Gilmar Mauro: Rio+20 é momento de trabalho de base contra os agrotóxicos
Leia entrevista do dirigente do MST, Gilmar Mauro, para Rodrigo Santaella, da revista da corrente do PSOL Enlace.
Rodrigo Santaella: Quais as perspectivas e projetos do MST e da Via Campesina para a Cúpula dos Povos?
Leia entrevista do dirigente do MST, Gilmar Mauro, para Rodrigo Santaella, da revista da corrente do PSOL Enlace.
Rodrigo Santaella: Quais as perspectivas e projetos do MST e da Via Campesina para a Cúpula dos Povos?
Gilmar Mauro: Nós estamos participando e buscando articular para que uns dois mil militantes da via Campesina estejam presentes. Vamos participar dos seminários que estão sendo articulados em nível internacional, e vão ter várias atividades, um tanto quanto parecidas com o Fórum Social Mundial, para vários gostos. Mas nós pretendemos, se conseguirmos de fato viabilizar os recursos para o deslocamento, que esses dois mil militantes desenvolvam um trabalho de base, no Rio de Janeiro, sobre o tema dos agrotóxicos. Acho que este é um tema que está pegando muito, e é preciso fazer com que isso chegue de fato ao conjunto da população. Então queremos desenvolver um trabalho de base, publicar 500 mil a um a um milhão de exemplares de um material escrito e desenvolver esse trabalho, seja no centro do RJ, nos intervalos das atividades, ou em visitas que estamos programando a alguns morros, para desenvolver essa atividade.
No nosso modo de ver, é um momento de agitação e propaganda. Mais do que sair de lá com grandes linhas de definições, achamos que há muitas contradições para que se tenha um documento que aponte para uma luta anti-sistêmica, mas nós temos que aproveitar o momento para politizar o debate e divulgar o debate sobre os agrotóxicos. Nossa intenção no Rio é desenvolver essa atividade, e evidentemente dia 22 vamos estar juntos na mobilização que vai ser feita.
RS: A Rio+20 e a Cúpula dos Povos acontecem num momento em que o governo brasileiro tem uma política supostamente desenvolvimentista, ou que pelo menos é chamada assim por alguns setores, que atualmente é baseada também em grandes obras, grandes eventos como a Copa e as Olimpíadas, que acabam removendo milhares de famílias de suas casas… e um momento no qual ainda na sociedade brasileira é um governo hegemônico. Há espaço na esquerda brasileira para contestação desse projeto hegemônico que se tornou o projeto do PT e do governo brasileiro na sociedade hoje?
GM: Pois eis uma questão aí que é um desafio muito grande para os setores da esquerda e progressistas – ampliando um pouco. Porque de fato, no projeto que está sendo implementado, pelo menos três sustentáculos deram impulso a um relativo crescimento econômico diante da crise mundial, às melhorias no salário, emprego, bolsas e criando evidentemente melhorias sociais, e por isso tendo um apoio popular importante. Três ingredientes: primeiro, é um projeto que é bastante calcado na demanda externa por commodities agrícolas e minerais. Principalmente o crescimento da China e da Índia, instigou, fazendo que o Brasil tivesse ganhos, saltos positivos na balança comercial, e provocando também, dentre outras contradições, um avanço no financiamento do agronegócio em detrimento de poucos recursos para a reforma agrária. Essa é a contradição para o nosso lado, mas é um elemento que puxou a economia brasileira no último período.
O segundo elemento que puxou a economia brasileira são os grandes investimentos do Estado brasileiro. Grandes recursos investidos em obras de infra-estrutura. Fala-se do PAC – mas não só o PAC – em que foram colocados bilhões e bilhões de recursos que estimularam, evidentemente, o crescimento econômico. Dentro dessa linha, está também o papel financiador do estado brasileiro: o BNDES cumpriu no último período um papel de financiamento muito grande principalmente das grandes empresas, financiando fusões e ampliações, e hoje empresas de capital brasileiro estão se transformando em transnacionais, inclusive explorando outros continentes… A fusão da Sadia com a Perdigão é um exemplo, e várias outras fusões que se transformaram em gigantes com financiamento público e com um custo alto também para a sociedade brasileira. Um terceiro aspecto é a abertura dos créditos. O crédito tem um papel importante, principalmente no capitalismo, porque ele pode antecipar a produção – que é o papel do BNDES, como financiador e investidor, que antecipa a produção de várias linhas de produção – mas também pode antecipar o consumo, que é o que aconteceu no último período: a abertura de créditos para que as pessoas pudesse comprar produtos de linha branca, eletrodomésticos mas também automóveis, e com programas de viés também social, como o caso das moradias. Todo mundo quer uma dívida dessas, quer se endividar, quer pagar a sua casa. Então, isso aqueceu a economia brasileira no último período.
