Agronegócio expulsa 9 mil famílias de suas terras por ano no Paraguai
Por José Coutinho Júnior,
Da Página do MST
Em um conflito desencadeado por uma operação de reintegração de posse entre sem terras e policiais no Paraguai, ocorrido na última sexta-feira (15), 30 sem terras foram mortos e centenas ficaram feridos.
De acordo com Perla Alvarez, membro da Coordenação Nacional de Mulheres Rurais Indígenas (Conamuri), o agronegócio é o maior responsável pela drástica situação agrária paraguaia, já que “parte desses latifúndios estão nas mãos de estrangeiros ou de empresas multinacionais, principalmente de proprietários brasileiros, que expandem no nosso território o cultivo de soja transgênica”.
Confira a entrevista de Perla, que veio ao Brasil para a Cúpula dos Povos, para a Página do MST.
Como era o agrário paraguaio antes do agronegócio?
O Paraguai tem uma história de lutas pela terra. O sistema agrário foi caracterizado, desde o período colonial, por grandes extensões de terra nas mãos de poucas pessoas, mas a partir da ditadura do general Stroessner (1954-1989), isso toma novas dimensões, porque é o momento em que o sistema capitalista começa a entrar com força no campo, possibilitando a entrada de empresas agroexportadoras que usam mão de obra camponesa.
Há também a expansão do modelo agrícola brasileiro pela fronteira. Esse processo começou por volta de 30 anos atrás. Mas com o desenvolvimento da indústria genética dos transgênicos, o monocultivo de soja transgênica começa a se estender a partir dos anos 90.
Com isto, o processo de expulsão dos camponeses se acelerou e ocorreu um aumento extraordinário das grandes extensões de terra, que vão de 2 mil, 5 mil, 200 mil, até um milhão de hectares nas mãos de um só proprietário.
Outro problema nesse sentido é que grande parte desses latifúndios estão nas mãos de estrangeiros ou de empresas multinacionais, principalmente de proprietários brasileiros, que expandem no nosso território o cultivo de soja transgênica. Nos últimos dez anos, a concentração de terra se acentuou: temos aproximadamente nove mil famílias camponesas expulsas de suas terras por ano. Essas pessoas migram para as cidades, criando cinturões de pobreza.
Outro problema é que não há um mecanismo, uma política que possa absorver toda a mão de obra que fica desempregada no campo. O modelo agrário atual não gera fontes de trabalho. Tem gente que apesar de ter terras, não pode produzir porque as propriedades foram afetadas pelo uso massivo de agrotóxicos e a degradação da terra não permite esse desenvolvimento.
Como é a vida dos agricultores familiares no Paraguai?
As famílias camponesas têm que sobreviver do que produzem nas safras, que é uma produção de autoconsumo, que produz pouca renda. Mas essa produção de renda é muito pequena e não está organizada, o que torna a comercialização muito difícil. Com isso, o trabalho agrícola se complementa com trabalhos fora de casa. Os homens geralmente fazem serviços em alguma fazenda ou vão às cidades realizar algum trabalho não qualificado, e as mulheres ou desenvolvem uma produção de pequenos animais, como galinhas, ou saem para trabalhar com serviços domésticos.
Hoje, as famílias camponesas não podem viver somente de sua produção como foi há 20, 30 anos. A produção para o autoconsumo está muito danificada, pois grande parte das terras estão destinadas ao monocultivo de soja, girassol ou arroz para a exportação, com uso intensivo de agrotóxico. A qualidade da produção é muito ruim, e há pouca quantidade de frutas. É uma produção que não serve para uma nutrição familiar.
No Brasil a agricultura familiar é responsável pela maioria dos alimentos que comemos. Como é a situação no Paraguai?
Temos um grande problema de mercado interno. Neste momento, não há nenhuma possibilidade real de que a produção camponesa possa alimentar toda a população do Paraguai, porque nós temos uma política que favorece a importação de bens agrícolas, que não dão competição à má produção camponesa.
Os mercados locais são subsidiados pela produção camponesa, mas não o abastecem. Nós não temos produção de batata, de tomate temos muito pouco, porque não há nenhum tipo de apoio para essa produção. Onde há produção, muitas vezes não chegam ao mercado por problemas estruturais, como falta de transporte e desvalorização de preços. Há produção, mas o mercado é ruim e não oferece qualquer segurança aos camponeses.
