“Acabou a ditadura militar, mas não a do latifúndio”, afirma coordenador da CPT


Por Viviane Brigida
Da Página do MST


“Setores da igreja continuam fiéis ao compromisso de estar ao lado dos pobres na defesa da vida, na defesa da Reforma Agrária, pela justiça, contra a impunidade, contra o agronegócio, contra esse modelo”, afirma Padre Paulo Joanil da Silva, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará e secretário executivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Norte 2.

Por Viviane Brigida
Da Página do MST

“Setores da igreja continuam fiéis ao compromisso de estar ao lado dos pobres na defesa da vida, na defesa da Reforma Agrária, pela justiça, contra a impunidade, contra o agronegócio, contra esse modelo”, afirma Padre Paulo Joanil da Silva, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará e secretário executivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Norte 2.

Em entrevista à Página do MST, Joanil analisa os conflitos pela terra durante a ditadura militar, a opressão que os trabalhadrores rurais sofreram, o papel da igreja no período e o que mudou no campo brasileiro de lá até hoje. “Acabou a ditadura militar, mas continua a ditadura do latifúndio, a ditadura do modelo econômico, do capital”.
 
Confira a entrevista:

Em que época o senhor chegou ao Sul do Pará?

Cheguei pela primeira vez em janeiro 1977 e fiquei morando para conhecer a região, em áreas onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia, Brejo Grande.

Fui então para outra região conflituosa, a PA 150, em locais como Marabá, Jacundá, Nova Ipixuna e Goianésia. Muitos imigrantes e camponeses migraram para lá pensando que era uma região menos contaminada com a presença do exército, mas na verdade a presença da polícia militar e da pistolagem fazia paralelo com a realidade da transamazônica.

Como o senhor vê os 50 anos do Golpe militar no Brasil, em especial aqui na região amazônica?

Nós temos vários pontos de reflexão nesse momento histórico. Em primeiro lugar é revelar que esse golpe que o Brasil sofreu, até hoje o Estado não recuperou totalmente a memória.

Nem a memória aos familiares dos desaparecidos, dos mortos, presos, torturados, nem a reparação moral, sobretudo da história de um povo, de uma nação, que deve exigir do estado a verdade dos fatos e em seguida a punição dos responsáveis, por isso nós somos muito críticos a lei da anistia.

Não se resolve apurar a verdade tapando o sol com a peneira, colocando um curativo legalista em cima de um capítulo ainda não plenamente conhecido e colocado para a sociedade. Nesse contexto, vejo a memória dos 50 anos do golpe como uma dívida. O Estado tem uma dívida com a sociedade brasileira, com as vítimas, com os que sofreram torturas, de elucidar os fatos, não ter vergonha de que houve esse fato histórico e que o Estado tem obrigações a reaver.

Em segundo lugar, no contexto fundiário do sul e sudeste do Pará, o Exército agiu de maneira violenta, de arregimentar a população local para servir de guias na caçada aos guerrilheiros do Araguaia, já que o exército estava despreparado para esse tipo de ação de combate na selva.

A opressão e controle psicológico que as famílias sofreram criou um clima de medo que durou muitos anos, pois havia pessoas infiltradas nas comunidades como informantes, prestando serviço para o exército.

Os camponeses se tornaram vítimas de um processo de coação de obrigação civil de servir, e após o encerramento oficial dos combates contra a guerrilha, não se devolveu a essa população camponesa a plena dignidade de rever a sua cidadania, o que fez um conflito fundiário explodir neste contexto: as famílias vão sofrendo um “segundo massacre” por parte do latifúndio, é um quadro cruel.

E a participação da igreja nesta época?

A igreja local na época atuou de maneira muito clara, objetiva e consciente do seu papel, haja vista que era a única força organizada que tinha uma repercussão para fora da região. Era a voz da igreja, dos religiosos que atuavam na época que denunciavam a repressão do que ocorria no Araguaia para o resto do país.

A figura dos bispos foi importante e em consequência pagaram um preço como toda a população. Caluniados, perseguidos, chamados a depoimentos humilhantes no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Belém, pois as forças armadas acreditavam que eles estavam a serviço do comunismo, pois realizavam o trabalho na pastoral.
 
Foi por meio das dioceses de Conceição do Araguaia e Marabá que se criou os primeiros sindicatos livres. Até então, o único sindicato da região era organizado pelo major Curió, e o ministro Jarbas Passarinho era quem dava a carta sindical.

Então a diocese de Marabá começou uma discursão nas comunidades de criar sindicatos livres, independentes desse modelo militarizado. Isso foi uma conquista, pois chegou a ter assembleia de trabalhadores rurais em Conceição com mais de mil trabalhadores, que viam na forma de organização sindical o seu espaço de independência.