Mas quais são as contradições do modelo? A principal é que o endividamento interno brasileiro, ou interno e externo, a dívida pública brasileira, tem crescido enormemente, porque apesar do superávit na balança comercial há um déficit muito grande na conta corrente brasileira, que tem sido financiada a custa de empréstimos com juros altos. É por isso que o capital está investindo no Brasil: pelos juros altíssimos que nós pagamos transformando a nossa dívida numa bola de neve crescente. Hoje, nós ultrapassamos 2 trilhões e meio entre as dívidas do Brasil. E se observamos o juros, fazendo um cálculo simples a 10% – atualmente está menos que isso mas já foi muito mais – daria 250 bilhões/ano em juros, e evidente que o Brasil não paga isso, que vai se avolumando em novas dívidas e fazendo o montante da dívida crescer. Esse déficit em conta corrente é financiado com empréstimos de curto prazo – que o governo agora está tentando botar um freio – porque tem dinheiro sobrante no mundo. Então, o capital está investindo no Brasil. A pergunta é porque investe ainda no Brasil se nós estamos com uma dívida tão grande? Primeiro, porque outras partes do mundo estão em crise. Grécia, Itália, Europa como um todo, Oriente Médio… Segnudo, o Brasil tem enormes condições de pagamento: terra, água, sol o ano inteiro, biodiversidade, recursos minerais, pré-sal, um monte de condições que fazem com que o capital continue investindo mesmo com essa dívida enorme.
Agora, isso tem limites, evidentemente. Não dá para estabelecer quando a crise brasileira vai explodir. Em 2014, depois da Copa do Mundo, somada às contradições que também tem provocado sua construção, as remoções, o que vai ficar para a sociedade brasileira… A crise bate aí? A minha questão não é quando a crise vem. Que ela vem, eu não tenho a menor dúvida, porque é parte da lógica do capital, da solução capitalista inclusive. A pergunta para nós é onde queremos estar quando a crise vier. De que forma queremos estar? Eu acho que essa é a grande preocupação com a esquerda, com um projeto de esquerda. Às vezes a esquerda está muito refratária, num protesto contestatório simplista até, e não preocupada com o projeto estratégico. O que a esquerda está fazendo em termos de investimentos de quadros, de formação de quadros? O que está fazendo em termos de colocar quadros dentro de empresas importantes, dentro de lugares estratégicos?
Vou terminar, já que me alonguei bastante nessa resposta, dizendo o seguinte: a crise é uma janela, que permite uma crítica maior do sistema. Ela pode ser sinônimo de avanços de um projeto de esquerda, mas pode não significar isso se não estivermos preparados. Ela pode nos jogar para trás como historicamente se demonstrou. Nazismo, Fascismo, ou qualquer doido aí… Então a pergunta pra nós é essa: o que vamos construir agora, num curto espaço de tempo, em termos de quadros? Onde queremos estar? Que tipo de investimentos, que tipo de alianças construir pra no momento de crise poder jogar a coisa pra frente? Porque na crise abrem-se portas…
Neste momento, se um trabalhador, um quadro dentro de uma fábrica erguer o dedo, contestar tudo isso, é capaz de ser colocado na rua, por justa causa. Num momento de crise, um quadro dentro de uma fábrica faz diferença, e pode parar a fábrica. Eu digo para nossa turma, um assentamento hoje influi o que no município? Pouca coisa. Mas num momento de crise o referencial de luta construído pelo MST pode ser um referencial importante, porque aí vem a questão, o sentimento de que “nós temos que fazer igual ao MST”.
Eu vejo com muita tranquilidade esse momento que a gente vive. Nós não podemos ir numa lógica da corridinha de 100 metros rasos, a gente precisa olhar a maratona. O que queremos construir agora é nos prepararmos para daqui 3, 4, 5, 6, 7 anos, não importa o momento exato. Mas se não dermos passos nesse sentido, vamos perder oportunidades importantes, e talvez continuemos como hoje, contestando, contestando, mas correndo atrás das iniciativas do Estado burguês e do grande capital, e no mais das vezes perdendo tudo o que a gente corre atrás.
RS: Neste cenário de déficit de programa estratégico, dos partidos aos movimentos, desde sua ótica, que parte propriamente dos movimentos, que papel os partidos de esquerda podem cumprir? Como podem contribuir neste momento para que a gente desemboque de forma a aproveitar essa janela que vai ser a crise brasileira?
