Reforma Agrária: um caminho sem volta

Werner Fuchs, pastor luterano e ex-coordenador da CPT-PR, apresenta um resgate histórico da luta pela terra no Paraná, a origem do MST no estado e as ações de solidariedade no período atual
Famílias Sem Terra doaram 10 toneladas de alimentos, em Cascavel, nesta sexta-feira
Foto Diangela Menegazzi

Por Werner Fuchs* 


Nos anos 1970 foi principalmente o adensamento do plantio de café no Norte do Paraná que obrigou centenas de milhares de meeiros a migrar para outros estados, porque não podiam mais cultivar milho, arroz e feijão nas entrelinhas. Porém no Sudoeste e Oeste houve diversos fatos históricos que geraram conflitos, resistência e conquistas no campo. Vivências e memórias dessas lutas frutificaram em outras.

  1. Agricultores retirados à força do Parque Nacional do Iguaçu foram assentados em São Miguel do Iguaçu (pelo Projeto Integrado de Colonização – PIC Ocoí) e continuavam tutelados pela burocracia do INCRA.
  2. A situação fundiária da larga faixa de fronteira era conturbada, motivo de vendas irregulares e violência. Numerosos posseiros foram massacrados ou expulsos por jagunços, e os mandantes conseguiram legalizar as áreas para si. Outras glebas extensas com posseiros foram regularizadas aos poucos pelo INCRA, que se agilizou após pressão de grandes assembleias (Missal, 1979).
  3. A estiagem prolongada de 1977-1978 revelou que inúmeros pequenos agricultores estavam descapitalizados. Vendiam o pouco que lhes restava e buscavam terras baratas, mas de documentação duvidosa, no Paraguai. Um estudo da Pastoral dos Migrantes e Comissão Pastoral da Terra sobre os brasiguaios e os colonos na Rondônia foi intitulado “Sem Terra e Sem Rumo” (Cascavel, 1980). É a primeira vez em que aparece o termo “sem terra”, ainda como adjetivo. Os “Sem Terra” como sujeitos históricos surgiram nos anos seguintes.
  4. A suposta peste suína africana levou à matança de todos os porcos tradicionais pelas autoridades sanitárias e o exército (1977), abrindo caminho para a introdução dos suínos de raça. O objetivo foi acabar com o consumo de banha e abrir caminho para o óleo de soja. Os bancos financiaram a construção de chiqueiros modernos, mas não havia garantia de preço mínimo, de modo que os suinocultores não conseguiam pagar os financiamentos. A mobilização heroica e raivosa bloqueou durante dias uma dezena de estradas no Sudoeste e quatro frigoríficos no Oeste, até que interviesse o exército. Mas conquistaram o preço mínimo devidamente reajustado (1980).
  5. A falência fraudulenta de frigoríficos da região atingiu pequenos e grandes criadores que tinham fornecido animais para abate, porque por meio de Notas Promissórias Rurais (NPRs) eles eram avalistas de sua própria produção junto aos bancos e poderiam perder as propriedades em leilões. Pela pressão popular e ameaça de bloquear a rodovia em Medianeira o movimento conquistou uma solução governamental, e no prazo de onze meses as NPRs foram abolidas, quando a tramitação legislativa levaria dez anos (1979).
  6. As oito mil famílias atingidas pela Itaipu foram inicialmente iludidas pela propaganda, mas depois se uniram no mais forte movimento social camponês do tempo da ditadura militar: “Justiça e Terra – O preço da paz” (1979-1982). Obtiveram apoios de alguns políticos e sindicalistas, mas principalmente de igrejas e outras organizações civis. Grandes acampamentos, de 15 dias em Santa Helena (1980) e de 52 dias em Foz do Iguaçu (1981), reivindicaram indenização justa e terra por terra no Paraná. Uma das conquistas foi assegurar soluções dignas de reassentamento. Posseiros e arrendatários conquistaram duas áreas menores (Toledo e Arapoti).
  7. Muitos deles sobraram. E a divulgação das inscrições para essas áreas tinha atraído um grande número de “sem terras” de fora da área atingida. Foi então que a Pastoral da Terra e alguns sindicatos decidiram criar um movimento específico pela Reforma Agrária, o MASTRO – Movimento de Agricultores Sem Terra do Oeste, logo seguido por outras regiões do Estado. O nome foi inspirado no MASTER dos tempos da Reforma Agrária do governo Brizola no Rio Grande do Sul, pois um velho participante do MASTER era posseiro em Santa Helena. Em poucos meses do ano de 1981 o Mastro formou mais de 50 grupos e levou ao INCRA o cadastro de mais de seis mil inscritos, reivindicando terra. As assembleias do MASTRO reuniam em redor de 300 líderes. Discutiam as vantagens do movimento de organização simples e ágil e do protagonismo dos próprios interessados. Decidiam sobre tarefas práticas,  como identificar áreas para ser ocupadas. Além de debates sobre reforma agrária, o aprendizado acontecia pela troca de experiências: P. ex., representantes do grupo acampado na igreja matriz de Medianeira visitaram as famílias que ocuparam a fazenda Anoni em Marmeleiro e já organizavam a produção. Com coragem e fé em Deus 35 famílias do MASTRO ocuparam a “fazenda maconha” em Cantagalo. Logo tiveram a simpatia da opinião pública, porque a polícia tinha medo de entrar na área, que pertencia a traficantes que pousavam ali a aviões com muamba do Paraguai.
  8. Não por último, houve as lutas indígenas pela terra. A partir de reuniões regulares de caciques no Sul do Brasil desde 1975 houve mobilizações que conseguiram expulsar invasores brancos de diversas reservas (p. ex., em Laranjeiras – 1977). As vitórias dos indígenas, até por serem considerados menos inteligentes, serviram de motivação para outros pequenos agricultores se unirem em torno das suas causas.