O papel da igreja era de facilitar para que o povo assumisse o seu protagonismo, suas próprias organizações independentes. E isso foi motivo de muita perseguição por parte das forças armadas, da ditadura na região, porque para os grileiros, os fazendeiros, os grandes grupos econômicos, criar sindicatos, lutar por terra, por Reforma Agrária, era coisa de comunista. Era a lógica reinante na época. Essa base, esses acontecimentos, criaram uma confiança política, de avançar na luta sem medo e assumindo riscos.

Nesse período, aconteceu a prisão de dois padres franceses e posseiros em São João do Araguaia, a igreja foi invadida pela polícia federal; agentes federais disfarçados de padres chegavam para rezar missa na igreja, foi  uma intensa perseguição.
 
A prisão dos padres e dos trabalhadores foi duradoura, porém provocou reações na sociedade. Foi organizado o Movimento pela Libertação dos presos do Araguaia em vários municípios. Lembro-me dos momentos dos julgamentos, dentro da justiça militar, nos quais eles foram condenados: houve uma reação da sociedade civil e dos movimentos organizados dizendo um basta desta violência do Estado contra a luta camponesa.

Como o senhor avalia os conflitos de terra neste período da ditadura?

A repressão militar era focalizada em qualquer movimento de crítica ao modelo concentrador da terra, ou seja, ao latifúndio implantado na região. O latifúndio de madeireiros chegando para exploração e grupos econômicos como Bradesco, Bamerindus, que por conta dos subsídios da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) ocuparam um território que até então se dizia desocupado, ignorando a presença de muitos posseiros na região, comunidades indígenas.

Tudo isso criou uma violência sem precedentes no sul do Pará, com apoio do governo, através das polícias militares após o término da guerrilha do Araguaia. Não havia um município do sul e sudeste do Pará onde violência, arbitrariedade, despejos sem liminares do juiz ocorriam constantemente, junto com a pistolagem.

A luta pela terra era considerada uma questão militar e, mesmo após o final do regime militar, os governos continuaram com essa visão de resolver os conflitos com violência..

Para os trabalhadores se usava da força, da repressão, mas para o latifúndio, para as empresas, todos os caminhos estavam abertos para seus projetos. Exploração de madeira, adotar o trabalho escravo e adquirir quantidade infinitas de territórios grilados, os despejos violentos, torturas e mortes.

Esse período, dos anos 1980 até 1987, foi muito cruel, e perdurou o massacre do latifúndio sobre as comunidades e trabalhadores rurais. Era comum quando íamos ao Incra para solucionar conflitos, e os coordenadores, mesmo sendo civis nos ameaçavam e a polícia militar estava dentro do instituto.

Você acredia que essa realidade mudou?

Não, não mudou. Acabou a ditadura militar, mas continua a ditadura do latifúndio, a ditadura do modelo econômico, do capital, da impunidade de um Estado que sempre está ao lado do modelo concentrador, destruidor da Amazônia, da floresta, com práticas hediondas como trabalho escravo, extermínio dos povos indígenas, perseguição e ameaças de lideranças sindicais, do MST e tantos outros.

O massacre de Eldorado dos Carajás é exatamente o retrato fiel dessa reflexão. Quem resiste a esse modelo é eliminado.

Esse modelo é tão cruel quanto o de antes, e utiliza dos mesmos mecanismos: o Estado, o Judiciário, os parlamentos. A diferença é que hoje se usa da via institucional, com a bancada ruralista, as alianças político-partidárias, porque na visão deles é isso que precisa para desenvolver o país, ter progresso, mesmo que seja à custa de sangue, de acumulação de terras, a custo de violência e da impunidade. Então continuamos num ditadura. Talvez muito mais sofisticada e tão violenta quanto a ditadura militar.

E como o senhor vê o papel da igreja neste contexto atual?

Como toda realidade, nesse mundo globalizado, a Igreja oficial vive neste contexto de confusão de conhecimento e posicionamento. Mas setores da igreja continuam fiéis ao compromisso de estar ao lado dos pobres na defesa da vida, na defesa da Reforma Agrária, pela justiça, contra a impunidade, contra o agronegócio, contra esse modelo.

Nós buscamos sempre resgatar estes valores, que são inegociáveis. Temos que conservar a luta de hoje e o idealismo do futuro. A terra sem males, de justiça, a terra repartida, da paz e da fartura para todos, com plenos direitos, e não somente para aqueles que detêm o poder econômico nas mãos. E isso não é tranquilo em todos os setores da Igreja.

No contexto atual é um posicionamento polêmico, porque há correntes na igreja que defendem os interesses de grupos poderosos, e querem usar a religião e a igreja para manter privilégios e manter o povo no ópio, cego, submetido, o que é contraditório ao que Jesus Cristo pregava.