GM: Eu acho que tem vários desafios para nós todos. Eu incluiria os movimentos sociais em geral, os partidos de esquerda e ampliaria para setores progressistas. No fundo no fundo, além desse programa estratégico e de um pensar estratégico, em que evidentemente se poderia incluir de forma genérica vários pontos táticos, nós estamos com uma dificuldade muito grande, em termos de esquerda, de encontrar formas de organização popular de novo tipo. A classe trabalhadora não é a mesma dos anos 70, não é a mesma dos anos 80 e nós não estamos dando conta de resolver este desafio que está posto para nós.
Se você somar todas as formas organizativas, os aparelhos privados de hegemonia do ponto de vista progressista, nós organizamos uma parcela ínfima da classe trabalhadora. Ínfima, sabe? E somando todo mundo! Então um problema que está posto é de que tipo de táticas de luta, que tipo de organização sociopolítica nós precisamos na atualidade… e nós estamos com o mesmo problema, seja nos movimentos do campo, seja no PSOL, seja o movimento sindical em geral, no qual mal e porcamente temos conseguido manter a bandeirinha na mão. Acho que o Meszáros nos dá indicativos, já que o capitalismo, na sua fase de crescimento econômico, provoca e permite ganhos sociais para a classe. A particularidade brasileira é típica para isso, enquanto a europeia já passou dessa fase, está num processo de perdas muito grandes. E as organizações que produzimos foram para esse tempo histórico, de aproveitar o desenvolvimento econômico para ter ganhos sociais. E nós precisamos aproveitar isso, não estou falando que não temos que aproveitar, temos que aproveitar para ter ganhos sociais para a classe trabalhadora. Mas o capitalismo está entrando em uma fase de retrocessos, e as organizações nossas não tem capacidade para se opor a isso e para pensar um projeto de fato alternativo, do ponto de vista organizativo, estratégico e do ponto de vista político.
E eu acho que esse é o grande desafio do PSOL. O PSOL sai do PT. Veja, é importante destacar isso: o PT foi construído historicamente a partir da conjunção de vários ingredientes e fatores: a luta contra a ditadura, ascensão do movimento operário sindical, ascensão do movimento camponês, ascensão da igreja progressista, do movimento estudantil… ele catalisa o processo histórico. E deu sua contribuição evidentemente. Não dá pra jogar na lata do lixo toda a contribuição política dada pelo PT. Primeiro o PSTU racha, sai num contexto já de descenso, e o PSOL sai num contexto de descenso maior ainda do PT.
Então, este contexto é muito difícil para o partido, mesmo se colocando numa postura diferente, mais ética, numa proposta política do resgate da ideia do socialismo, da revolução, enquanto a classe trabalhadora está num descenso. Esse é o problema geral, mas não é uma particularidade brasileira, aí é que está. Eu discordo, por exemplo, das análises de que o Lula é responsável, porque é uma realidade mundial. Claro que tem cooptação, tem um monte de problemas. Mas é uma análise simplista no meu modo de ver. Tem esse ingrediente, mas ele não é o único. É preciso interpretar essa nova realidade com muita tranquilidade para projetar aí sim uma nova estratégia política, novas táticas políticas, novas formas organizativas que englobem o conjunto da classe trabalhadora, novas formas de formação, novas formas de trabalho de base e diálogo com a população.
Porque às vezes a gente se fecha muito – “nós somos socialistas”, socialismo, socialismo” – e tem dificuldade de que a crítica ao modo de produção capitalista atinja o conjunto da classe trabalhadora. E aí tem uma pergunta básica: se as pessoas não sabem contra quem lutam, como lutam? Se as pessoas não sabem por que lutam, como fazer essa luta? Se as pessoas não têm clareza de qual é o rumo, se perdem no cotidiano e no conjuntural, e esse é o momento que nós estamos passando, nos perdendo na conjuntura e tendo pouca visão estratégica. Eu acho que esse é o desafio de todos nós, inclusive do PSOL.
