Sem conexão, sem aula: volta às aulas com ensino remoto preocupa estudantes do campo
Por Caroline Oliveira
Do Brasil de Fato
Durante a suspensão das atividades acadêmicas nas universidades, em decorrência da pandemia de covid-19, o acompanhamento das aulas remotas tornou-se inviável para 23,3% dos estudantes de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), da Universidade Federal de Viçosa (UFV), que não têm disponibilidade de conexão à internet. O número é resultado de um relatório produzido, entre maio e junho, pelas professoras Sara Ferreira de Almeida e Élida Lopes Miranda, do Departamento de Educação da UFV.
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Segundo Almeida, os estudantes que cursam LEdoC historicamente têm dificuldade para acompanhar o ensino superior mesmo presencialmente, configurando uma taxa de evasão significativa. Remotamente, a situação se agrava. Mesmo para responder o questionário do relatório elaborado pelas docentes, apenas 26,20% do total de matriculados no curso participaram. Quando há conexão de internet é de baixa qualidade, por tempo limitado ou nem mesmo há um computador para acessá-la.
No primeiro semestre de 2020, as universidades federais suspenderam as aulas e não deram continuidade no formato remoto. Na UFV, a partir do segundo semestre, no entanto, as aulas voltam a ser ministradas, remotamente, no dia 31 de agosto. A matrícula será opcional para os estudantes da LEdoC, justamente por suas condições — entre os alunos de outros cursos da instituição, apenas 4,3% não tem acesso a esta ferramenta, ou seja, cinco vezes menos em relação aos estudantes do primeiro curso. Ainda assim, o retorno tem angustiado os estudantes de LEdoC.
Essa é a realidade, por exemplo, da estudante de LEdoC da UFV Claudineia Aparecida Ferreira, que mora em Ribeirão Vermelho, região rural de São Geraldo, a 300 quilômetros de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, onde a internet é precária: costuma funcionar somente até às 7h e depois fica inviável.
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De acordo com Ferreira, mesmo com o retorno opcional, “a gente vai aumentar cada vez mais o nível de desigualdade. Quem tem acesso à internet vai superar quem não tem. A gente vai ter novamente um hierarquia de estudantes dentro da universidade federal, eu sou totalmente contra”. Consequentemente, continua Ferreira, não se entende “a realidade dos estudantes, contribui para evasão, inclusive para que os estudantes fiquem pouco entusiasmados, porque não tem apoio”.
A angústia é compartilhada por Jezebel Martins, de Caparaó, no Espírito Santo, que também cursa LEdoC na UFV. A estudante ainda se diz privilegiada por conseguir se mudar para a capital, Viçosa, para ter acesso à internet, mas sabe que essa não é a realidade de seus colegas. “A maior parte dos alunos está com muita dificuldade de acessar. A gente tem realidade de pessoas que sobem no alto do morro, andam até um quilômetro para encontrar um lugar que tem sinal”, afirma Martins.
Segundo a estudante, muitos alunos procuram o centro acadêmico — do qual Martins é coordenadora geral — para perguntar se ficarão atrasados no curso ou perderão a bolsa de permanência estudantil caso optem por não realizar a matrícula durante o período de pandemia. “Muitos são de territórios quilombolas e indígenas, vários acessam permanência estudantil. E aí muitos estudantes ficam com medo de perder se não fizer matrícula, porque esse período será optativo. Isso foi até uma conquista, porque se fosse obrigatório a gente ia ter uma evasão e tanta, pensando aí no contexto de desigualdade que a gente vive.”
Segundo a docente da UFV Sara Ferreira de Almeida, com o relatório foi possível observar a diferença entre os alunos da LEdoC e outros em relação às condições socioeconômicas e de acesso à internet. “Mais da metade não tem um lugar adequado para estudar em casa. Mais da metade tem na situação econômica uma questão que dificulta o estudo. A renda já era baixa e piorou na pandemia, e isso dificultou com que a pessoa desse continuidade aos estudos, porque teve que começar a trabalhar”, explica a professora.
Realidade se repete
Essa realidade não é uma condição da UFV. Ao contrário, ela se repete em outras universidades que oferecem a Licenciatura em Educação do Campo. Na Universidade de Brasília (UnB), a estudante de LEdoC Josinete da Silva Dias dos Santos, da comunidade kalunga Vão de Almas, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, não consegue sequer acessar com frequência as mensagens que chegam nas redes sociais, como o WhatsApp. “Eu tenho dificuldade para poder acompanhar as conversas do grupo dos estudantes, porque são muitas mensagens”, afirma Santos, que recebe as mensagens apenas quando se desloca até uma das duas escolas do município mais próximo de sua comunidade.
