Alimentos tem cheiro e gosto de resistência no Encontro das Mulheres Sem Terra
Por Janelson Ferreira
Da Página do MST
“Vamos mostrar para a sociedade que aqui vamos comer alimentos saudáveis, sem veneno e produzido por nós, mulheres”. É assim que Sandra Aparecida Ferrer, que mora há 6 anos no assentamento Eli Vive, em Londrina (PR), destaca a importância da organização da alimentação do I Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra.
A região na qual Sandra vive foi responsável por levar mais de quatro mil quilos de alimentos para o Encontro, que se iniciou na noite desta quinta-feira (5) e segue até a próximas segunda (9), em Brasília (DF). Entre os itens, estão arroz, feijão, cenoura, batata, beterraba e vários outros legumes e raízes, principalmente. “Cada família, assentada ou acampada, doou um pouco, uma caixa que seja, que juntas deram toda esta quantidade”, destaca a Sem Terra.
A proposta inicial do estado era levar os alimentos nos oito ônibus que saíram de todas as regiões paranaenses. “Mas acabou que os ônibus ficaram pequenos para tanta comida e tivemos que fretar, com apoio das cooperativas do MST no estado, um caminhão”, lembra Ferrer.
As 3.500 mulheres que estão no Pavilhão do Parque da Cidade garantiram para a atividade cerca de 30 toneladas de alimentos vindo dos territórios do MST em todo país. Ao todo, são mais de 30 itens, entre frutas, verduras, legumes, temperos, e produtos industrializados pelas cooperativas do Movimento no Brasil inteiro.
“Nos deparamos com uma situação em que tínhamos a definição política de fazer este Encontro, mas não tínhamos nenhuma condição financeira”, explica Amelia Franz, dirigente nacional do MST e coordenadora da equipe de alimentação do evento. No entanto, Franz reflete que não foi tarefa tão difícil fazer com que as milhares de famílias Sem Terra contribuíssem com a alimentação do Encontro. “Nosso povo não morre de fome, se estão comendo em suas áreas, podem comer aqui também. Então, é uma questão só de organizar e juntar o que a gente já come todo dia”, explica.
Cerca de 80 pessoas estão trabalhando nas três cozinhas da atividade. Cada delegação tem duas pessoas indicadas para compor a equipe de alimentação. A proposta de ter as três cozinhas busca também atender as especificidades de cada região. “O Nordeste está trazendo o cuscuz, a carne de bode, a pimenta, a farinha de tapioca, já o Sul está cheio de pães”, destaca Franz.
A dirigente é assentada no Assentamento Contestado, em Palmeiras de Goiás (GO). Ela afirma que esta organização para garantir a alimentação do Encontro é uma prática histórica dentro do Movimento. “No começo do MST isto sempre aconteceu e, se em algum momento deixamos de lado esta cultura, estamos recuperando agora”, reflete a Sem Terra.
Com toda esta mobilização, o alimento preparado no Encontro será, quase integralmente, oriundo dos territórios da Reforma Agrária do MST espalhados por todo país. Priscila Monnerat, do Setor de Gênero do MST-PR, ficou impressionada com a riqueza de alimentos que a atividade reuniu. “É uma capacidade de organização, desde a base, que tem o seu ápice neste Encontro, fazendo com que ele também seja um momento de celebração e troca de experiências entre as mulheres”.
A militante é assentada há 9 anos no Assentamento Contestado, Lapa, e ressalta a capacidade que o Movimento tem de organizar uma atividade deste porte. “Veio muito mais alimentos do que pedimos, todas as famílias contribuíram e isto demonstra que quando precisamos, conseguimos realizar uma luta deste tamanho ou maior”, destaca.
Apesar do Encontro contar com a participação de 3.500 mulheres, o número de Sem Terras que contribuíram para a alimentação da atividade é muito maior. “Alcançamos muitas mulheres com o trabalho de base, mas nem todas puderam estar aqui e a forma que elas encontraram de participar foi contribuindo com a alimentação”, explica Tuíra Tule, do Setor de Produção do MST-MG.
A Sem Terra afirma que o processo de organização das mulheres para virem a Brasília durou mais de um ano. “Construímos uma cartilha tratando de vários temas e passamos pelas nove regiões de Minas Gerais, com oficinas, rodas de conversa, discussões nos assentamentos e acampamentos e criamos aqui o sentimento de representar todas as mulheres Sem Terra, principalmente as que não estão aqui”, reflete Tulie.
E a alimentação fez parte desta organização em Minas. “Estamos trazendo toda nossa diversidade, como diversas ervas para chá, frutas, mandioca, feijão agroecológico, quitandas”, cita a militante do Setor de Produção. O estado mineiro também é responsável pelo café das mulheres Sem Terra durante a atividade. “Trouxemos o café Guaií, que junto com o café Terra de Sabores, produzido no Espírito Santo, vai ser servido em todas as cozinhas do Encontro”, destaca.
Café que conta a história
O café Guaií, que estará presente nas xícaras e canecas das mulheres Sem Terra durante o Encontro Nacional, é produzido no Quilombo Campo Grande, acampamento com 450 famílias em Campo do Meio (MG). “É um café fruto da luta e da resistência, produzido por famílias acampadas e assentadas que tiveram a ousadia de contestar o modelo de commodities e se desafiaram a torrar, moer e empacotar um café produzido por elas”, explica Tuíra Tulie.
O Guaií é comercializado nos tipos orgânico, sustentável e tradicional. “Temos também o café feminino, produzido integralmente por mulheres”, ressalta Tulie. A lógica de produção do Guaií busca, em todas as suas etapas, contrapor o modelo hegemônico do agronegócio. Segundo a militante, “no agronegócio, as mulheres estão fora da produção do café e nós sabemos que não existe produção que não envolva as mulheres”.
Em 2018, uma liminar de despejo ameaçou expulsar as 450 famílias, que vivem na área de cerca de 4 mil hectares, a qual pertencia a uma usina de cana-de-açúcar. Atualmente, o acampamento planta em média 600 hectares. No mesmo ano, as famílias produziram 8,5 mil sacas de café e 1.100 hectares de lavouras com 150 variedades cultivadas, tudo sem uso de agrotóxicos. “Este é um café que conta história”, finaliza Tulie.
Agroecologia e feminismo andam juntos no Encontro Nacional
Um dos temas centrais do I Encontro Nacional será o debate em torno do Feminismo Camponês Popular, o qual tem como linha central a defesa da agroecologia como modelo produtivo. Fruto de um esforço do MST, da Via Campesina e de outras organizações do campo, o Encontro será fundamental para o avanço das reflexões teóricas e práticas acerca do assunto.
“O Feminismo camponês popular não está pronto, mas precisa ser construído na teoria, na prática e no cotidiano das nossas relações”, aponta Tuíra Tulie. A militante também aponta o vínculo deste debate com a agroecologia. “Agroecologia não é só produzir sem veneno, nem mesmo só de produzir, mas de olhar a terra, de se relacionar com o meio ambiente e se relacionar entre si”, explica a Sem Terra.
Priscila Monnerat analisa também como a produção realizada pelas mulheres contribui para a luta. “Há uma resistência silenciosa e cotidiana, que é a produção de alimentos realizada pelas mulheres Sem Terra em seus territórios, que sustenta a luta e o Movimento”, afirma. Monnerat ainda destaca o papel que a produção agroecológica tem na construção da autonomia delas. “As mulheres que trabalham com agroecologia, além de terem um aumento da sua renda, conquistam mais autonomia”, finaliza.
* Edição: Ednubia Ghisi