RS: Mas há uma diferença. O PT surge num momento de ascensão interna muito grande, mas num momento de descenso internacional. Hoje em dia a gente vive um momento inverso. O Brasil está crescendo, as pessoas estão tranquilas, mas na Europa, Oriente Médio, está borbulhando. Isso obviamente não reflete automaticamente, mas esse processo não deixa de respingar aqui e de dar uma força para nossas organizações, seja o PSOL, o MST, avançarem também nesses caminhos e nesses desafios que você acabou de falar…
GM: Eu temo, e tomo muito cuidado com isso pelo seguinte: eu acho que as lutas ainda em escala planetária estão calcadas bastante pelo economicismo. Mesmo as ações que estão sendo vividas agora pela Europa, são muito mais ações defensivas ainda naquela fase das organizações para o tempo histórico velho, que já passou, que o capitalismo superou, do que novas organizações principalmente em lutas anti-sistêmicas. Eu não crio ilusões com isso. Pode ser que surjam aí lutas anti-sistêmicas, uma crítica contundente a ordem do capital, mas minha impressão, de longe, é que ainda são lutas de resistência pelas perdas, mas com muitos desvios ainda. Na Europa fala-se muito que a culpa da crise é dos imigrantes. Em momentos de crise aparece um monte de discursos estimulados pela direita, que no caso da Grécia também está crescendo… falta um projeto político. No caso do Oriente Médio, está no âmbito de lutas democráticas. No limite viu? E ainda em muitos casos com o dedão dos Estados Unidos naquelas lutas. Mesmo que haja contestação, no caso dos EUA, ainda é uma contestação dentro da ordem. Eu não criaria ilusões. Tomara que isso venha a se politizar e se transformar numa luta de fato anti-sistêmica. Acho que esse é o grande problema da esquerda em escala mundial, ela se reduziu a grupos pequenos, que tem uma visão estratégica mais clara, mas com uma dificuldade de dialogar com a grande população sobre os males que o capitalismo produz para a humanidade. Nós temos uma dificuldade muito grande de dialogar com isso. Eu acho que esse é o tempo ainda de lutas econômico-corporativas, e uma dificuldade de fazer lutas anti-sistêmicas pela transformação de fato mais profunda. Tomara que esteja equivocado, mas não quero plantar ilusões também.
RS: Vindo para um contexto mais latino-americano, já há algum tempo os movimentos indígenas vem tendo cada vez mais força nas lutas sociais no continente, alguns desde uma perspectiva mais contestadora e anti-sistêmica, outros mais localizados e com suas lutas mais pontuais. De qualquer forma me parece um setor interessante da luta social daqui pra frente. Como a luta social no campo no Brasil dialoga com esses movimentos, tanto no Brasil – como os Guarani Kaiowa no MS, os indígenas Pataxós na Bahia – quanto na América Latina, através da Via Campesina? Que diálogos se estabelecem e como vocês trabalham essa articulação?
GM: Há uma relação de bastante tempo sendo construída, com muitos desafios e contradições, desde os anos 90 que nós articulamos junto com o movimento indígena, movimento negro, movimentos urbanos e camponeses, o que nós chamamos de campanha continental “500 anos de resistência indígena, negra e popular”, com grandes eventos. Lembro de ter participado ativamente desta campanha, e ajudado a coordená-la inclusive. Foi um momento interessante na América Latina de reorganização do movimento popular. Dessa campanha surgiu a Coordenação Latinoamercana de Organizações do Campo, que deu uma grande contribuição para o surgimento da Via Campesina, em 1996. Desse movimento surgiu também a possibilidade de organização do movimento indígena, que teve muita dificuldade. O movimento negro também continentalmente teve muita dificuldade, e o movimento popular urbano também. Então, disso tudo, não que eu goste disso, o movimento camponês é que conseguiu uma forma de organização, mas sempre mantendo nexos principalmente com outros setores do campo, como os indígenas, por exemplo. Até porque se mistura muito na América Latina indígena e camponês. Se você pega o caso do Equador, do Peru, da Bolívia… principalmente nos casos boliviano, equatoriano, o movimento indígena se fortalece muito, e tem uma atuação importante conosco. Nós temos uma brigada de militantes na Bolívia, que está ajudando a construir e aprendendo também disso tudo.
No caso brasileiro, a mesma coisa. Eu acho que o movimento indígena passou por várias dificuldades como todos os movimentos, fragmentação, e agora retoma a partir de lutas muito concretas, como no caso da Bahia, que estivemos acompanhando e apoiamos e tínhamos absoluta convicção que mesmo na justiça eles iam ganhar, em função de todos os problemas que o ACM fez na distribuição de terras dele. Surgem lutas muito fortes que eu acho que devem trazer para o presente essa demanda tanto de coquistas históricas que deveriam estar consolidadas, quanto de refazer o debate político do tema no caso brasileiro. Há uma construção em curso entre movimento camponês e movimento indígena dentro da Via Campesina, não sem contradições. Dentro da Via Campesina há muitas contradições. São mais de 70 países que fazem parte da Via, tem alguns pontos que são comuns: a luta pela reforma agrária, a luta contra os agrotóxicos, contra os transgênicos, em defesa da semente como patrimônio da humanidade, em defesa da água como patrimônio da humanidade, enfim vários temas que são consensuais. Agora, não há consenso sobre o socialismo por exemplo. Se você pega a turma do leste europeu, do resto da Europa, nós temos dificuldades. O que a gente tenta é lidar com isso. Há uma construção política importante, acho que é uma das organizações maiores na atualidade, infelizmente – eu queria que o movimento operário tivesse uma articulação internacional muito mais forte, que o movimento social tivesse, mas não tem. É uma internacional cheia de contradições, mas que consegue dar respostas interessantes em questões muito concretas. É essa a construção. Isso para não criar ilusões também na Via Campesina. Ela está cumprindo uma parte importante, mas é limitada e pequena.
