Artigo | Solidariedade e Soberania Alimentar na Pandemia
Por Luciano Lima*
Da Página do MST
É notório o efeito devastador da pandemia de COVID-19 no Brasil, que apresenta uma rápida progressão de contágio, com uma taxa de mortalidade que já ultrapassou os 100 mil mortos e vem levando ao colapso do sistema de saúde. Considerada a maior crise sanitária da atualidade, como consequência tem gerado muitos impactos econômicos, pois a Covid-19 encontrou o país em situação econômica preocupante. Em lenta recuperação da última recessão, a economia apresenta crescimento baixo (média de 1% nos últimos três anos), elevado nível de desemprego e informalidade, famílias endividadas, contas públicas fragilizadas, dentre outros problemas (Carvalho, “et al”. 2020).
A estimativa de infectados e mortos concorre diretamente com o impacto sobre os sistemas de saúde, com a exposição de populações e grupos vulneráveis, a sustentação econômica do sistema financeiro e da população, a saúde mental das pessoas em tempos de confinamento e temor pelo risco de adoecimento e morte, acesso a bens essenciais como alimentação, medicamentos, transporte, entre outros (Fiocruz, 2020). Cabe destacar os relatórios da FAO e da OXFAM, aonde ambas as organizações preveem um aumento significativo da fome no mundo, e principalmente em países em desenvolvimento como o caso do Brasil.
Esta situação de calamidade convida a sociedade à uma reflexão sobre os paradigmas aos quais se constroem as relações sociais, econômicas, e da relação do ser humano com a natureza, pois especula-se que a própria pandemia é uma resultado das ações humanas na exploração de recursos naturais e ocupação dos ecossistemas. Portanto, a realidade impõe uma série de desafios para construção de processos que superem esta crise, no âmbito das políticas públicas e na expressão de resistência popular, que em essência se manifestam na luta de classes, mas que também resultam em experiências imediatas, de solidariedade de classe, que podem ser o ponto de partida na construção de uma saída para a crise num cenário pós-pandemia.
O presente trabalho tem por escopo analisar esta experiência de solidariedade protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região de Ribeirão Preto, que iniciou uma sofisticada relação entre campo e cidade para um processo continuo de solidariedade e garantia da soberania alimentar, bem como seus aprimoramentos, em detrimento das mudanças perpetradas pela pandemia na realidade, dialogando com a contribuição de diversas organizações e atores regionais.
Com isto, faz-se importante destacar que desde o inicio da pandemia o MST vem promovendo uma campanha nacional de doação de alimentos, ultrapassando 2.300 toneladas de alimentos doados às periferias em todo Brasil, constituindo a proposta denominada “Periferia Viva”. A ação consolida parceria entre campo e cidade, na construção de uma solidariedade “de classe”entre assentamentos produtivos e comunidade periféricas e de ocupação e são as que mais sofrem os impactos econômicos da pandemia.
Como parte desta campanha, o MST da Região de Ribeirão Preto, ao somar-se a esta parceria pela sobrevivência da classe trabalhadora, vem realizando diversas ações de solidariedade junto às comunidades urbanas, principalmente no município de Ribeirão Preto, garantindo a doação de alimentos de territórios de assentamentos e acampamentos da região, todos oriundos de sistemas produtivos agroecológicos. As doações são ações diretas de diálogo entre o povo do campo e da cidade.
“Toda vez que uma doação da Reforma Agrária chega na mesa de um brasileiro, um alimento contra a fome e a desigualdade social pelas quais o Brasil sempre passou, mas que se intensificou agora nesse período de pandemia”, explica Kelli Mafort, da direção nacional do MST. Nessa lógica, as ações realizadas na região atingiram este fim, mobilizando diversos movimentos e organizações da sociedade civil, consolidando uma correlação de forças progressistas. Cabe citar atores como o BANQUETAÇO/RP, CASA DO ATIVISTA, REAÇÃO, EMANCIPA, JUNTAS, MOVIMENTO SOCIAL DE EDUCAÇÃO POPULAR, CEDES, UMM e PCB, que além de auxiliar na distribuição dos alimentos, também promoveram a distribuição de marmitas nas comunidades de ocupação urbana no município, um trabalho conjunto que resultou na doação de 8 toneladas entre o mês de Março até Maio.
No entanto, existem limites econômicos aos camponeses para a continuidade de doações, pois como trabalhadores rurais, também dependem da produção agrícola para geração de renda e sustento da família, sendo também impactados pela recente crise que prejudicou diversos meios de comercialização.
Este é o principal ponto que este trabalho provoca à reflexão, ao tentar explorar as alternativas para superar a crise, já que se apresenta uma problemática de como manter um processo de solidariedade, unindo a garantia de sobrevivência de comunidades urbanas com a sobrevivência da agricultura camponesa dos assentamentos. Para resolver esta problemática de superar as dificuldades enfrentadas pela agricultura camponesa e garantir comida na mesa do trabalhador urbano, foram debatidas propostas pelo coletivo regional denominado “Rede Agroflorestal”, composto por organizações, cooperativas e associações agroflorestais de assentamentos e acampamentos, bem como outros produtores da região.
