pinga que era pra poder fazer uma limpeza dentro dele para o veneno não ofender ele”. Seu filho se recusou a beber e acabou desempregado.
“Não tem efeito nenhum do ponto de vista de evitar, de prevenir ou de tratar a questão da intoxicação pelo veneno utilizado na agricultura” esclarece a médica Lia Giraldo sobre os efeitos do leite e do álcool na lida com os agrotóxicos. Professora da UPE (Universidade do Estado de Pernambuco) e pesquisadora titular da Fiocruz/PE, Lia ressalta que “o leite é um alimento e, obviamente, não tem nenhuma consequência desfavorável tomá-lo, mas também não serve para nada do ponto de vista da intoxicação. Com relação ao álcool [cachaça] sim, é muito perigoso. Porque o álcool tem efeito tóxico para o fígado e para o sistema nervoso, assim como a maioria dos agrotóxicos. Então você tem a superposição de dois produtos que são tóxicos, causando uma potencialização do efeito negativo do veneno sobre a saúde humana. Quem receitar esse tipo de coisa para evitar intoxicação, especialmente se for médico, está cometendo um crime e deve ser encaminhada uma denúncia ao Conselho Regional de Medicina”, enfatizou.
A pesquisadora lembra que o uso do álcool pode descaracterizar a intoxicação química por agrotóxicos, já que ambos produzem sintomas parecidos, tornando muito difícil a realização de um diagnóstico diferencial. “Na hora de fazer o diagnóstico vão dizer que o problema do trabalhador é porque ele bebe e não porque ele está exposto ao agrotóxico”, conclui Lia.
No ar, na terra e nas águas
Não são só os trabalhadores que sofrem com o uso indiscriminado dos agrotóxicos nos canaviais pernambucanos. Os 522 alunos da Escola Municipal Luiz Carlos de Moraes Pinho, localizada no distrito de Chã de Sapé em Itaquitinga, assistem suas aulas a poucos metros dos canaviais da Usina Santa Tereza. De acordo com Ivone, diretora da escola, “quando eles queimam as canas, a escola tem que liberar os alunos e suspender as aulas”. A professora de informática Ivete lembra que “há três anos, a Fusam [Fundação de Saúde Amaury de Medeiros] veio aqui fazer exame de vista nas crianças. Muitas crianças foram diagnosticadas com tracoma [uma forma de conjuntivite crônica que pode levar a cegueira] e os médicos associaram ao veneno que se espalhava com as queimadas da cana. Na época, a prefeitura foi acionada, mas até hoje nada foi feito”.
A agente de saúde lvanusa da Silva lembra que as famílias tinham o costume de cultivar algumas lavouras brancas para alimentação, como o mamão, “mas com o veneno despejado pelos aviões da usina, o mamão fi cava todo amarelado, não conseguia sobreviver. Não podemos plantar nada porque afeta”. Ivanusa informa que os aviões passam todos os finais de semana, logo cedo, despejando veneno nas canas e nas casas, indiscriminadamente. “Passa tão perto que parece que vai rasgar o teto em cima das casas”, completa a agente de saúde.
Em um desses voos rasantes, Dona Nelinha, 60 anos, acabou recebendo um banho de veneno. “Estava caminhando ali na estrada, de manhã cedinho, umas 5h. Só ouvi o barulho e quando vi o produto foi despejado do avião e salpicou veneno nos meus braços e no meu rosto. Eu acredito que isso não aconteceu só comigo, porque na estrada passa muita gente pra lavar roupa, o pessoal que chega do trabalho, todo mundo passa por essa estrada. É um produto que não faz bem pra nossa saúde, não é? Isso não faz bem pra comunidade”, afirma a moradora aposentada.
Para completar o quadro, a Associação de Moradores de Chã de Sapé denuncia que o poço responsável por armazenar a água que abastece os cerca de 800 domicílios do distrito está contaminado pelos agrotóxicos utilizados nos canaviais.
Agrotóxicos, abortos e câncer
Os casos denunciados pelos moradores de São Lourenço da Mata e Itaquitinga se repetem por diversos municípios tomados pelas plantações de cana na região. Mas, de acordo com os estudos levados adiante pela professora Lia Giraldo e a Fiocruz, há outras culturas em que os agrotóxicos também estão causando sérios danos à população e ao meio ambiente.
De acordo com Lia Giraldo, pesquisas realizadas com as mulheres envolvidas diretamente na produção de tomate no município de Camucim de São Félix, agreste pernambucano, constataram que 70% delas haviam abortado e 11% tiveram fi lhos com deficiências físicas ou distúrbios neurocomportamentais. Levantamento feito no ano de 2009 pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) evidenciou a contaminação ambiental de cacimbas e açudes pelo agrotóxico metamidofós, cuja classe toxicológica é a de nível I: extremamente tóxico. Além disso, estudos da Fiocruz identificaram na região do Vale do São Francisco 108 agrotóxicos diferentes utilizados na fruticultura com forte potencial de indução de câncer. 87% destes agrotóxicos foram classifi cados como carcinogênicos e 7% pré-carcinogênicos.
Lia Giraldo lembra que o consumo de agrotóxicos só aumenta em Pernambuco e em todo o país. Em 2009, haviam 2.195 produtos agrotóxicos registrados no país e as vendas chegaram a 789.794 toneladas, o equivalente a 6,8 bilhões de dólares. Em 2010, essa cifra alcançou os US$ 7,1 bilhões. Para a professora, o uso indiscriminado de agrotóxicos representa um “grave problema para a saúde pública, ainda que seus riscos e efeitos sejam ocultados e invisibilizados pela propaganda, pela ausência efetiva de controle dos órgãos públicos e pela falta de informação dos consumidores”.