A produção camponesa pode sim abastecer nosso mercado, mas nas condições que se encontra neste momento, sem o desenvolvimento do mercado local, não há possibilidade de oferecer esta cobertura.
Como o movimento sem terra se organiza no Paraguai?
Não há um só movimento sem terra. Há vários movimentos camponeses que não tratam só da demanda por terra. A questão da terra é apenas uma pauta dentro desses movimentos. Ou seja, os sem terra são organizados por um setor interno de cada um desses movimentos.
O mecanismo utilizado no Paraguai é formar uma comissão de terra que reclama essa demanda para as famílias, e na medida em que isso avança legalmente, os sem terra tomam medidas como acampamentos, ocupações das terras em questão ou de instituições. Não se descarta nenhum mecanismo de luta pela terra, mas o movimento sem terra no Paraguai, se podemos chamar assim, é frágil.
A etapa de formação política que há no Brasil não se realiza no Paraguai. Além disso, há muitos infiltrados no setor sem terra, que muitas vezes conseguem desvirtuar a luta pela terra. É o que levou ao massacre de ontem. Há a necessidade de terra para muitas famílias camponesas: segundo dados oficiais, são 50 mil sem terra. De acordo com nossas organizações, há aproximadamente 400 mil famílias sem terra.
Essa necessidade, aliada ao refluxo do movimento camponês de pressionar o governo para criar políticas de Reforma Agrária, que não surtiu efeito, fez com que esse movimento fosse armando suas estratégias de luta de forma espontânea.
Um setor político, desencantado com a forma de funcionar de algumas organizações ou por personalismo, dirigiu esta massa necessitada. Como estamos em uma conjuntura eleitoral, isso foi aproveitado por um setor da direita, o que levou à formação da chamada Liga de Acampados, que são companheiros e companheiras que realizam ocupações espontâneas.
É esta Liga de Acampados que leva muitos camponeses sem terra a realizar ocupações sem nenhuma formação, estratégia de defesa ou alianças. Isso é o que está levando a situações como o massacre que tivemos.
Por outro lado, todo esse movimento popular que surge da necessidade está sendo utilizado pela imprensa para a criminalização das lutas camponesas. Há uma campanha midiática que caracteriza a luta camponesa como delinqüência. E não só a luta pela terra, qualquer reinvidicação camponesa é chamada de ato terrorista. No Paraguai, temos a Lei Antiterrorista, que permite a aplicação da força sem justificativa real. Só será definido posteriormente se é um ato terrorista ou de delinqüência.
Então temos um contexto político muito negativo para o desenvolvimento da luta pela terra e da luta camponesa em geral. Quando falamos em Soberania Alimentar, a imprensa diz que “queremos regressar à época das cavernas”. Estamos em uma etapa da luta que não é fácil.
O governo atual tem toda a cara bonita dos governos progressistas, mas por trás o agronegócio cresceu como nunca. Em 2010, a balança comercial paraguaia fechou com superávit de 14,5% do PIB. Mas para onde vão esses 14,5%? Para um grupo pequeno que fica cada vez mais rico por causa do agronegócio, enquanto as famílias estão cada vez mais pobres.
Temos 50% da população em situação de pobreza, e desse total, 50% está em situação de extrema pobreza. Por um lado, há um refluxo das forças organizadas do campesinato, devido a essa intenção de apoiar o processo político do governo Lugo.
Por outro, há a direita que quer destruir qualquer possibilidade da população.
Este acontecimento triste, que custou a vida de muitos companheiros, pode servir para rearticular o movimento camponês, que deve perceber que a luta pela terra é uma opção de classe e não de setores.
Como a presença dos latifundiários brasileiros afeta o Paraguai?
Os latifundiários brasileiros no Paraguai se dedicam à produção do monocultivo de soja ou girassol. Além do fenômeno da concentração de terra no Paraguai, também há um avassalamento cultural muito grande, porque o empresariado brasileiro se instala no país com toda a cultura brasileira: língua, moeda, cultura alimentar, música.
As faces da vida se impõem no sistema educativo, nos meios de comunicação, na região onde moram. É um poder instalado no Paraguai que causa na população de aversão e submissão, pois há muito poder econômico por trás. Nesses espaços onde há presença de empresas brasileiras, quase não há presença do Estado paraguaio. Há uma entrega territorial, uma perda de soberania extraordinária.