Legado
Malcom X: a visão revolucionária do antirracismo radical
Por Gerson Oliveira e Rosa Negra
Do Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe do MST
Numa tarde fria de inverno em um domingo como este, em 21 de fevereiro de 1965, três meses antes de completar 40 anos de idade, era assassinado dentro de um teatro lotado no Harlem, em Nova Iorque, a mais radical e combativa liderança negra dos EUA, identificado dentro do islâmismo pelo nome árabe de Hajj Malik El-Shabazz, mas mundialmente reverenciado e conhecido como Malcolm X.
Entre as centenas de pessoas que ouviam seu discurso e assistiram a chuva de tiros serem desferidos na direção do seu corpo naquele dia, estavam sentadas nas primeiras cadeiras sua esposa grávida e mais três de suas quatro filhas.
O brutal assassinato de Malcolm pôs fim a sua trajetória curta, porém intensa de luta e de organização que assumia um caráter cada vez mais consistente e revolucionário; mas o colocou, sem sombra de dúvida, em um lugar de destaque no panteão dos grandes heróis americanos e da luta internacional.
Nascido em Omaha, estado de Nebraska em 19 de maio de 1925, Malcolm trazia em sua história familiar, as marcas brutais da selvageria e desumanização que os supremacistas brancos e racistas dos EUA impunham aos negros e negras. Sua avó engravidou de sua mãe após ter sido estuprada por um homem branco que nunca foi preso ou sequer acusado de ter cometido crime. Sendo o quarto de um conjunto de oito filhos da dona de casa Louise e do pastor da igreja batista Earl Litle, Malcolm, ainda na barriga de sua mãe, já sofria junto com eles as ameaças e ataques racistas que sofriam por parte da Ku Klux Klan e da elite branca o que os obrigou a se mudarem diversas vezes, para diversas cidades no estado.
Em uma das ocasiões, após ter a casa da família incendiada por supremacistas, o pai de Malcolm ao se dirigir à delegacia para dar queixa, foi acusado de ter colocado fogo na própria casa para dar o “golpe do seguro”. Quando seu corpo foi encontrado estilhaçado sobre os trilhos de trem, a polícia disse à família de Malcolm, possuindo apenas seis anos na época, que seu pai cometera suicídio. Sua mãe lutou o quanto pôde para proteger e criar os filhos, mas as dificuldades eram muitas a levando ao desespero de tal modo que às vésperas do natal de 1938, após sofrer um colapso mental, ela foi internada em um hospital psiquiátrico no qual ficaria 26 anos, deixando os filhos à própria sorte.
A vida de Malcolm neste período da infância à adolescência passaria a ser definida por idas e vindas entre orfanatos e adoções, até que com 15 anos abandona a família branca que o havia adotado (segundo ele mesmo em uma entrevista, o tratavam tão bem quanto aos animais da casa) e vai morar com uma irmã mais velha em Boston. Anos mais tarde, num longo período de isolamento na Colônia Penal de Norfolk, Malcolm X fará uma ruptura que mudará radicalmente sua vida, se convertendo ao islamismo e adotando uma perspectiva negra e muçulmana radical. Desenvolveu um autodidatismo e uma capacidade de leitura e síntese impressionantes, disse depois de solto, que “ninguém aproveitou os anos da prisão tão bem quanto ele”, pode ler todo tipo de livro durante os mais de sete anos em que esteve encarcerado.
No entanto vários conflitos passam a existir entre as posições de Malcolm e da Nação do Islã, especificamente as de Elijah Muhamad. A principal tese defendida pela Nação do Islã era de que não seria possível a emancipação política da população negra-americana dentro de um sistema político dominado por “demônios brancos”, por isso a proposta de construir um estado somente de negros.
Malcolm rompeu com esta tese e ampliou o debate, buscando aprofundar os fundamentos do sistema de poder dos EUA a partir das imbricações entre escravidão, racismo, capitalismo promovidas pelo “homem branco”. Passou a ser enquadrado pelo FBI como um “inimigo de Estado”, um inimigo interno a ser combatido da mesma forma como o foi Carlos Marighela, militante da ALN aqui no Brasil. Ele sabia que era uma questão de tempo para que o Tio Sam lhe retirasse o direito de viver, mantendo sua radicalidade nos discursos e na organização do povo preto norte-americano para se insurgir contra a dominação branca, contra o Estado opressor e o sistema desigual do capitalismo.
Ao contrário de Martin Luther King, originário de uma família relativamente estruturada do estado da Geórgia (sudeste dos EUA) e que era filho e neto de pastores que o fez cursar teologia e seguir pelo mesmo caminho profissional, a vida para Malcolm desde muito cedo já o havia chocado e violentado de diversas formas, reservando para ele aquilo que o racismo estrutural em sociedades racistas como o Brasil e os EUA reservam para os jovens negros, especialmente nas grandes cidades: a marginalidade social, o desemprego, as drogas, prisões, o mundo do crime e as incertezas, inclusive sobre seu tempo de vida.
Não existe capitalismo sem racismo
A vida de Malcom X foi breve, mas deixou um legado sem igual para a classe trabalhadora, especialmente negra, a nível mundial. Malcolm foi, provavelmente, a primeira grande liderança dos EUA a se posicionar publicamente contra a Guerra do Vietnã, denunciada por ele como uma guerra racista e imperialista.