RS: As péssimas condições de vida das classes subalternas, sejam elas do campo, da cidade, operários ou indígenas, e também outras formas de opressão como às negras e negros, às mulheres, a homofobia, algumas delas são causadas diretamente pelo capitalismo, e de outras o capitalismo se utiliza para reproduzir-se, inclusive de forma estrutural. Neste sentido, como você vê as possibilidades de encontro dessas lutas do campo e da cidade no Brasil e na América Latina, mas também dos movimentos com os partidos… que tipos de articulação nós podemos e devemos construir, onde estão essas possibilidades hoje? Para onde devemos apontar?
GM: Pois é. Eis uma pergunta difícil, eu não tenho resposta. Eu imagino que tenham indicativos importantes… entre os desafios da esquerda, que eu não falei na primeira parte, tem um ingrediente que eu acho que é fundamental para se pensar um novo tipo de organização social de viés social e político ao mesmo tempo, que é não separarmos a luta social da luta política. Eu acho que essa fratura, proposital ou não, joga contra a classe trabalhadora. Na medida em que se separa a luta econômica e concreta da luta política, você vai numa lógica corporativa economicista, pragmática, por um lado, ou por outro, por vezes tem levado principalmente os partidos – mas não só – a um processo de burocratização no qual você se distancia da realidade socioeconômica vivida concretamente, e vai para um âmbito em que acaba uma meia dúzia de pessoas até estudando, lendo – eu brinco às vezes o cara leu três livrinhos, empina o nariz e já é o sabe tudo – mas sem contato com a realidade.
Isso leva às lógicas inclusive de verdades puras, absolutas, numa dificuldade de dialogar com outros que pensam de forma diferente, e você se separa do mundo real, essa é a verdade. Eles passam a viver um sonho deles, uma construção, no meu modo de ver, sendo generoso, de um subjetivismo muito grande, porque fazem a análise ideal, e não a análise real. A análise está separada da vida real e tem uma dificuldade de trabalhar com o mundo real. Como a gente trabalha a realidade? Se lá falta terra, tem que organizar a luta pela terra. Porque uma organização que não responde às necessidades, seja da sua categoria ou da classe, não tem sentido de ser para a categoria ou para a classe. E essa é a minha visão, eu acho que muitas organizações perderam completamente o sentido de ser para a classe, porque elas não dialogam com os problemas reais da classe. Só que isso é difícil. Como você está lá no acampamento e precisa de lona, e tem que lutar pela lona ou pela cesta básica – o que dá a impressão que se está lutando por uma compensaçãozinha, mas essa é a demanda imediata – e ao mesmo tempo se politiza o debate sobre a reforma agrária, a estrutura fundiária, etc., etc.? Vou dar um exemplo das contradições: químicos, já que estamos no sindicato aqui. A classe trabalhadora química é quem produz os venenos, sabe? Como você faz a luta por melhores condições para ele continuar produzindo veneno? Você vai chegar para o químico e dizer “pô, você tá lascando com o planeta”? Mas tem que fazer esse debate, precisamente, de que esse tipo de produção, vinculada à lógica das grandes transnacionais, Bayern, Singenta, etc., cumpre esse determinado papel dentro dessa lógica do capital a qual temos que superar, em última instância, pra acabar com as origens daqueles problemas reais, cotidianos, concretos.
RS: Nós convergimos na busca pela superação desse sistema, por conta de toda as opressões reproduzidas estruturalmente, da exploração de classe e da expropriação do trabalho, sejam na cidade ou no campo. Mas nós também enxergamos contradições no capitalismo, e que atingem muito mais e de forma fulminante às classes subalternas, com relação ao meio ambiente, à natureza. Neste sentido, no PSOL temos uma linha ecossocialista muito forte, que debate o socialismo sem abandonar a perspectiva de luta de classes como motor da história, mas englobando também a questão ambiental como parte das contradições fundamentais do capitalismo. Como você enxerga uma perspectiva ecossocialista de combate ao capitalismo?