A criação do movimento nacional do MST (Cascavel, 1984) unificou os movimentos regionais do Paraná e de outros Estados. As lutas acima serviram de acúmulo organizacional (assim como as de Ronda Alta no Rio Grande do Sul). As principais vertentes do DNA do MST são as lutas dos indígenas e dos atingidos por barragens, que não aconteceram sem enormes sacrifícios naquela época de ditadura militar. 

Além do saldo organizativo de experiências e formas de luta, trouxeram consigo sabedoria de diagnóstico da conjuntura e do momento histórico, bem como a certeza de que vitórias são possíveis e de que a Reforma Agrária precisa ser tirada do papel e conquistada palmo a palmo contra os interesses dos poderosos. 

Desde o início se sabia que não seria viável uma revolução agrária como houve em áreas libertadas de Portugal e das Filipinas, nas quais os ocupantes assumiam o governo. Nem era esse o desejo. A força do MST estava em ser um movimento não-armado, pacífico, mas ousado e firme. A ocupação de áreas era uma espécie de sequestro para forçar o governo a aplicar a lei da desapropriação. Nem sempre os meios de comunicação e a opinião pública souberam ou quiseram entender essa característica dos sem terra. Era mais fácil xingá-los de sujeitos fora-da-lei. Mas não era mais possível estagnar a transformação cultural camponesa de Norte a Sul, evidenciada na solidariedade e na “mística” dos símbolos, como a cruz de Ronda Alta, bandeira, bonés, etc.

Como qualquer movimento, o MST também teve de melhorar sempre de novo a organização interna, exercitar a “volta às bases”, para ter pernas fortes e não apenas cabeça grande com presença política. Pois não haverá reforma agrária verdadeira se ela não estiver sob o controle de seus próprios beneficiários.

O lema “Ocupar, resistir e produzir” foi mobilizador, mas em breve se deparou com uma complexidade maior da questão agrária. O agronegócio era, e continua, amigo ou parente de donos dos meios de comunicação, de industriais e políticos. Era preciso encontrar formas alternativas e respaldo jurídico para dar a visibilidade correta às lutas. E a comercialização dos produtos da terra evidenciava dificuldades de escoamento e inserção no mercado sem abandonar a proposta de vendas alternativas e solidárias. Um grande esforço de organização teve que ser investido na criação de cooperativas, muitas delas bem-sucedidas e equipadas com agroindústrias.

A questão ambiental não fazia parte do foco inicial do MST, embora haja belos exemplos de preservação e recuperação de matas nativas. Nos anos 1970 já havia propostas de “tecnologias alternativas” para a agricultura familiar, reunidas e divulgadas por ONGs como a FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, ASSESOAR (Associação de Estudos Orientação e Assistência Rural), etc.

Nos anos 1990 surgiu entre agricultores familiares o movimento da agroecologia. Esse termo não se refere apenas à técnica orgânica, de plantio sem agrotóxicos. Inclui um relacionamento harmonioso com a natureza e a busca de transformações de relações sociais. Entre as conquistas desse movimento estão a possibilidade legal da certificação orgânica participativa em grupo e em rede (Sistema Participativo de Garantia – SPGs) e os planos nacionais de agroecologia (PLANAPO). No MST houve assentamentos que desde o início tentaram produzir sem veneno, mas depois recuaram, sobretudo por falta de conhecimentos e tecnologias apropriadas. Outros conseguiram persistir e apresentam resultados muito positivos. Mas foi somente em 2014 que o congresso do MST definiu a agroecologia como prioridade nacional, e aos poucos se impõe a certificação orgânica como caminho de rastreabilidade e confiabilidade junto a parceiros urbanos (não “consumidores”).

A crise da pandemia é uma oportunidade, bem aproveitada, para demonstrar solidariedade com as populações mais vulneráveis. Contudo, junto com essas ações, é preciso conscientizar não apenas sobre os desmandos governamentais, mas também sobre as causas sistêmicas e ambientais. O surgimento de epidemias cada vez mais agressivas (SARS, Ebola, Covid-19) está diretamente ligado ao avanço predatório do capitalismo sobre o planeta, por meio de desmatamento, mineração, monoculturas e emissões de gases causadores da emergência climática.

Uma proposta de reforma agrária popular e ampla não pode deixar de lado a luta pela recuperação do planeta febril, envenenado e esgotado.

Questões em aberto:

A motivação de luta continua a mesma?

Como o MST percebe hoje a complexidade econômica, política e ambiental?

Como a militância se engaja na elaboração de soluções eficazes?

Que exemplos de aliança campo-cidade podem ser replicados sem apoio governamental e da grande mídia?

Que espaços de diálogo devem ser priorizados, para romper o círculo vicioso de “convencer quem já está convencido” e “falar para nós mesmos”?

*Werner Fuchs é pastor luterano, tradutor, ex-coordenador da CPT-PR, assessor do CEBI e de movimentos sociais e agroecológicos, primeiro presidente do CONSEA-PR e membro do Consea nacional de 2004 a 2016.