ARTIGO | Terra e trabalho, os nutrientes da solidariedade
Por Daniele Regina Pontes* e José Ricardo Vargas de Faria**
Da Página do MST
Na manhã deste sábado (13), as comunidades urbanas do Sabará e Portelinha em Curitiba receberam, em uma ação conjunta com o Sindicato dos Petroleiros, a doação de 15 toneladas de alimentos produzidos por Trabalhadores Rurais Sem Terra, acampados há quase vinte anos na comunidade Maila Sabrina, no extremo oeste do município de Ortigueira e no sul de Faxinal, no Paraná.
Poderia parecer mais uma ação de solidariedade que acontece durante a crise de saúde pública, com consequências econômicas, da pandemia da COVID-19, mas o gesto de entrega de alimentos expressa os traços fortes e recorrentes da generosidade ativa entre os movimentos sociais que lutam pela terra. Os direitos à moradia, ao trabalho, à produção diversificada, à saúde, ao alimento e à educação têm em comum esse aspecto territorial: o direito coletivo ao lugar para o Bem Viver.
A partir desse registro inicial se diferenciam a solidariedade entre os movimentos sociais das ações de “Solidariedade S.A.”. No discurso empresarial, a solidariedade é reduzida à “contrapartida”, em outras palavras, ao retorno para a sociedade de uma minguada parcela dos ganhos que resultam da exploração do trabalho e da natureza. Essa suposta compensação, que tem na sua origem o oposto da solidariedade, não pode se equiparar ao vínculo efetivamente solidário que une e identifica aqueles que têm em comum a luta contra essa exploração.
Para ficar apenas em um registro mais recente, vale lembrar que essa é a segunda doação de alimentos produzidos pelos Trabalhadores Rurais do Acampamento Maila Sabrina. A primeira, em abril, foi destinada às comunidades Nova Primavera, Dona Cida, Tiradentes e 29 de Março no CIC, em Curitiba. Essa primeira doação se destinou a essas comunidades porque os vínculos solidários já estavam estabelecidos antes da Crise da COVID-19.
Em dezembro de 2018, quando a Comunidade 29 de Março foi vítima de um incêndio criminoso, o MST, junto com militantes, organizações sociais, universidades e outras instituições, foi para a área ajudar a reconstruir as casas e a comunidade. A ajuda foi fundamental porque, além da busca pelo que havia sobrado, por todo o companheirismo nas perdas e na força da reconstrução, qualificou as estruturas e instalações sanitárias, empreendimento fundamental neste momento de pandemia.
Esses casos mais atuais, que certamente não são nem únicos e nem os primeiros, evidenciam a diferença fundamental. O que se dispõe para o outro é o trabalho, não na sua forma de valor de troca, mas na forma de mãos, braços, cabeça e coração que produzem o alimento, constroem casas, criam a cidade e o campo. Essa produção carrega a concretude da vida, a possibilidade de realização humana e a potência da transformação de uma sociedade.
A Comunidade de trabalhadores do Maila Sabrina prova diariamente que a terra é para quem nela mora, trabalha, vive. A história do Maila constrói a ruptura com a lógica da Colônia, com as pretensões individualistas do latifúndio-sesmeiro que não tem qualquer relação com toda a potencialidade da vida que está na terra e no seu entorno, que não reconhece naquele lugar qualquer identidade, coletividade, proximidade, pertença. Na ideia latifundiária, o que se quer é arrancar da terra tudo o que for possível e que nela se faça brotar dinheiro e não riqueza. As famílias do Maila Sabrina, ao contrário do latifúndio, entenderam aquela terra. São filhos dela, compreendem a sua riqueza, entregam para a terra o que a terra entrega para eles.
Além da produção diversificada de alimentos, como grãos, arroz, milho, feijão e, ainda, frutas, hortaliças e mel, os trabalhadores do Maila Sabrina restituíram na terra em que vivem parte considerável de áreas verdes que, quando ali chegaram, estavam em estágio avançado de degradação. Ampliaram em aproximadamente trezentos e cinquenta hectares as áreas de floresta. As famílias melhoraram a qualidade ambiental de todo o restante da área com a escolha por uma produção mais respeitosa e condizente com as características do solo, do relevo e da fauna e flora da região. Esse fato trouxe repercussões para a qualidade da água, com redução significativa de processos erosivos e aumentaram os nutrientes do solo, produzindo alimentos mais ricos e saudáveis.
A organização das famílias ainda permitiu que os moradores da região, além daqueles da própria comunidade, tivessem acesso mais próximo a serviços como escola, atendimento em posto de saúde e áreas de lazer e de esportes. O Maila demonstrou que, com cuidado e trabalho, a terra é mais generosa, responde e oferece mais e melhor. Hoje ela é muito mais produtiva, muito mais verde, e provê muito mais gente do que há duas décadas atrás.
Com a doação de alimentos, os trabalhadores do campo encontram os trabalhadores da cidade. Os trabalhadores que constroem a cidade que lhes é negada pela cerca formal que a titularidade precária e duvidosa impõe sob a cumplicidade de tantos poderes. Sabará, Portelinha e Comunidades do CIC também representam esse Brasil possessório que se perfaz na luta cotidiana por morar, trabalhar e viver nas cidades.
Maila Sabrina, Portelinha, Sabará, Dona Cida, Tiradentes, 29 de Março, Contestado, Padre Roque e tantas outras comunidades entendem e mostram generosamente que a terra é mais. Que a luta pela terra se espraia por todas as ações que emanam da construção de uma sociedade que reconheça a força do solo, da moradia e do trabalho como substrato de uma existência coletiva que vê no outro a potência da vida.
No quadro dramático da pandemia da COVID-19, essa doação lembra que somos capazes de exercitar a nossa humanidade, o que já é, por si, bastante. Além disso, nos permite desmitificar o “sucesso” de uma sociedade individualista que só faz produzir mais risco e que é contra a vida. Finalmente, nos reclama contestar uma sociedade de hangs, justus, durskis e tantos outros cujas práticas e ideias podem ser resumidas no “e daí!”.
É por isso que o mel produzido no Maila Sabrina tem um sabor muito especial. É o sabor do trabalhador que cuida do outro trabalhador, que zela pela terra, pela água, pela abelha. O alimento que recebem as comunidades do Sabará e da Portelinha liga indelevelmente o campo e a cidade por caminhos que atribuem outro sentido às relações de produção e à vida social. Alimentam a compreensão sobre a construção socioambiental coletiva em um oceano de pretensões individualistas que mesmo diante de uma pandemia, impactam e alarmam qualquer fagulha de lucidez. Doa e presenteia a todos, na condição de sociedade, com a possibilidade de repensarmos a nossa capacidade de produzir uma riqueza não mensurada em valor, mas nos vínculos solidários, na produção das intersubjetividades e nas coletividades capazes de transformações sobre o olhar para a natureza, para o trabalho, para os temperos da vida.
*Professora do Setor de Ciências da Terra, do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e pesquisadora do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas da UFPR.
** Professor do Setor de Tecnologia, dos Programas de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Políticas Públicas e pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas da UFPR.
***Editado por Luciana G. Console