Kátia Abreu, a antropóloga, criadora da abreugrafia


Por José Ribamar Bessa Freire
Do Portal Patria latina

Nelson Rodrigues só se deslumbrou com "a psicóloga da PUC" porque não conheceu "a antropóloga da Folha". Mas ela existe. É a Kátia Abreu. É ela quem diz aos leitores da Folha de São Paulo, com muita autoridade, quem é índio no Brasil. É ela quem religiosamente, todos os sábados, em sua coluna, nos explica como vivem os "nossos aborígenes". É ela quem nos ensina sobre a organização social, a distribuição espacial e o modo de viver deles.


Por José Ribamar Bessa Freire
Do Portal Patria latina

Nelson Rodrigues só se deslumbrou com “a psicóloga da PUC” porque não conheceu “a antropóloga da Folha”. Mas ela existe. É a Kátia Abreu. É ela quem diz aos leitores da Folha de São Paulo, com muita autoridade, quem é índio no Brasil. É ela quem religiosamente, todos os sábados, em sua coluna, nos explica como vivem os “nossos aborígenes”. É ela quem nos ensina sobre a organização social, a distribuição espacial e o modo de viver deles.

Podeis obtemperar que o caderno Mercado, onde a coluna é publicada, não é lugar adequado para esse tipo de reflexão e eu vos respondo que não é pecado se aproveitar das brechas da mídia. Mesmo dentro do mercado, a autora conseguiu discorrer sobre a temática indígena, não se intimidou nem sequer diante de algo tão complexo como a estrutura de parentesco e teorizou sobre “aborigenidade”, ou seja, a identidade dos “silvícolas” que constitui o foco central de sua  – digamos assim – linha de pesquisa.

A maior contribuição da antropóloga da Folha talvez tenha sido justamente a recuperação que fez de categorias como “sílvicola” e “aborígene”, muito usadas no período colonial, mas lamentavelmente já esquecidas por seus colegas de ofício.
Desencavá-las foi um trabalho de arqueologia num sambaqui conceitual, que demonstrou, afinal, que um conceito nunca morre, permanece como a bela adormecida à espera de alguém que o desperte com um beijo. Não precisa nem reciclá-lo. Foi o que Kátia Abreu fez.

Com tal ferramenta inovadora, ela estabeleceu as linhas de uma nova política indigenista, depois de fulminar e demolir aquilo que chama de “antropologia imóvel” que seria praticada pela Funai. Sua abordagem vai além do estudo sobre a relação observador-observado na pesquisa antropológica, não se limitando a ver como índios observam antropólogos, mas como quem está de fora observa os antropólogos sendo observados pelos índios. Não sei se me faço entender. Mas em inglês seria algo assim como Observing Observers Observed. 

Os argonautas do Gurupi

Todo esse esforço de abstração desaguou na criação de um modelo teórico, a partir do qual Kátia Abreu sistematizou um ousado método etnográfico conhecido como abreugrafia que, nos anos 1940, não passava de um prosaico exame de raios X do tórax, uma técnica de tirar chapa radiográfica do pulmão para diagnosticar a tuberculose, mas que foi ressignificado. Hoje, abreugrafia é a descrição etnográfica feita com o método inventado por Kátia Abreu, no caso uma espécie de raio X das sociedades indígenas.

Esse método de coleta e registro de dados foi empregado na elaboração dos três últimos artigos assinados pela antropóloga da Folha: Uma antropologia imóvel (17/11), A Tragédia da Funai(03/11/) e Até abuso tem limite (27/10) que bem mereciam ser editados, com outros, num livro intitulado “Os argonautas do Gurupi”. São textos imperdíveis, que deviam ser leitura obrigatória de todo estudante que se inicia nos mistérios da antropologia. A etnografia refinada e apurada que daí resulta quebrou paradigmas e provocou uma ruptura epistemológica ao ponto de não-retorno.

A antropóloga da Folha aplicou aqui seu método revolucionário – a abreugrafia – que substituiu o tradicional trabalho de campo, tornando caducas as contribuições de Boas e Malinowski. Até então, para estudar as microssociedades não ocidentais, o antropólogo ia conviver lá, com os nativos, tinha de “viver na lama também, comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar” da sociedade estudada, numa convivência prolongada e profunda com ela, como em  ‘Lama’, interpretada por Núbia Lafayette ou Maria Bethania.

A abreugrafia acabou com essas presepadas. Nada de cantoria. Nada de anthropological blues.Agora, o antropólogo já não precisa se deslocar para sítios longínquos, nem viver um ano a quatro mil metros de altura, numa pequena comunidade nos Andes, comendo carne de lhama, ou se internar nas selvas amazônicas entre os huitoto, como fez um casal de amigos meus. E tem ainda uma vantagem adicional: com a abreugrafia, os antropólogos nunca mais serão observados pelos índios.

Em que consiste, afinal, esse método que dispensa o trabalho de campo? É simples. Para conhecer os índios, basta tão somente pagar entrevistadores terceirizados. Foi o que fez a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) que, por acaso, é presidida por Kátia Abreu. A CNA encomendou pesquisa ao Datafolha que, por acaso, pertence à empresa dona do jornal onde, por acaso, escreve Kátia. Está tudo em casa. Por acaso.

Terra à vista

Os pesquisadores contratados, sempre viajando em duplas – um homem e uma mulher – realizaram 1.222 entrevistas em 32 aldeias com cem habitantes ou mais, em todas as regiões do país. Os resultados mostram que 63% dos índios têm televisão, 37% tem aparelho de DVD, 51% geladeira, 66% fogão a gás e 36% telefone celular. “A margem de erro” – rejubila-se o Datafolha – “é de três pontos percentuais para mais ou para menos”.

