A privatização da água faz mal ao Brasil
Por Dalila Calisto*
Da Página do MST
A água está no centro da disputa mundial do capitalismo, e o seu território de atuação é o Brasil, onde existem as principais reservas potáveis de água do mundo, estruturas de produção e serviços públicos sendo operados de maneira estatal. Na crise econômica, o capital prioriza as regiões que reúnem as melhores condições para a manutenção da sua reprodução e do seu padrão de acumulação. Locais que possibilitem a conquista de novos mercados e a intensificação da exploração de mercados antigos.
Em nosso país, temos mais de 13% de todas as reservas mundiais de água potável que estão concentradas em grandes rios e aquíferos, que são os maiores do mundo. Temos mais de 27 aquíferos, que somam mais de 112 bilhões de metros cúbicos de água. Além disso, temos o setor de saneamento totalmente público, correspondendo a mais de 20 de companhias estaduais, 57 milhões de ligações residenciais, 630 mil km de redes de água instaladas, 300 mil km de redes de esgotamento, 220 mil trabalhadores e um movimento de R$110 bilhões por ano. Temos a Eletrobrás, maior empresa de energia da América Latina, que possui a outorga de 47 lagos hidrelétricos.
Todavia, a tendência do capital é a exploração mundial e a mercantilização de tudo, dessa forma, tem ocorrido no Brasil os principais movimentos do capital para transformar a água em propriedade privada.
O capital depende da ação do estado para definir, codificar e dar forma legal aos seus interesses privados. Assim, temos visto diversas iniciativas de projetos de lei e medidas provisórias garantindo a máxima liberdade e direitos de propriedade ao capital sobre a água no Congresso Nacional, sob o respaldo do Estado Brasileiro que, através do Presidente da República e da maioria dos parlamentares, tem atuado para criar todas as condições legais e institucionais alargando os negócios da classe dominante.
A recente lei 14.026/20 (novo marco regulatório do saneamento) e o PL 495/2017 (mercado de águas) são a via concreta pelo qual o capital se apropriará do setor de saneamento e das reservas naturais de água em nosso país.
As empresas querem o direito de posse exclusiva sobre os rios e bacias hidrográficas para estabelecer novos negócios. Após a recente aprovação do marco legal do saneamento, o PL 495/17, de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o projeto poderá ser colocado na agenda política em breve. A exemplo do que aconteceu no Chile, por meio deste PL, as empresas passariam a ter acesso à outorga de forma perpétua e seriam liberadas a criar mercados de águas em bacias hidrográficas brasileiras.
Estes mercados de águas funcionariam sob a justificativa de que, em situações de escassez hídrica, onde há perdas econômicas, as empresas do agronegócio e as hidrelétricas, que são as maiores usuárias de água nas bacias hidrográficas, poderão estabelecer uma negociação sobre os direitos de uso dos recursos hídricos.
Para ser uma ideia, o PL sugere que, em situações de escassez, os usos múltiplos estariam suspensos e a prioridade de uso da água seria destinada somente aqueles que utilizarem à água com maior rentabilidade no processo produtivo.
Com isso, a prioridade sobre os usos da água será somente para quem possui tecnologias, equipamentos, máquinas e sistemas produtivos adequados para gerar rentabilidade e eficiência na utilização da água. Agricultores familiares, por não disporem de tecnologias e equipamentos, ficarão sem acesso à água para o cultivo agrícola. Isso significa colocar o lucro acima da vida.
Estudos realizados em 2018 pelo Banco Itaú preveem ainda que, com a instituição de um mercado de águas, os custos onerosos e as perdas econômicas que as empresas poderão sofrer em situações de crise hídrica serão convertidas aos consumidores finais da tarifa de energia elétrica, como aconteceu na Barragem do Castanhão, em 2017.
Já em épocas de estiagem, as empresas que possuem a outorga perpétua sobre as águas terão direito a estabelecer negócios especulativos. O “excedente” de água, isto é, a água que não estiver sendo utilizada para produção de eletricidade poderá ser vendida no mercado livre pela própria empresa que detém a outorga, gerando um mercado de compra e venda de água em períodos de escassez e estiagem.
Sendo estabelecido um mercado internacional de águas no país, a população brasileira ficará impedida de acessar os rios. Só terá direito a captar água quem possuir outorga, aqueles que tentarem fazê-lo estarão sujeitos a cobrança de altas multas. Por outro lado, as empresas, usuárias de água, terão acesso permanente a água e poderão solicitar outorgas somente para vendê-las no mercado livre, os rios estarão cercados e passarão a ser territórios de alta especulação financeira.
Esta estratégia de privatização da água no Brasil possui uma relação siamesa com o setor elétrico, uma vez que estas empresas de energia poderão consolidar novos negócios, bem como já preveem novas tarifas a serem incorporadas na conta de luz. E isso ocorre também no saneamento. Os principais formuladores da metodologia de privatização do saneamento também atuam no setor de energia, como é o caso do BTG Pactual, assim como os estudos técnicos elaborados pelo capital financeiro sobre este assunto apresentam o modelo elétrico como a forma ideal a ser adotada.
Na recente lei 14.026/20, o setor elétrico é apresentado como modelo ideal não apenas em relação a metodologia tarifária, mas de todas as outras mudanças apresentadas na nova lei do saneamento, como a instituição de uma agência reguladora nacional, a formação de blocos regionais fragmentando o setor, os contratos de concessão como a via única de prestação de novos serviços, a cobrança de tarifas para cada serviço de saneamento, a proibição de contratos de programa e o impedimento das companhias estatais continuarem funcionando sob uma gestão pública, que vão de encontro a atual organização do setor elétrico brasileiro.
Sem falar que algumas empresas de energia, como a Equatorial, que cobra uma das tarifas mais caras do Brasil, já sinalizaram interesse em concorrer a editais de licitação para executar serviços de saneamento no país.
Os impactos decorrentes de uma nova metodologia de tarifa no saneamento podem ser ainda mais graves porque estão previstas, ao menos, quatro tarifas: tarifa de água, tarifa de esgoto, tarifa de iluminação pública e tarifa de resíduos sólidos. Todas essas tarifas numa única conta, baseadas na lei do mercado, poderão causar grandes impactos na vida do povo brasileiro.
Se estes negócios forem viabilizados, o capital terá o controle pleno sobre uma importante fração da água no mundo e os serviços públicos fundamentais serão mais uma vez tratados como mercadorias no Brasil. Só utilizará os serviços de saneamento quem puder pagar caro por ele.
Enquanto MAB, somos contra qualquer tipo de privatização que estabeleça a propriedade privada sobre a água! Não podemos permitir que um bem essencial a vida da humanidade seja transformado em bem de mercado. A água é do povo, é direito, não é mercadoria. Entendemos que é necessário defender a soberania e o controle popular sobre esse patrimônio que é de todo povo brasileiro. Somos e devemos ser como água, fortes, alegres, transparentes e em movimento. Águas para a vida, não para a morte!
*Dalila Calisto integrante da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
**Editado por Fernanda Alcântara