Crônica | Cozinha Solidária: partilha de alimentos e vivências
Por Bruno Branco*
Da Página do MST
As atividades se iniciam nas terças-feiras. No período da tarde, algumas pessoas se reúnem para adiantar os processos, garantindo que, no dia seguinte, as refeições sejam entregues no horário do almoço. Descobrir os melhores métodos para entregar 700 marmitas foi um aprendizado coletivo, partindo das contribuições de todos que participaram desse espaço de solidariedade.
Na quarta-feira, a partir das 7h30, os primeiros integrantes vão chegando para a cozinha solidária. Após passar o álcool em gel, o café é o primeiro processo e carrega o encantamento dos espaços de sociabilização, da partilha. Pão e geleia caseiros, tortas, bolo de cenoura, de chocolate e o meu preferido: de paçoca. Toda semana, de forma espontânea, alguém se disponibiliza a repartir um alimento feito com muito carinho!
Na sequência, as equipes vão se formando. Enquanto Néia e Claudio assumem a produção daquele arroz e feijão, respeitando o distanciamento necessário para garantir a segurança de todos, mesas de trabalhos vão se desenvolvendo. Em um canto, uns descascam batata, outros cortam repolho e picam o brócolis, o Marquinhos acende o fogão a lenha e a Daia comanda as formas para cozinhar os tubérculos.
Ocasionalmente, algumas surpresas acontecem, como o aparecimento, dentre tantas variedades de abóbora, de uma tão resistente que as facas e descascadores não conseguiram superar. Os procedimentos para a produção de doce de abóbora seguiam normalmente e uma, em específico, permaneceu isolada no canto. Não por não ser atrativa, justamente o contrário, com uma cor tão forte e um formato que proporcionava certa onipotência, a vontade era apenas admirar e, de fato, deveríamos ter focado na sua utilização como item de enfeite. Após tentativas frustradas, a apelação se destinou ao machado, único capaz de transpassá-la.
Os cardápios, apesar de serem previamente delimitados por dependerem da disposição de alimentos que, na maioria das vezes, procedem das áreas de Reforma Agrária, são discutidos coletivamente e sempre há abertura para sugestões e mudanças. Apesar de ser unanimidade entre os integrantes do grupo reconhecerem as orientações da Adri no encaminhamento dos trabalhos, sua organicidade, tudo se encaminha de forma horizontal, e a todos é ressaltado a importância de sua voz. A participação não se limita a processos de cozinha, mas a um fortalecimento dos indivíduos em relação a suas autonomias e identidades.
Este primeiro ciclo, rodeado de prosas e companheirismo, se encerra quando o último item que compõe a marmita fica pronto. As mesas se juntam, formando uma grande estrutura. Um voluntário dispõe as marmitas em toda essa extensão. A colcha de feijão é a primeira a passar, seguida da xícara de arroz. Os legumes são os próximos da vez e, para encerrar, a carne. O resultado é uma paleta de cores digna de fotografia, uma variedade de alimentos que refletem a riqueza do campo compartilhado. Em seguida, outros voluntários vão fechando as marmitas e destinando às caixas que carregarão os carros para a entrega.
As refeições são distribuídas para moradores da periferia e em praças de Curitiba, neste caso, para aqueles em situação de rua. Ao se aproximar o horário do almoço, uma fila começa a se formar, organizada pelas próprias pessoas que receberão o alimento. Além das marmitas, há um processo de higienização de todos os envolvidos e a distribuição de máscaras e, às vezes, frutas, sobremesas e mel com açafrão também, um saber tradicional para aumentar a imunidade. A gratidão permeia os dois lados dessa relação e a felicidade de quem dá as mãos para retirar a marmita justifica e fornece forças para a continuidade dessa união entre o campo e a cidade.
Além de objetivar suprir uma demanda básica, que não deveria ser um produto mas um direito de todos, alimentação saudável, a ação produz as refeições a partir de produtos, em sua maioria, oriundos de assentamentos e acampamentos do Paraná, e o mais importante, contemplando produtos agroecológicos. Respeitando o meio ambiente e sem veneno! E vale ressaltar que, considerando um período no qual as desigualdades se intensificam, a solidariedade vem de quem produz e é responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos nesse país. Por isso, a importância do fortalecimento da agricultura familiar e da saúde da população através de produção agroecológica.
Com a meta concluída e a satisfação de estar contribuindo para amenizar a situação de vulnerabilidade em que muitos companheiros (as) se encontram nesse período, é momento de pensar no nosso grupo. As mesas retornam a seu local de origem e começam os preparativos para o almoço. Como começamos todos juntos, assim também se dá o encerramento. Mesmo com o almoço pronto, esperamos os companheiros (as) que foram realizar as entregas para almoçarmos ao mesmo tempo. Alguns dentro do refeitório, outros nas mesas externas, evitando aglomerações. E, em conformidade com os saberes compartilhados pelo Roberto, solidariedade não é a distribuição daquilo que sobra, mas o compartilhamento do que temos, a nossa refeição é a mesma que foi destinada para a doação.
E nesse momento há uma outra oportunidade de compartilhamento, o de vivências e saberes. Histórias, conhecimentos tradicionais, sabedoria popular. Borra de café auxilia em queimaduras. A casca do milho protege a cobertura do solo. Existem formas de pesca que não utilizam equipamentos. Tomate seco exige tantos processos que é necessário grande dedicação em sua produção. Vocês já ouviram a música “Vamos Precisar de Todo Mundo” do Zé Pinto? Mas alguns mistérios ainda precisam ser desvendados, ou não. Apesar de, discretamente e em segredo, observamos o Marquinhos preparar o suco de cada dia, a reprodução em casa segue não conquistando o mesmo sabor e textura.
Após todos estarem devidamente alimentandos e refletindo sobre o privilégio em estar consumindo comida camponesa, sem veneno, fruto de muita luta, é chegada a hora de organizar o espaço novamente. E, nesse momento, ninguém fica parado. Caixa de som tocando aquele forró, varrer, limpar, lavar, passar pano, retirar o lixo, guardar as coisas. E nesse clima de harmonia, afeto e solidariedade se encerra mais um dia de trabalhos. MST, essa luta é pra valer! Até a próxima semana, camaradas!
*Integrante do coletivo que produz as Marmitas da Terra, todas as quartas-feiras, em Curitiba.
**Editado por Fernanda Alcântara