A boiada de Eunício

 

Por Fábio Serapião 
Para Carta Capital

 

Por Fábio Serapião 
Para Carta Capital

Cerca de 3 Mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra estão há 38 dias acampados em uma pequena extensão de terra nos limites da Fazenda Santa Mônica. Localizada entre os municípios de Alexânia e Corumbá de Goiás, a propriedade é um aglomerado de imóveis rurais com mais de 21 mil hectares registrados em nome do senador e atual candidato ao governo do Ceará Eunício Oliveira, do PMDB. Enquanto negociam a destinação da área para a reforma agrária, os ocupantes do agora acampamento Dom Tomás Balduíno, nome dado em homenagem ao bispo emérito de Goiás falecido em maio, começam a plantar e colher hortaliças. Outro trabalho desenvolvido nesses dias é o de investigação. O MST quer descobrir como o senador conseguiu comprar quase dois terços da área de Alexânia e formar um latifúndio nas proporções da Santa Mônica. Os acampados, inclusive, estão dispostos a deixar a área caso o senador consiga explicar a origem de sua riqueza.

 

“E muita terra. Como um deputado e depois senador teve tempo para, enquanto legislava, ganhar tanto dinheiro?”, pergunta o coordenador do MST de Goiás, Valdir Misnerovicz. Entre 2010 e 2014, os bens do senador saltaram de 36 milhões para 99 milhões de reais. Em busca de resposta para a vastidão de terra conquistada por Oliveira, o MST encontrou alguns casos que causam estranheza àqueles sem o mínimo de terra necessária para a subsistência. “A cada dia são mais pessoas que denunciam os desmandos do senador aqui na região. Ao que parece, toda essa terra em nome dele foi comprada à custa da vida tranqüila dos moradores da região”, completa Misnerovicz. O coordenador do MST cita dois exemplos das situações encontradas desde quando começaram a ocupação.

 

O primeiro deles é o documentário Passarim. Produzido por Camila de Freitas, então aluna da Universidade de Brasília, o vídeo de 15 minutos de duração reúne vários depoimentos de antigos proprietários de sítios e chácaras atualmente integrados à Santa Mônica. As histórias documentadas em Passarim expõem a pressão sofrida por esses moradores para que vendessem as terras ao senador e deixassem a região. O caso de Dona Fiíca, que ao lado de seu marido, Vicente Machado, vendeu terras ao peemedebista chama atenção. Segundo a sitiante, corretores enviados por Oliveira pressionaram a família até a venda ser concretizada. “Veio um corretor na casa da gente o ano inteiro. E foi “aperrinhando” agente, até que resolveu. Tudo que quiser vender e o que não quer eles obrigam a vender”, contou à documentarista. Outro caso é o agricultor Zezinho Alves. Segundo ele, os corretores passaram três anos pressionando sua família para vender o imóvel. “Eu não tinha interesse em sair de lá, não. Mas quase todo dia eles estavam lá. Diziam que tinha que aproveitar e vender, porque os outros iam vender e iam cercar a estrada”, explica Alves, para quem essa tática tem como objetivo pressionar os moradores. “Eles falam que vão fechar a estrada, que vão encher tudo de gado.”

 

O segundo caso diz respeito, justamente, ao gado de Oliveira. O integrante do alto escalão do PMDB é um pecuarista de sucesso. Em 2006, quando concorreu a uma vaga na Câmara dos Deputados, o candidato não declarou a posse de nenhum boi ou vaca ao Tribunal Superior Eleitoral. Um ano depois, em maio de 2007, a Agrodefesa de Goiás computou ao peemedebista a “posse de 9.258 animais bovinos”. A façanha foi ainda maior no ano seguinte. Em maio de 2008, dois anos após declarar não possuir gado, detinha em seus registros estaduais nada menos que 19.411 animais, ou seja, de sitiante o parlamentar tornou-se o maior criador de gado nelore da região.

 

Por si só, os números causariam espanto ao mais atento dos fiscais da Receita Federal, mas a história não para por aí. Os bois são alvo de um processo na Justiça que resultou em condenação de uma família inteira e na conquista de mais duas fazendas pelo senador. Em 24 de setembro de 2009, Oliveira compareceu à delegacia de Polícia de Corumbá de Goiás para registrar o desaparecimento de 650 reses nelore e demais animais da mesma raça sem precisar o número exato. Com base em suas alegações, a Polícia Civil instaurou um inquérito policial.

 

Segundo o político, durante sua ausência de cerca de um ano para a realização de tratamento médico, o funcionário Álvaro de Araújo teria roubado o gado. Não há provas nos autos sobre esse suposto problema de saúde.