GM: Dentro da esquerda tem muitas contradições sobre o tema. Há marxistas que acham que nós estamos doidos quando colocamos o tema da ecologia, e dizem que já tem tecnologia para produzir árvores mecânicas e um monte de coisas que resolveriam estes problemas que são gerados pelo desenvolvimento. Então, mesmo dentro da esquerda há muitas visões diferenciadas sobre o mesmo assunto. O bom é que nos últimos tempos a esquerda tem em grande medida se preocupado com o tema da ecologia, o que está correto. Como, aliás, não podia ser diferente. Na minha visão é um tema que está batendo pesado, e pode ser um dos ingredientes de diálogo com a sociedade e principalmente com as classes trabalhadoras, esse tema da ecologia. Aliás, esse tema pega muito, verificamos isso com a questão dos agrotóxicos, é uma questão que atrai as pessoas.
A Via Campesina tem colocado esse assunto, talvez não se autodominando como ecossocialista, mas essa preocupação está presente, quando defendemos a água, a terra e as sementes como patrimônios da humanidade. Debatemos uma cultura alimentar que o grande capital tem feito desaparecer, inclusive transformando tudo em quatro ou cinco tipos de comida padronizados internacionalmente. Então, eu acho que vários setores, mesmo sem se definir como ecossocialistas, na verdade tem um programa que é ecossocialista, em certo sentido. A minha preocupação não é tanto de que nós estejamos todos embaixo de um mesmo nome, mas sim que esse tema possa permear o conjunto das forças sociais e inclusive progressistas, não falo só do âmbito da esquerda. Se setores progressistas aderirem a este debate, de certa forma nós estamos conseguindo fazer com que eles entrem no combate à lógica do capital, inclusive talvez num primeiro momento até de uma forma ingênua muitos possam achar que se pode continuar com o capitalismo, mas numa produção diferente, o que é típico da classe média. É preciso trabalhar e politizar o debate, mostrar que não haverá desenvolvimento sustentável sob a lógica ou a égide do capital, porque é da sua natureza o dito desenvolvimento ser destrutivo, e ainda mais nesse momento histórico.
Eu estou brincando com a turma, a gente vai pra São Paulo e pega um baita desenvolvimento na marginal Tietê. Isso se chama desenvolvimento, a gente sente até o cheiro do desenvolvimento. É essa a lógica desse produtivismo, que faz com que tenhamos hoje quase 2 bilhões de carros no planeta… mas o capital quer que tenham 6 bilhões de carros, e vai fazer de tudo para vender os 6 bilhões, ele quer que todo mundo compre uma geladeira por ano, um computador por ano… Então é isso que é preciso dialogar com a sociedade em geral. É um gancho muito importante para discutirmos a lógica do capital. Muito importante. Está aí um veio que a esquerda precisa se apropriar, não para ter a patente disso, mas porque é uma necessidade da humanidade. Ou a gente debate esse assunto e combate a lógica do capital colocando o tema da opressão, da exploração, mas também a destrutividade do planeta, ou mesmo na esquerda a gente pode até construir outra sociedade com menos opressão, menos exploração, mas também destruidora do meio ambiente. Então, eu acho que está aí o grande tema. É o grande tema, não tenho nenhuma dúvida. Quem não colocar esse assunto no debate das suas orientações está por fora, e vai ter muita dificuldade inclusive de diálogo com a população.
A forma como fazer isso, acho que temos que começar pelas formas simples. A Via Campesina e o MST pegaram um veio interessante que é o tema da comida. O tema da comida pega. E isso está permitindo que superemos certas ignorâncias nossas. Qual o impacto, por exemplo, dos agrotóxicos na saúde humana? E aí já estamos chegando, envolvendo médicos, pesquisadores, ao problema do câncer, da dislexia – porque os agrotóxicos atingem o sistema nervoso central e nas crianças provocam dislexia –, no caso dos plantadores principalmente do fumo, onde se usa muito agrotóxico, o índice de suicídios é muito grande. Como atinge o sistema nervoso, provoca depressão e é evidente, os dados comprovam isso… nós estamos conseguindo computar dados e ao mesmo tempo superar nossa ignorância. Qual é a diferença de um alimento orgânico, agroecológico – que aí também tem vários vieses, vários debates: alimento orgânico, agroecológico, biodinâmico, várias correntes diferentes – produzido de uma forma mais saudável? Essa ideia dos hidropônicos, por exemplo, que é muito comum hoje. Se produz na água, e na água existem três ingredientes, fósforo, potássio e nitrogênio… na terra você tem 30 nutrientes. Mesmo sabendo que a planta incorpora outros nutrientes na fotossíntese, vai ser muito mais pobre em termos de nutrientes um alimento hidropônico do que os produzidos na terra, inclusive de forma convencional. E o orgânico, ou agroecológico, muito mais nutritivo ainda. Envolve cientistas, também.
