“Luta pela terra não deve ter limites”, defende Sánchez Gordillo

 

Por Guilherme Kolling e Naira Hofmeister
Da Carta Maior

 

Por Guilherme Kolling e Naira Hofmeister
Da Carta Maior

 
Nome mais conhecido entre partidários da reforma agrária na Espanha,  Juan Manuel Sánchez Gordillo liderou marcha de trabalhadores em agosto e chamou a atenção ao tomar alimentos de um supermercado e distribuir a famílias pobres.  Chamado de “Robin Hood espanhol” por publicações como o Financial Times, ele justifica a necessidade de ações de desobediência civil em entrevista exclusiva a Carta Maior.
 
Juan Manuel Sánchez Gordillo é um nome conhecido na Espanha desde o início dos anos 1980, quando liderou trabalhadores do pequeno município de Marinaleda na ocupação de um latifúndio improdutivo. Prefeito da localidade e deputado na Andaluzia, ele ainda é um ativista importante da Reforma Agrária.
 
Voltou ao noticiário em agosto, ao liderar uma marcha do Sindicato Andaluz de Trabalhadores (SAT) pela distribuição de terras públicas a pequenos produtores, contra cortes nos gastos sociais e por punição dos banqueiros responsáveis pela crise. O grupo ocupou agências bancárias, palácios e supermercados de multinacionais, de onde levou alimentos sem pagar para distribuir a famílias necessitadas.
 
Esgotado ao final da caminhada de um mês pelo sul da Espanha, Gordillo recebeu a reportagem da Carta Maior em sua casa no dia 9 de setembro. Nesta entrevista, ele defende as ações de desobediência civil e argumenta que a forma de luta pela terra não deve ter limites. 
 
Ainda avalia que a reforma agrária hoje na Espanha é mais necessária do que no século XIX, sustenta que a fixação do jovem no campo passa por receber as mesmas oportunidades que teria na cidade, e elogia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil, para ele o mais importante movimento de massas do mundo na atualidade. 
 
Também demonstra esperança nos Indignados, fala sobre o Fórum Social Mundial e comenta o sistema de participação popular no município que comanda há três décadas. “A democracia direta é um veículo imprescindível para uma nova esquerda e um novo mundo”.
 
A ocupação de latifúndios improdutivos é uma estratégia utilizada há décadas no Brasil para lutar pela reforma agrária. Esse tipo de ação ainda é válido ou há outras formas melhores de reivindicar a distribuição de terras?
 
Penso que a terra, como o ar e a água, forma parte da natureza e, portanto, não deve servir para o enriquecimento privado, mas sim para a comunidade que habita uma determinada área. A terra, a água, as sementes devem formar parte dessa comunidade basicamente para a produção de alimentos, como direito, não como negócio. É o que eu chamaria de soberania alimentar.
 
A forma ideal de reivindicar que a terra esteja a serviço da comunidade é fazendo marchas, protestos ou tomando supermercados como vocês fizeram recentemente?
 
Creio que a forma de luta não deve ter limites. E há que se ter imaginação para abrir novos métodos de luta que o sistema custe a superar. Porque o clássico movimento de luta, de alguma maneira, o sistema teve a capacidade de absorvê-lo e convertê-lo em algo que não inquieta ao seus interesses. Portanto, é imprescindível ter muita imaginação no método de luta, claridade nos objetivos e constância na peleia.
 
Qual é a importância da reforma agrária hoje na Espanha?
 
Na Andaluzia (comunidade que reúne as províncias do sul do país), 2% dos proprietários detém 50% das terras cultiváveis. É uma estrutura quase feudal, que não é própria dos nossos dias. Diria que a reforma agrária no século XXI é mais necessária do que no século XIX, porque o alimento deve cumprir um papel estratégico. No futuro, quem controlar os alimentos vai controlar o planeta. Da mesma forma que há guerra pelo petróleo, acredito que haverá por água potável e alimentos. Toda a pessoa tem que comer, então, não é razoável um sistema em que três quartas partes da humanidade passe fome e se joguem alimentos fora no mar. 
 
É necessária essa reforma que ponha os recursos básicos da natureza a serviço do ser humano. O velho sistema de agricultura capitalista fracassou: aumentou a fome no mundo, vieram os transgênicos, apareceram monopólios financeiros que controlam todo o comércio mundial. Portanto, a reforma agrária é imprescindível, é uma luta em que estamos há muito tempo porque acreditamos que o futuro de uma Andaluzia livre e soberana dificilmente será feito sem uma reforma agrária, com todas as suas consequências.
 
E há uma janela na legislação espanhola que permita fazer essa Reforma Agrária?
 
Não. Teve na Segunda República uma lei de reforma agrária e (o ex-ditador Francisco) Franco a liquidou. Depois, em 1984, houve uma tentativa de reforma agrária por pressão do sindicatos, mas foi uma lei mais retórica do que real, não chegou a expropriar nem uma peseta (antiga moeda na Espanha). Havia tantos pré-requisitos e problemas burocráticos que, ao final, não serviu para absolutamente nada. Serviu simplesmente para que os terratenentes (“coronéis”) trocassem a titularidade da terra, dissimulando legalmente que eram grandes latifundiários.
 
