Um golpe que ainda grita
Por Ariane Araújo* e Carol Proner**
Da Página do MST
Passados quatro anos desde o Golpe de 2016, que merece ser grafado em maiúsculas tanto pelo registro histórico traumático como pelas consequências capitais, são muitos os que preferem não reconhecer a gravíssima quebra institucional que irrompeu o processo democrático brasileiro e que estancou o futuro promissor do Brasil como nação.
Mas também é cada vez maior o número de pessoas que reconhecem no impeachment – alguns até confessam certo arrependimento por o haverem apoiado – um juízo político ilegítimo, construído sem bases jurídicas e com um tremendo apelo midiático que deu impulso ao ressurgimento dos piores valores e sentimentos entre parlamentar e setores da sociedade, valores que pensávamos derrotados junto aos escombros da ditadura civil-militar.
Independentemente da constatação de que foi um golpe ou mesmo se alguns não sejam capazes de compreender a falta de sustentáculo jurídico para o impeachment que levou ao afastamento prematuro de Dilma Rousseff, a história brasileira registrará inexoravelmente o evento como um ponto de inflexão e o início de um período obscuro, reacionário e, em muitos aspectos, protofascista.
Está claro que um dos objetivos para a derrubada de Dilma Rousseff e para determinar o fim da era Lula/Dilma foi o projeto de desestabilizar profundamente as bases econômicas asseguradas por um modelo social-desenvolvimentista, dando lugar a uma economia de corte financeirista e rentista afastada de qualquer compromisso social.
O saldo, após quatro anos, é a constatação da regressão generalizada. Essa regressão acontece em todas as áreas que representaram conquistas sociais e distribuição de riqueza por intermédio de políticas públicas. A derrocada de direitos e de programas sociais arduamente conquistados tornam ainda mais difícil evitar o agravamento da desigualdade social, como bem demonstra o aumento do número de desempregados (90,5 milhões) que este ano superou mais uma vez o de empregados no país (83,3 milhões, segundo fontes do IBGE).
No entanto, e o aprendizado desse tipo de ruptura radical nos obrigada a pensar que o ataque ao governo Dilma não gerou apenas o desmonte do projeto social e inclusivo de sociedade, mas também promoveu, por intermédio de complexa manobra de perseguição jurídico-midiática, a inviabilização política das forças de esquerda que vinham governando o país. A mega-operação Lava Jato, a pretexto de combater a corrupção política, engendrou uma imensa trama de colaboração internacional com o fim de afastar forças políticas, líderes e um projeto nacional de desenvolvimento que passava pelas principais empresas e setores estratégicos do Brasil.
Ainda pouco sabemos dos detalhes e abrangência desse imenso esquema de destruição soberana e de sujeição aos interesses de outras potências, mas é certo que o ex-juiz Sérgio Moro manteve relações íntimas com integrantes da Lava Jato e com congêneres internacionais. Esteve frequentemente nos Estados Unidos visitando entidades públicas e privadas dedicadas a usar o “combate à corrupção” como ativo estratégico nacional, passando pelo uso da extraterritorialidade, algo que toda a América Latina já entende ser uma nova estratégia de expansão econômica regional.
Desde que se tornou o super juiz, Sérgio Moro atuou de forma diametralmente contrária ao direito e já é conhecido como um célebre artífice de lawfare, palavra que define a utilização de instrumentos legais e do sistema de justiça para perseguir e destruir adversários políticos. As revelações trazidas pela Vaza Jato apenas confirmaram o que muitos juristas já deduziam: dos grampos ilegais à relação complementar com veículos da mídia, a Lava Jato se valeu de tudo para afastar o candidato favorito às eleições de 2018.
Tal manobra não ficou restrita ao judiciário, mas contou com a anuência e participação direta de setores empresariais e em aliança com os partidos de direita e do chamado “centrão”, consolidando no poder a elite político-econômica que sequestrou o governo para instituir uma política completamente subordinada aos interesses do capital. Importante salientar o cunho estrategicamente militar e de natureza misógina, racista e latifundista, estendendo o uso político do direito para outras finalidades e agendas, unindo princípios “lavajatistas” à agenda autoritária “bolsonarista”.
É nesse contexto propício que observamos a entrega das riquezas nacionais ao capital externo em favor de empresas estrangeiras ao mesmo tempo em que se intensificam as ofensivas às periferias, às populações e organizações do campo como o Movimento Sem Terra, os povos indígenas e os quilombolas.
Não é sem razão que os estrategistas do mundo todo estudam esses novos golpes – institucional-midiático-jurídicos-empresariais – dentro do contexto de uma guerra híbrida, instaurada como forma de desmobilizar as lutas populares por meio de formas híbridas e mescladas de ataque: despejos forçados, criminalização das lutas, do fortalecimento dos grupos paraestatais armados, formação de milícias no campo e na cidade.
A organização social que servia de sustentáculo na construção da soberania nacional e dos processos democráticos passa a ser o principal alvo na violenta revertida político-econômica para satisfazer as necessidades do capital neoliberal vigente, suscitando em uma ruptura com pacto democrático.
Eis as razões do Golpe de 2016, urdido muito antes, talvez mesmo antes de 2013, ano em que vimos manifestações fascistas em meio aos protestos legítimos nas ruas das grandes cidades. Compreender que estamos sob ataque é a única forma de reorganizar os movimentos e lutas. O aumento das violências de gênero, raça, classe e meio ambiente faz parte dos sintomas de um Brasil submetido a este sistema predatório que precisa ser denunciado ao mesmo tempo em que forjamos novas estratégias de contra-ataque.
Ao Brasil de Bolsonaro, subproduto da violência institucional que representa o Brasil masculino, branco, elitista, conservador e violento, contrapomos a luta incansável no seu extremo oposto: da classe trabalhadora negra, indígena, LGBT, mulher, periférica e camponesa. O legado legítimo da mulher Dilma Rousseff e da democracia brasileira que tanto fez pelo povo é a munição para esses embates e seus 54 milhões e meio de votos não são apenas números, mas fazem parte diretamente da história de defesa da soberania popular na vigência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
*Ariane Araújo é advogada, integrante do Setor de Direitos Humanos do MST na Bahia e Membra da ABJD Bahia
**Carol Proner é advogada, Doutora em Direito Internacional e Membro fundadora da ABJD