Nessa perspectiva, precisamos produzir novos paradigmas tecnológicos para esse tipo de produção. Nós somos contestados como se produziria para a humanidade, como se produziria matéria-prima de forma agroecológica. O grande problema é que as grandes empresas sempre investiram na indústria química e não existem quase pesquisas numa perspectiva diferente. Agora, a China já está desenvolvendo produção tecnológica para pequena agricultura em grande escala. Agora, aqui no Brasil nós estamos com o tratorzão pesado, etc… É possível construir e envolver cientistas na busca de solução por exemplo para não diminuir a produtividade. Não somos contrários às tecnologias. Se saísse leite achocolatado da teta da vaca para mim estaria ótimo. Nós queremos elevar a produtividade. Queremos tecnologia que aumente a produtividade e diminua o processo penoso que é produção agrícola. Queremos o aumento de tempo livre, isso é fundamental para nós. É possível envolver médicos, como agora estamos conseguindo envolver e conhecer sobre esse tema, algo que parecia meio distante da gente… ou seja, é um tema que dialoga com muitos setores, muitos grupos, e pode ser um ingrediente inclusive de ampliação da nossa área de atuação, de inserção, com outros setores que são parte da classe trabalhadora também e que nos ajudariam a compor e preparar um projeto de novo tipo. Eu acho que está aí um veio – antes nós falávamos em termos de tática – que para nós é fundamental. Ou a gente avança nisso, no combate ao capitalismo numa perspectiva de modelos de novo tipo ou a humanidade vai encontrar vários problemas. Não quero cair também num catastrofismo, que a humanidade vai acabar. Agora é evidente que os impactos mais negativos desse processo vão sobrar precisamente para a classe trabalhadora mais empobrecida, sempre.
Eu tinha uma ideia de que a humanidade desenvolve tanta tecnologia, que íamos construir um guarda-chuva virtual, para nos proteger dos raios ultravioletas… árvore mecânica tem, tá bom, mas não resolve o problema da biodiversidade… na medida em que acabam as florestas acaba um monte de biodiversidade. Então mesmo que se construam tecnologias que nos protejam dos raios ultravioletas – que não tem – é diferente de você preservar de forma natural, completamente diferente. É isso que a esquerda precisa incorporar também hoje, não tem a menor dúvida. Nós estamos tendo que usar protetor solar… principalmente no trabalho da agricultura onde o câncer de pele é muito comum, principalmente quando se lida com agroquímicos e de sol a sol. Nós precisamos de tecnologia inclusive nesse tempo já, com o impacto do buraco na camada de ozônio. Precisamos de novas tecnologias porque não dá para trabalhar como trabalhávamos a 15, 20 anos atrás.
RS: O Eduardo Galeano tem uma frase muito bonita sobre isso, mas também muitos outros dizem que a utopia é o que nos faz caminhar. A ideia dessa revista, desse projeto, a ideia de falar com você, de tentar articular desde a juventude todo tipo de diálogo que possamos ter com os movimentos, também tem o sentido de encantar, ou reencantar, uma juventude que está muito desencantada com a política e com a luta social, diante de condições objetivas e subjetivas muito complicadas para se organizar… Então queria perguntar que utopia te movimenta, que utopia movimenta o MST? O que faz, hoje, vocês caminharem?
GM: Tá aí uma coisa interessante, que eu acho que tem a ver com o que conversávamos sobre o comportamento da esquerda… não tenho receitas também. Eu acho que muitos setores da esquerda acabaram, assim como separaram a luta econômica da luta política, produzindo uma espécie de barreira entre o que a gente vive e o nosso sonho. Então dá uma impressão de que agora é a desgraceira, agora é ruim, mas lá, quando a gente fizer o socialismo, vai ser tudo ótimo. Parece a ideia do céu.
Aqui você tem que sofrer pra caramba, para depois encontrar o céu. Num certo sentido, está incorporado no pensamento de esquerda isso, uma espécie de mistura de um materialismo mecanicista com idealismo. Parece que trabalhamos a luta como uma dimensão do sofrimento, quando não é isso. Sabe, eu tenho discutido bastante, inclusive com outros setores da classe trabalhadora, o seguinte: às vezes nós que somos a representação política da classe, por termos tido a oportunidade de ler umas coisinhas, vamos nos colocando como arrogantes, e nos distanciamos precisamente da classe trabalhadora. Parece que a classe depende da gente, que nós somos os importantes e que a classe nos deve obrigações, quando é exatamente o contrário, nós é que devemos o que somos às nossas categorias. Eu digo sempre com a maior tranquilidade: se a minha categoria decidir por opiniões que não sejam tão à esquerda, ou que não sejam o que eu defendo, sabe de que lado eu vou estar? Do lado da minha categoria. Porque é melhor errar com o coletivo do que acertar sozinho.