 

Em tempo recorde, a polícia cumpriu todas as diligências investigatórias e, em 23 de novembro de 2011, antes mesmo da oferta da denúncia, o juiz Levine Raja Gabaglia não só atendeu ao pedido de seqüestro de bens solicitado pelo delegado do caso como autorizou a imissão de posse da Fazenda Cutia em nome do senador. Ou seja, antes de sentenciar os supostos envolvidos no roubo, o juiz entregou aposse da fazenda a Oliveira. Situada próximo à Santa Mônica, a Cutia é de Tito de Araújo Leite, sogro de Álvaro. A justificativa do juiz é que Mano (apelido de Álvaro) teria investido o dinheiro oriundo do roubo do gado em benfeitorias na fazenda. Houve quebra de sigilo bancário dos citados, mas nada foi encontrado. Ainda segundo a investigação, após o investimento na Cutia, Mano comprou a fazenda do sogro e, naquele momento, tentava vendê-la.

 

Não há nos autos qualquer documento que prove a compra da fazenda pelo ex–funcionário de Oliveira. Contra o argumento do juiz, a família reuniu os registros da terra e diversos testemunhos de corretores da região que afirmam desconhecer a intenção de venda da Cutia. A família de Tito contesta, ainda, as tais benfeitorias citadas pelo juiz. Como prova, juntou ao processo laudo com fotos que mostram que os currais e demais melhorias foram feitos com material reutilizado. Em busca e apreensão cumprida na fazenda em busca dos tais nelores roubados, a polícia encontrou apenas as vacas da raça Guzerá criadas desde a década de 70 pela família de Tito. Mesmo nesse cenário, o processo continuou e o juiz foi além. Autorizou a imissão da posse ao senador de outra fazenda de Tito Leite, a Congonhas, que nem era alvo da investigação.

 

As discrepâncias entre os fatos e as decisões do juiz Gabaglia, segundo a família Araújo, não param por aí. Após repassar a posse das fazendas de Tito ao peemedebista, antes mesmo do término do processo, o magistrado recebeu a denúncia pelo roubo do gado ocorrido entre 2008 e 2009. Entre os denunciados estava Tito. Aos 78 anos, o aposentado encontra-se desde 2007, ou dois anos antes do suposto roubo de gado, em uma cadeira de rodas devido a um acidente vascular cerebral, nunca possuiu nas suas terras gado nelore e não mantém nenhuma relação comercial com o genro. Outro fato interessante é o número de bois citados na denúncia. Da investigação do sumiço de 650 cabeças, o Ministério Público passou para o roubo de 15 mil bois da raça nelore em menos de um ano. Mas nos autos há dúvidas sobre um fato importante: a existência desse gado. Os depoimentos dos vaqueiros da Santa Mônica colhidos pela polícia apontam no sentido contrário. Segundo eles, o total de bois na fazenda não ultrapassava 8 mil cabeças. Também não foram anexadas aos autos as Guias de Transporte Animal das 650 reses compradas pelo senador e que teriam sido roubadas. Sem as GTAs é impossível a entrada do gado na fazenda, e se ocorreu, foi de forma ilegal.

 

Por meio de sua assessoria de imprensa, Oliveira informou que “essas pessoas citadas foram investigadas pela polícia e condenadas pela Justiça, portanto, nada, além disso, a declarar”. Mesmo sem ter encontrado nos autos as provas sobre o tal roubo das 650 ou 15 mil cabeças de gado, Carta Capital prefere não entrar no mérito do caso. Há, isso é fato, uma discrepância entre o número de bois declarado ao TSE, o informado à Agrodefesa e o citado no depoimento de 11 vaqueiros da Santa Mônica. Tal diferença é passível de investigação por parte da Agrodefesa e da Receita Federal. Não bastasse, mesmo depois de o Ministério Público e do Tribunal de Justiça de Goiás decidirem pela devolução da Fazenda Congonhas, o juiz atropelou a alçada superior e não cumpriu a decisão. A família Araújo recorreu à Corregedoria do Tribunal e também pediu ao Conselho Nacional de Justiça uma investigação contra o juiz Levine. Até agora não houve nenhuma movimentação por parte dos órgãos fiscalizadores. Enquanto isso, o magistrado é o responsável pela reintegração de posse da área do atual acampamento do Movimento Sem Terra. Por sua vez, Oliveira aguarda a decisão do juiz e disputa o segundo turno da eleição para governador do Ceará.