Assim, foi construída uma campanha solidária em maio, aonde a sociedade em geral, por meio de doações que garantissem a compra de alimentos dos camponeses agroflorestais para serem doados às comunidades,criando uma relação de sobrevivência mútua entre campo e cidade, em um processo interdependente que equalizasse as dificuldades produtivas e, ao tempo, que pudessem ser mantidas as doações de alimentos. Como resultado da arrecadação por meio da campanha,foi possível garantir desde o inicio de maio até junho a compra por preço justo de cerca de 6 toneladas de alimentos agroflorestais, produzidos pelos acampamentos e assentamentos do MST, além de produtores agroflorestais da região.
Destaca-se que a campanha é contínua e adjacente à crise, e vem arrecadando recursos o suficiente à compra semanal de 800à 1.000 kg de produtos. É importante ressaltar que até o final de junho, somando todas as ações de solidariedade desde o inicio da pandemia, foi possível à doação de mais de 15 toneladas de alimentos agroecológicos à periferia de Ribeirão Preto, resultando em uma cooperação entre MST e União dos Movimentos de Moradia –UMM, que em conjunto com lideranças comunitárias, organizaram os moradores para o recebimento seguro dos alimentos nas comunidades.
A Comunidade Porto Seguro, Nazaré Paulista, Comunidade Locomotiva, Comunidade Itaú, Comunidade da Família, Comunidade dos Trabalhadores, Comunidade Sete Curvas, Comunidade do Bem, Comunidade da Paz, Comunidade Vila União, Comunidade Vila Nova, dentre outras, estão sendo atendidas pela campanha. Além da produção agroecológica ser oriunda de assentamentos, é bastante simbólico o trabalho realizado pela Brigada de Produção Ana Primavesi e Luis Ferreira, do acampamento Paulo Botelho, pois tratam-se de famílias acampadas, Sem Terra, vivendo debaixo de barracos, que se juntaram em uma área coletiva do assentamento Mario Lago para desenvolver o trabalho coletivo de produção agroflorestal.
Muitas delas vieram das mesmas comunidades que estão doando sua produção. Esse aspecto simbólico enseja a discussão em torno da reforma agrária popular, defendida pelo MST, que apresenta um plano emergencial para superação da crise causada pela pandemia, elencando além do acesso à terra para produção de comida, a garantia de políticas públicas que fortalecem processos de economia solidária e produção de alimentos saudáveis.
O Plano Emergencial da Reforma Agrária proposto pelo MST dialoga diretamente com a realidade em que vivemos, propondo soluções para superação da crise, pois permeia de forma dialética com todas as fragilidades existentes na sociedade, como a falta de trabalho digno e comida. Além disso, propõe ações voltadas à agroecologia e a proteção do meio ambiente, aspectos que respondem a questão da relação do ser humano com a natureza, ou seja, existe um conjunto de propostas factíveis baseadas nas experiências do MST ao longo dos anos, mas que depende das relações políticas para implementação de políticas públicas.
O movimento é composto de um conjunto de ações, e as propostas expressam a noção empírica de experiências nos diversos territórios que resistem mesmo sem a implementação de políticas públicas, e a experiência que se realiza desde o início da pandemia, na região de Ribeirão Preto, é parte deste conjunto de ações que não só expressam potenciais soluções, como também fortalecem os processos de soberania alimentar.
A campanha de arrecadação de recursos garantiu não só a renda de assentados e acampados, ao mesmo tempo que garantiu o mínimo de alimento às comunidades urbanas, e também deu inicio a um processo de solidariedade que tende a se estabelecer no pós-pandemia, baseado no consumo de cestas agroflorestais solidárias. Este processo, denominado de Grupo de Consumo Agroecológico Pau Brasil, organizado pela Associação Ecológica Pau Brasil, foi criado em conjunto com a proposta de arrecadação de recursos, pois une o consumo da produção agroflorestal com a doação de alimentos.
Ao adquirir uma cesta agroecológica solidária, o consumidor se torna parte das doações realizadas nas comunidades, pois o investimento feito na aquisição de sua cesta para consumo é revertido para compra de alimentos que serão doados à periferia. A construção da soberania alimentar tem por base iniciativas sociais referenciadas na agroecologia, na formação de grupos e cooperativas de consumo (Valério, 2020), que garantem, ao mesmo tempo, a renda aos assentamentos e a comida na mesa do trabalhador, além do consumo de alimentos saudáveis à consumidores, que se tronam co-produtores e sujeitos ativos de uma proposta de soberania alimentar, que se traduz na realidade de seus resultados, sendo o grande desafio multiplicar estas ações.
Neste aspecto, como um processo de resistência popular, a ação já conseguiu gerar diversos resultados, pois, além de realizar ações sociais, também garante o consumo de alimentos agroecológicos (Tribuna.2020). Logo, é possível concluir que existem ações que podem propor soluções aos desafios criados pelo impacto econômico da pandemia, dentro de um processo de resistência popular, agregando os diversos setores da sociedade para a disputa das políticas públicas necessárias à superação destes desafios. Partindo do território de estudo com a experiência do MST e da Rede Agroflorestal, em articulação com a sociedade civil e os movimentos de moradia, podemos traçar uma análise que pode refletir na construção destas relações em outros locais, ou como base de desenvolvimentos de políticas públicas relacionadas à soberania alimentar.
*Luciano Lima é Mestrando em geografia – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais -IPPRI – Câmpus de São Paulo, da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”-UNESP
**Editado por Fernanda Alcântara