A luta pela terra como forma de combate ao racismo agrário
Por Claudinei dos Santos*
Da Página do MST
Este ano completa-se 325 anos da captura e morte de Francisco Nzumbi, também conhecido como Zumbi dos Palmares (1695). O que um movimento social como o MST herda das experiências de lutas e resistências protagonizadas pela forma organizativa que se convencionou a chamar de quilombo?
Sem sombra de dúvida, somos herdeiros e herdeiras do problema histórico estrutural que denominaremos de racismo agrário, que se materializa através de uma política do não acesso à terra para a população negra deste pais que por sua vez produz outras formas de racismo, dos quais passaremos a tratar de algumas demonstrando como que a reforma agrária pode ser um instrumento de combate ao mesmo.
Sendo o MST um movimento que herda dos nossos antepassados a luta pela terra, herdamos com estes a forma, o conteúdo e os sujeitos históricos da luta pela terra e pela liberdade que impulsiona nosso jeito de fazer tal luta.
Se na escravidão tínhamos a forma quilombo, no capitalismo temos a forma acampamento. Se nos quilombos tínhamos o grito da liberdade como conteúdo da ação política, nos acampamentos buscamos a libertação da terra para mulheres e homens com todos as suas formas e expressões de orientação sexual, como forma de efetivação da vida.
Se na escravidão os sujeitos e sujeitas eram uma propriedade espoliada daquele modo de produção escravagista, hoje estes sujeitos e sujeitas vivem no desemprego ou tem seu trabalho superexplorado nas formas de assalariamento, ou sistemas de “parceria” e meação de produção, impedidos e impedidas pelo modelo agrícola baseada no agronegócio do exercício a vida em sua plenitude.
Pois o agronegócio, ao mesmo tempo que concentra a terra, escraviza os corpos por meio de suas relações de trabalho. Temos assim, um sistema ambivalente, que transita entre o “moderno” do ponto de vista das tecnologias e o atrasado no tocante as formas de apropriação do trabalho, de modo que, quando mais desenvolvida a tecnologia, mais intensas as formas de apropriação e exploração dos trabalhadores/as.
Ao tomarmos consciência de que somos de certa forma uma espécie de quilombo do século XXI, dado nossa forma de organizar as famílias sem-terra nos acampamentos, e dado também que as relações sociais que formaram o tecido social daquele período, reverbera ainda nos dias de hoje, é fato também que o racismo se apresenta no tempo presente numa dupla dimensão, que vai desde a prática de trabalho escravo reiteradamente constatadas por operações policiais, até as formas sutis imbricadas nas relações entre as instituições do Estado e os movimentos sociais.
A outra forma de como este racismo se apresenta no tempo presente, pode ser observada na política econômica que privilegia o agronegócio como modelo hegemônico na agricultura, desmerecendo e criminalizando as outras tantas formas de se relacionar com a terra e com os demais bens da natureza.
Esta política por sua vez, vai se materializar no que estamos chamando de racismo agrário, que é quando o estado elege quem pode e quem não pode fazer uso da terra, mantendo esta cativa aos interesses da capital. Ao mesmo tempo, mantem os corpos sem-terra presos e explorados pela sua não-possibilidade de uma vida plena, e pela fome sobre os mais pobres, servindo como uma forma de punição. É o Estado quem diz quem usa o território por meio das políticas públicas, planos administrativos, com produção de legislação, jurídicos, com as ações de reintegração de posse, e com o monopólio da forma policial.
Este racismo agrário vai reverberar na sociedade como um todo, por meio dos resultados sobre a forma de uso destes territórios, seja pela contaminação do meio ambiente, fruto do uso dos agrotóxicos, seja pela forma de descartes dos resíduos industriais do agronegócio.
Estas consequências se convencionaram a chamar de racismo ambiental, pois os pobres na falta de comida de verdade, vão acessar a forma padronizada de consumir alimentos processados de forma industrial, e vão ser as únicas vítimas dos descartes de lixos por meio dos aterros sanitários ou lixões públicos, pois nunca vamos ver estas estruturas em lugares nobres das cidades, e sempre nas periferias destas mesmas.
Debaixo da lona preta, ao longo dos seus trinta e cinco anos de lutas e resistências, o MST foi construindo e resignificando formas organizativas que estão sistematizadas e ainda em construção em seu programa de Reforma Agrária Popular.
Criamos formas participativas e democráticas no exercício da condução da luta, tendo presente a paridade de gênero. Construímos formas de se relacionar com a natureza onde o humano não seja colocado como o centro, e sim como meio deste sistema uno chamado meio ambiente, que se convencionou a chamar de agroecologia.
A agroecologia tem como finalidade combater o que chamamos de racismo agrário, que passa pelo respeito com as demais formas de se relacionar com a terra por meio da atividade agrícola, tendo nestas como finalidade a busca de uma relação em equilíbrio com a natureza, a busca pela autossuficiência e segurança alimentar, pela diversificação no padrão alimentar casado a produção de comida limpa e pelo combate da concentração da terra e suas desigualdades.
Segundo o censo agropecuário de 2017, as pessoas brancas são quase 80% dos grandes proprietários rurais com áreas acima de mil hectares, enquanto que os negros e negras vivem com áreas de até 5 hectares.
Por último, e sem dúvida a iniciativa mais importante, dado todo o acumulado histórico sobre o debate em torno do racismo estrutural, surge no MST uma forma organizativa, que tem como objetivo empreender uma discursão reflexiva e propositiva em torno dos sujeitos históricos da luta pela terra, trazendo para dentro desde debate o conteúdo de raça e classe.
Essa tarefa vem se construindo por meio da apropriação do debate acumulado em torno das formas estruturais de como se constituiu o racismo no Brasil, em especial da forma de como que este fenômeno social persiste no que diz respeito ao acesso à terra, e com a constatação da evidência mais cristalina de toda a história do MST, de que somos um movimento hegemonicamente constituído por negras e negros.
*Claudinei é militante da Via Campesina e do MST, integrando o Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe do MST
** Editado por Ludmilla Balduino