Essa marcha entre agosto e setembro na Andaluzia foi a que reuniu mais apoiadores nos últimos anos. Como está a luta pela reforma agrária hoje?
 
Há uma mobilização que vem de baixo. O Estado diz que a reforma agrária é uma coisa do século XIX. Para nós, é do século XXI, é mais necessária do que nunca, é imprescindível. E é um tema que não deve preocupar somente o trabalhador rural, mas também aos consumidores. O que comemos todos os dias deve ser uma preocupação geral. E o que a marcha fez foi conectar as preocupações do campo com as da cidade, e, de alguma maneira, dar esse empurrão para que seja possível a reforma agrária em uma Europa que dá as costas para a terra.
 
Teria um efeito positivo nesse momento de crise na Europa?
 
Uma reforma agrária seria muito importante na Andaluzia, em Portugal… E sobretudo se fosse o início de um mundo diferente, onde os recursos se ponham a serviço do ser humano, onde a economia seja posta a serviço do homem e não o contrário.
 
No Brasil, a luta pela reforma agrária é liderada pelo MST. Qual é a sua avaliação do movimento?
 
É o movimento de massas mais importante que há no mundo ainda hoje. E penso que deve se potencializar e aprofundar para conseguir uma sociedade diferente, que, por certo, não é capitalista. E o MST é um movimento imprescindível no Brasil, país onde a terra está tão concentrada. Torço para que nenhuma burocracia o estrague e que o MST sempre funcione por seu objetivo primário.
 
A propósito de movimentos e de lutas no campo e na cidade, o mundo está atento aos Indignados, ou 15-M como dizem aqui na Espanha (referência ao 15 de maio de 2011, quando surgiu o movimento).
 
O 15-M foi um despertar espontâneo muito interessante. E há uma grande conexão conosco. Nesse momento, e depois dos últimos acontecimentos, dá para ver a possibilidade de unir uma boa parte da opinião pública e de setores produtivos para promover uma mudança real em todos os lugares.
 
Um dos dizeres do 15-M é “democracia real já”, pois o sistema atual não seria representativo nem democrático. As assembleias aqui em Marinaleda para discutir o orçamento e os problemas do município são uma tentativa desse ideal pregado pelos Indignados?
 
Nós levamos para a assembleia dos cidadãos qualquer tema ou problema do município. Em todos os assuntos – sindical, político… Temos um orçamento participativo, discutido bairro por bairro, até que em um encontro final de todos os vizinhos se toma a decisão sobre esse orçamento. Quando acertamos, acertamos muitos, e quando erramos, erramos muitos. Em qualquer caso, a melhor maneira de decidir é coletivamente. A democracia direta é um veículo imprescindível para uma nova esquerda e um novo mundo.
 
E qual é a sua avaliação do Fórum Social Mundial?
 
Me parece muito interessante esse encontro. Talvez, um defeito seja que se teoriza muito e se concretiza pouco. As reflexões são muito profundas e necessárias, porque anunciam um mundo melhor. Falta não apenas anunciar que um outro mundo é possível, mas também converter esse outro mundo em realidade.
 
O futuro do mundo depende muito do jovem. Uma questão que se coloca é como atrair esse jovem para a vida no campo, tendo em vista as atrações da cidade, carreiras universitárias… O campo será sempre uma segunda opção?
 
É possível que essa seja uma primeira opção do jovem sempre e quando se contemplem as mesmas possibilidades de desenvolvimento do ser humano em qualquer parte do país. Ou seja, que o mundo rural e o mundo urbano se assemelhem em termos de oportunidades. E que a agricultura e a agroindústria cumpram um papel muito mais decisivo do que o que tem nos dias de hoje.
 
O MST criou, em algumas comunidades do Brasil, escolas e universidades. Essa oportunidade de formação seria um exemplo disso?
 
Sim. Estive no Brasil visitando algumas comunidades, com um método próprio de ensino, com uma titulação própria. Essa é uma das grandes conquistas do MST. Que o assentado possa educar a sua gente com seus próprios valores, com sua maneira de entender a vida, para que essa cooperativa, esse assentamento tenham continuidade no futuro. Porque se há uma desconexão entre a rua e o meio, é impossível que se avance em um ideal de modelo agrícola diferente, com outros valores.
 
E o jovem de hoje está aberto a isso?
  
O jovem tem recebido muita carga da sociedade de consumo e do brilho da cidade. Faz falta uma revolução de valores – solidariedade, companheirismo. Aqui em Marinaleda tentamos através das assembleias, das manifestações, da rádio, da televisão, colocar esses novos valores que deem lugar a um ser humano novo. Se queremos um mundo diferente, precisamos não apenas de jovens, mas de jovens diferentes. Seria interessante que fizessem projetos pilotos no país em que se contemplassem todas as possibilidades de desenvolvimento que se encontra nas universidades. Para que seja atrativo, que as pessoas vejam que podem progredir no campo. Seria um exemplo de como conseguir um avanço no retorno do jovem ao campo.