“Para mim, do meu ponto de vista não seria a melhor opção aula a distância, porque para gente se deslocar da comunidade para vir para cidade… A internet aqui também não é da melhor qualidade, é péssima até para gente carregar videos, assistir alguma coisa não funciona”, afirma a estudante.
A situação é a mesma de Mirele Giovana, que também cursa LEdoC na UnB. Onde a estudante mora, no Assentamento Vereda II, a 60 quilômetros do município de Padre Bernardo, em Goiás, não tem acesso à internet.
“Com essa pandemia ficou muito difícil o meu acesso à internet e aos conteúdos da universidade, porque onde eu moro a gente não tem ônibus para ficar indo para a cidade, a gente não tem água. A gente tem várias dificuldades e uma das dificuldades é o acesso à internet porque não tem uma torre que dá acesso”, lamenta Giovana.
Somente no dia 17 de agosto, cinco meses após o início da pandemia, o Ministério da Educação (MEC) informou que irá disponibilizar bônus de dados móveis para alunos em situação de vulnerabilidade social de institutos e universidades federais. Além do atraso, muitos alunos sequer tem acesso a esse tipo de informação, alerta Giovana.
Conforme Kamilla Torres, integrante do Diretório Central dos Estudantes da UnB, a universidade disponibilizou um edital aos estudantes para a compra de computador e internet. No entanto, “o que acontece é que várias vezes abre o edital por exemplo e aí o tempo do edital de recurso não contempla os estudantes do campo”, justamente porque esse grupo demora mais para ter acesso às informações, como apontou Mirele Giovana. Assim como na UFV, a UnB retomou as aulas de maneira remota, desde o dia 17 de agosto, mas com a matrícula optativa.
Ainda de acordo com Torres, a realidade em outras universidades é ainda pior. Teve instituição, por exemplo, que ofereceu auxílio R$ 60 para internet: “É claro que a evasão vai ser forte.”
O que é a Licenciatura em Educação do Campo?
A LEdoC, existente no Brasil desde 2006, tem como objetivo formar professores de ciências humanas e da natureza para atuarem nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, sempre tendo em vista a valorização da cultura das populações do campo. Para receber os estudantes interessados no curso, cada universidade tem a liberdade de estabelecer os critérios. Na UFV, por exemplo, a entrada se dá pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e um edital específico. Na UnB, há um vestibular próprio para os candidatos à LEdoC.
No curso, é utilizada a metodologia Pedagogia da Alternância, na qual o semestre é dividido entre tempo universidade e tempo comunidade. O aluno tem um período de aulas nas instituições de ensino e depois um outro período de desenvolvimento prático da teoria em suas comunidades.
Qual é a importância da LEdoC?
Para Mônica Molina, integrante do Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), o objetivo é formar educadores do próprio campo para atuar nas escolas e “contribuir com a formação dos sujeitos que vivem nesse território para entenderem as contradições, a complexidade do que acontece hoje no campo brasileiro”, agronegócio e agroecologia.
“Tem uma função que ajudar a pensar o projeto camponês, as condições, o acesso ao conhecimento científico que contribuam para que os sujeitos possam permanecer enquanto tais, enquanto camponeses. É pensar como ligar a escola com a vida, como fazer com que os conteúdos científicos sejam uma ferramenta para a compreensão crítica e intervenção da realidade na sua transformação”, afirma Molina.
Um outro ponto da importância da LEdoC é a “ação territorial dupla”. Segundo José Antônio Gomes Júnior, professor da licenciatura da UFV, a presença de “corpos e pensamentos” que historicamente não frequentam a universidade modifica o espaço e possibilita um diálogo com as várias matrizes de saberes populares. Isso, por sua vez também muda o lugar de origem desses estudantes da LEdoC.
“Foi uma mudança na universidade, no território de origem de cada estudante e em terceiro lugar uma mudança no sentido um tensionamento epistemológico na universidade, porque são seres que portam outras narrativas, linguagens, percepções estéticas e especulam a filosofia de um outro lugar de fala”, defende o professor.
Edição: Lucas Weber/ Brasil de Fato