O funeral de mais um militante da luta pela Reforma Agrária
Por Paulo Cerioli
A placa improvisada na beira do asfalto que liga Monte Santo a Euclides da Cunha indica Mandassaia a mais ou menos dez quilômetros. Um estrada de terra corta o sertão até chegar ao povoado. O povo está aguardando próximo a uma casa o inicio do enterro. Dentro, num caixão, está Leonardo de Jesus Leite.
Por Paulo Cerioli
A placa improvisada na beira do asfalto que liga Monte Santo a Euclides da Cunha indica Mandassaia a mais ou menos dez quilômetros. Um estrada de terra corta o sertão até chegar ao povoado. O povo está aguardando próximo a uma casa o inicio do enterro. Dentro, num caixão, está Leonardo de Jesus Leite.
Companheiros e companheiras do Ceta (Movimento de Trabalhadores Acampados e Assentados), vindos de outros municípios, foram os que velaram o corpo, durante a madrugada.
São nove horas da manhã. O sol já se faz arder na pele. De repente o caixão é carregado para fora da casa e para em frente. O choro, já calado, aflora pelo irmão inerte. A procissão inicia. Como que combinado, uma nuvem esconde parcialmente o sol e uma leve brisa aparece. A dor está no ar, os gritos ecoam e o soluçar marca o ritmo dos passos.
Param novamente em frente de outra casa. Parece que nela está sua mãe. A esposa ainda está em choque. Um dos dois filhos, pois são gêmeos, agora com sete anos, se recusa a acompanhar, já que o pai não vai mais acordar. Alguns homens retirem as pessoas que choram e as levam para a casa. E a procissão reinicia silenciosa rumo ao fim do povoado.
Um silencio pesado, que fala de uma vida de luta que aos 37 anos foi ceifada por um tiro a mando do latifúndio. Alguns sussurram que foram três jagunços os que fizeram o serviço. E o silencio volta apenas quebrado pelos chinelos que levantam poeira da areia que existe naquele caminho do sertão, rumo ao cemitério.
Testemunha desta marcha fúnebre são as parcas roças de milho, a beira do caminho, onde as plantas estão queimadas pelo sol, que voltou a arder. Estas roças ressecadas são tristes testemunhas de que ali vivem lavradores e que, por falta de chuva, nem a semente será colhida e o cuzcuz provavelmente irá faltar na medida em que a fome irá nascendo.
O cantar de algumas mulheres, quebra o silêncio: “se a jornada é pesada … segura na mão de Deus e vai”. Peso de uma vida sofrida, na esperança de ter um pedaço de chão. Como já não tem para quem apelar, se apegam em Deus, e continuam a marcha pela vida, pela conquista da terra partilhada da Fazenda Jibóia. O silêncio recomeça, cada vez mais triste. As poucas cabras que estão a beira do caminho, deixam de roer as cascas das árvores, para observar aqueles seres que passam.
O triste cantar recomeça: “lá vem Jesus cansado com o peso da cruz”: é um sofrido cansado que vem ao encontro de outro sofredor. Ali a morte ronda quem sonha com um pedaço de terra e uma vida orientada por um Projeto Popular. Já não há o que esperar das autoridades, nem de Monte Santo, local do quartel general dos militares que massacraram Canudos, anos atrás. Nem das autoridades da Bahia e muito menos das que estão em Brasília. E o silêncio volta a permitir que os últimos acontecimentos se tornem vivos na cabeça dos caminhantes.
De repente o passo se torna mais rápido. O cantar ecoa “estou pensando em Deus, estou pensando no amor”. Mas o canto é quebrado pelo “brado” de um jegue que olha admirado pela meia centena de motos estacionadas em frente ao muro branco do cemitério: até ele sente-se em desvantagem com as mudanças que estão chegando ao sertão. O que não muda é a existência de coronéis que se consideram dono da vida do povo, apoiados por seus jagunços, onde alguns usam ou já usaram farda, escuto num novo sussurro.
No portão do cemitério muitos batem os pés ou sacodem os chinelos. Não querem levar nenhuma poeira para aquela “terra santa”: ao entrar rezam uma Salve Rainha que se identifica com o “vale de lagrimas” já derramadas, mas que não serve para irrigar a seca do sertão. Depois rezam “Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade dele” pedindo perdão pelo morto, por garantia, pois sabem que de sua vida e luta não há o porque pedir perdão.
Finalmente o caixão chega até a cova, sete palmos cavados na terra e na pedra, a base da picareta. Muitos olham para a cova e comentam sobre o esforço de quem cavou. O caixão é baixado na cova, com uma bandeira do CETA sobre ele, que o acompanhou em todo o trajeto. Fazem juras de que a luta, a vida de Léo não foi em vão. Depois cantam: “mataram mais um irmão … mas ele ressucitará” em cada um de nós, disse um sertanejo, disposto a não arredar o pé da luta. A bandeira do CETA é retirada, pois o Movimento Estadual dos Trabalhadores Assentados e Acampados continua vivo. Os torrões e pedras são novamente jogados na cova, cobrindo o corpo no caixão.
No retorno a prosa flui. Perguntam se sou estrangeiro, pois sou o mais galego entre todos e respondo que não. Contam-me que um dos filhos do Léo perguntou: “Agora quem vai fazer reunião?” Outro disse: a vida é assim e o Senhor disse, “crescei e multiplicai-vos”, só não entendi se falava das pessoas ou do CETA, talvez de ambos. E já é quase meio-dia do dia 8 de setembro de 2011. E escuto, de um senhor quase pele e osso: este sol resseca tudo, até gente.
E, colocando terra e pedras sobre o sofrimento, a vida e a luta continua, até que não haja mais grileiros de terra publica apoiados por políticos que criam leis para legitimar o avanço do capital. Mas, está é uma outra parte, desta mesma história.