Segundo aspecto, eu que devo para a minha categoria o que sou. Foi essa categoria pobre que me permitiu superar um pouquinho da minha ignorância, viajar, conhecer o Brasil e até o mundo, me permitiu estudar, dialogar com um monte de outros companheiros e companheiras e ampliar meus horizontes, sejam culturais, políticos, ideológicos e até alimentares. Eu morava em Capanema, arrendatário… sabe, foi tão difícil assim? Se eu tivesse continuado lá eu estava ferrado… ou mais ferrado, para não dizer que quem está lá também não avançou. O que eu quero dizer é que a minha organização me permitiu avançar. E digo isso para mostrar o seguinte: que o momento da luta por vezes é tratado pela esquerda como o momento da desgraça, do sofrimento aqui para se alcançar o céu que seria o socialismo. Mas o meu tempo histórico é esse. O seu tempo é esse. Aqui a gente tem que lutar e transformar a luta num momento de alegria, num momento de prazer, porque a luta não é só para a gente adquirir mais coisas, melhores condições, mas a luta forma, a luta ajuda a superar a ignorância. A organização ajuda isso.
Eu defendo muito essa ideia de que a organização é fundamental em todas as sociedades, mas principalmente no capitalismo, porque a classe trabalhadora passa a maior parte do tempo trabalhando. De manhã à noite batendo cartão, e no final de semana vai às compras. Os momentos de luta são poucos, sazonais… uma greve por ano.
O momento que a classe trabalhadora vai lutar semanas a fio, meses, é o momento da revolução. Mas fora esse tempo, é isso. Daí a importância da organização, porque é a memória histórica de todas as lutas que a gente fez, é a preparadora das lutas atuais, é a preparadora das lutas futuras, é a formadora, serve como ingrediente da conspiração. E é essa organização que deve encantar a nova militância. Mas, para isso, ela tem que ser uma organização generosa, com um projeto estratégico, o mais horizontal possível… uma organização que vai ter muitos erros, muita diferença entre pensamentos. E digo isso com a maior tranquilidade, porque eu estou a 20 e poucos anos no MST e eu cometo erros, um monte. A gente quer em um dia, fazer uma assembleia em algum lugar, fazer análise de conjuntura, apresentar o nosso projeto e no final do dia ainda quer aprovar… e quem não aprova é pelego! Nós não temos paciência mais…
Por isso – à essência da sua pergunta – que a juventude não se encanta com as nossas organizações. Porque elas estão extremamente burocratizadas, sisudas, tudo é problema, tudo é dificuldade… o que a juventude quer com isso? E tá certo! Ela quer se divertir, ela quer viver… mas falta às nossas organizações incutir que ao mesmo tempo em que a gente tem que se divertir, refazer a geografia de uma cidade, de um país, correr, conhecer, é preciso ter um projeto ideal que nos ajude a avançar.
Eu acho que essa é uma grande dificuldade que nós passamos nesse momento, porque – volto a dizer – a gente separou o que vai ser lá no socialismo, que a gente idealiza (e que na verdade vai ser cheio de problemas e contradições, não tenho nenhuma dúvida) e acha que aqui a gente não vive. Bom, se a gente não vive aqui e agora, não vamos viver em lugar nenhum pelo jeito, né? E eu digo isso porque a agricultura nos ensina uma das chaves para isso. Se a gente quer colher abacateiro, tem que plantar abacate. Não tem jeito de plantar limão e querer colher abacate. Se tu quer colher laranja, tem que plantar laranjeira. Olha, se nós queremos uma sociedade solidária, nós temos que plantar solidariedade aqui e agora, se a gente quer a juventude participando, nós temos que criar as condições para que a juventude seja protagonista aqui e agora. Se nós queremos mulheres e homens atuando com igualdade, é preciso criar aqui e agora, onde a gente atua, as condições para que haja essa igualdade, e não lá na frente. Não há milagre.
Quer saber como vai ser a juventude amanhã? Veja o que as nossas crianças estão comendo, lendo, assistindo e fazendo hoje. Não tem milagre. É nisso que a esquerda às vezes crê… Se a gente não plantar aquilo que a gente quer aqui e agora, não vai ser lá na frente… Então a luta é um momento de alegria, é um momento de formação. Tem enfrentamento, tem stress, tem tiro na orelha, tem um monte de coisas, mas não é só dificuldade. A gente aprende pra caramba, e disso eu não tenho dúvida. Eu vejo dessa forma. Não plantar ilusões, mas plantar aqui e agora já os ingredientes. Ou a gente é hipócrita, no mínimo, se defende uma coisa para o futuro e faz outra aqui e agora.