“Eu não disse! Bem que eu dizia” – repetiu Kátia Abreu no seu último artigo, no qual gritou “terra à vista”, com o tom de quem acaba de descobrir o Brasil. O acesso dos índios aos eletrodomésticos foi exibido por ela como a prova de que os “silvícolas” já estão integrados ao modo de vida urbano, ao contrário do que pretende a Funai, com sua “antropologia imóvel” que “busca eternizar os povos indígenas como primitivos e personagens simbólicos da vida simples”. A antropóloga da Folha, filiada à corrente da “antropologia móvel”, seja lá o que isso signifique, concluiu:

– “Nossos tupis-guaranis, por exemplo, são estudados há tanto tempo quanto os astecas e os incas, mas a ilusão de que eles, em seus sonhos e seus desejos, estão parados, não resiste a meia hora de conversa com qualquer um dos seus descendentes atuais”.

Antropólogos da velha guarda que persistem em fazer trabalho de campo alegam que Kátia Abreu, além de nunca ter conversado sequer um minuto com um índio, arrombou portas que já estavam abertas. Qualquer aluno de antropologia sabe que as culturas indígenas não estão congeladas, pois vivem em diálogo com as culturas do entorno.
Para a velha guarda, Kátia Abreu cometeu o erro dos geocêntricos, pensando que os outros estão imóveis e ela em movimento, quando quem está parada no tempo é ela,
incapaz de perceber que não é o sol que dá voltas diárias em torno da terra.

No seu artigo, a antropóloga da Folha lamenta que os índios “continuem morrendo de diarreia”. Segundo ela, isso acontece, não porque os rios estejam poluídos pelo agronegócio, mas “porque seus tutores não lhes ensinaram que a água de beber deve ser fervida”. Esses tutores representados pela FUNAI – escreve ela – são responsáveis por manter os índios “numa situação de extrema pobreza, como brasileiros pobres”.
Numa afirmação cuja margem de erro é de 3% para mais ou para menos, ela conclui que os índios não precisam de tutela.

– Quem precisa de tutela intelectual é Kátia Abreu – retrucam os antropólogos invejosos da velha guarda, que desconhecem a abreugrafia. Eles contestam a pobreza dos índios, citando Marshall Sahlins através de postagem feita no facebook por Eduardo Viveiros de Castro:

“Os povos mais ‘primitivos’ do mundo tem poucas posses, mas eles não são pobres. Pobreza não é uma questão de se ter uma pequena quantidade de bens, nem é simplesmente uma relação entre meios e fins. A pobreza é, acima de tudo, uma relação entre pessoas. Ela é um estatuto social. Enquanto tal, a pobreza é uma invenção da civilização. Ela emergiu com a civilização…”

Miss Desmatamento

A conclusão mais importante que a antropóloga da Folha retira das pesquisas realizadas com a abreugrafia é de que os “aborígenes”, já modernizados, não precisam de terras que, aliás, segundo a pesquisa, é uma preocupação secundária dos índios, evidentemente com uma margem de erro de três pontos para mais ou para menos.

– “Reduzir o índio à terra é o mesmo que continuar a querer e imaginá-lo nu” – escreve a antropóloga da Folha, que não quer ver o índio nu em seu território. “Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público. O índio hoje reclama da falta de assistência médica, de remédio, de escola, de meios e instrumentos para tirar o sustento de suas terras. Mais chão não dá a ele a dignidade que lhe é subtraída pela falta de estrutura sanitária, de capacitação técnica e até mesmo de investimentos para o cultivo”.

A autora sustenta que não é de terra, mas de fossas sépticas e de privadas que o índio precisa. Demarcar terras indígenas, para ela, significa aumentar os conflitos na área, porque “ocorre aí uma expropriação criminosa de terras produtivas, e o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com uma mão na frente e outra atrás”.

Ficamos, então, assim combinados: os índios não precisam de terra, quem precisa são os fazendeiros, os pecuaristas e o agronegócio. Dados apresentados pela jornalista Verenilde Pereira mostram que na área Guarani Kaiowá existem 20 milhões de cabeças de gado que dispõem de 3 a 5 hectares por cabeça, enquanto cada índio não chega a ocupar um hectare.

Um discípulo menor de Kátia Abreu, Luiz Felipe Pondé, também articulista da Folha, tem feito enorme esforço para acompanhar a produção intelectual de sua mestra, usando as técnicas da abreugrafia, sem sucesso, como mostra artigo por ele publicado com o título Guarani Kaiowá de boutique (9/11), onde tenta debochar da solidariedade recente aos Kaiowá que explodiu nas redes sociais.

Kátia Regina de Abreu, 50 anos, empresária, pecuarista e senadora pelo Tocantins (ex-DEM,atual PSD), não é apenas antropóloga da Folha. É também psicóloga formada pela PUC de Goiás, reunindo dois perfis que deslumbrariam Nelson Rodrigues.

Bartolomé De las Casas, reconhecido defensor dos índios no século XVI, contesta o discurso do cronista do rei, Gonzalo Fernandez de Oviedo, questionando sua objetividade pelo lugar que ele ocupa no sistema econômico colonial: 

– “Se na capa do livro de Oviedo estivesse escrito que seu autor era conquistador, explorador e matador de índios e ainda inimigo cruel deles, pouco crédito e autoridade sua história teria entre os cristãos inteligentes e sensíveis”.

O que é que nós podemos escrever na capa do livro “Os Argonautas do Gurupi” de Kátia Abreu, eleita pelo movimento ambientalista como Miss Desmatamento? Que crédito e autoridade tem ela para emitir juízos sobre os índios? O que diriam os cristão inteligentes e sensíveis contemporâneos? Respostas em cartas à redação, com a margem de erro de 3% para mais ou para menos.