Partiu de Malcolm também a orientação tática na luta do movimento negro de fazer as denúncias chegarem a organismos internacionais como a ONU para situar o mundo sobre a condição inumana de discriminação e genocídio a que estavam submetidos. Argumentava que era preciso mostrar ao mundo as “mãos sujas de sangue” e a hipocrisia praticadas pelo Tio Sam; os limites da democracia e da malfadada cidadania dentro desse sistema de governo. Isso fica evidente em vários trechos de um de seus últimos discursos intitulado “Voto ou bala”: Não sou democrata. Não sou republicano e também nem me considero americano. […] Estou falando como uma vítima desse sistema americano. E vejo a América pelos olhos da vítima. Não vejo nenhum sonho americano; vejo um pesadelo americano. Malcolm argumentava que o mais central para os negros/as era a dignidade, não a integração. Quem defende a integração (segundo ele) “geralmente são os chamados negros de classe média, uma minoria. Por quê? […] acreditam que ainda há esperança no sonho americano. (MARABLE, 2011, p. 231).
Essa visão confrontava com Martin Luther King que apostava na resistência pacífica, quando foi à Meca se deparou com todas as raças cultuando um mesmo Islã, ortodoxo, que nada tinha a ver com aquele a que tivera acesso ainda na prisão. A partir daí percebe que todos os problemas enfrentados por seu povo estavam relacionados ao sistema capitalista, “não existe capitalismo sem o racismo”, além disso, rejeitou as ideias separatistas e defendeu o socialismo como alternativa a esse sistema violento racista e opressor.
Em sua ida à Meca, local sagrado para os muçulmanos de todo o mundo, Malcolm teve contato com diversas lideranças e organizações pan-arabistas como Gamal Abdel Nasser (Presidente do Egito de 1958 a 1970) e pan-africanistas como Kwame Nkrumah (Presidente de Gana entre 1960 e 1966). Este foi outro momento de ruptura em sua vida e em seu pensamento, principalmente sobre luta anticolonial dos povos africanos que avançavam em direção ao socialismo. Ao voltar de sua peregrinação, Malcolm declara ter se convertido ao Islamismo sunita, rejeitando de vez os vínculos com a Nação do Islã de Elijah Muhammad e se opondo diretamente ao fanatismo e à intolerância. Colocando-se à disposição de cooperar com grupos de direitos civis e direitos humanos, ou qualquer branco que apoiasse de forma genuína a luta dos negros norte-americanos.
Malcolm ficou bastante entusiasmado com a fala de Ernesto Guevara na Assembleia Geral da ONU em 1964 denunciando as violações de direitos humanos cometidas pelo imperialismo na África, sobretudo no Congo, posteriormente convidou El Che para visitar o Harlem em um evento da Organização para Unidade Afro-Americana (OAAU). Na Assembleia Geral anterior, em 1960, Fidel Castro havia visitado o Harlem, sendo recebido de forma calorosa e entusiasmada pela militância negra, ocasião no qual Malcolm se reuniu com o líder cubano, deixando ainda mais preocupados os órgãos de monitoramento e repressão do Estado.
O fato é que o discurso de Che fez com que Malcolm avançasse na compreensão das artimanhas do imperialismo em sua unidade classista burguesa internacional para saquear e atacar os povos de África, por isso assumia abertamente uma posição pan-africanista, conectando a luta no Mississipi com a luta pela libertação do povo congolês.
Há uma revolução mundial em andamento!
Em seus últimos discursos, Malcolm alcançou uma compreensão muitíssimo elevada de que não se tratava simplesmente de haver segregação ou não reconhecimento dos direitos civis de negros/as dentro dos EUA, mas sim de entendermos que a própria constituição dos EUA e da sua riqueza como nação capitalista e principal Estado imperialista mundial só foi possível por meio da escravidão, pela exploração intensa e violenta da força de trabalho e do sangue de gerações de negros e negras.
Não apenas cedemos nossa força de trabalho gratuita, nós demos o nosso sangue. Toda vez que o homem branco fazia uma chamada às armas, nós éramos os primeiros a vestir o uniforme. Nós morremos em todos os campos de batalha que o homem branco arranjou. Nós demos uma contribuição maior do que qualquer um na América de hoje. Nós fizemos uma contribuição maior e recebemos menos. (Trecho do discurso: Voto ou bala)
Malcolm passou a falar em defesa dos direitos humanos dos negros/as, tanto no afã de explicitar as contradições do principal país do imperialismo internacional, mas também para mobilizar o apoio internacional de países asiáticos, do continente africano e da América Latina. Este passo foi importantíssimo para o reconhecimento internacional da luta dos negros/as estadunidenses, extrapolando assim “os limites da jurisdição do Tio Sam”, como ele mesmo dizia, enquanto a luta ficasse só em torno dos direitos civis, ela seria vista pelo mundo somente como um problema interno aos EUA, impossibilitando a intervenção de organismos externos como as Nações Unidas.
Estas duas teses, tanto da denúncia da Guerra do Vietnã, como a questão do racismo nos EUA ser visto como caso de direitos humanos foram acolhidas também por Martin Luther King, confirmando a visão controversa defendida por Manning Marable, autor da mais recente e completa revisão biográfica da história de Malcolm X, que ambos se aproximaram ideologicamente na direção do pensamento um do outro no fim da vida.
Nós temos que lutar para vencer!
A filosofia social e política por ele desenvolvida, dentro do chamado nacionalismo negro, pressupunha a conscientização do povo negro de sua condição de exploração, dos males que a opressão racial e de classe do “homem branco” estabelecia sobre as comunidades e convocava à auto-organização completa de todos negros e negras dos EUA por todos os meios necessários, na economia, na política, na questão social, cultural etc. A comunidade negra deveria, em suas palavras, se unir para “remover os males, os vícios, o alcoolismo, a toxicomania e outras mazelas que estão destruindo a fibra moral da nossa comunidade”. […] em cada igreja, cada organização civil, cada ordem fraternal é chegada a hora de as pessoas se conscientizarem da importância de controlar a economia da própria comunidade. Mais que isso, ele estava defendendo que era necessário que os negros/as “redescobrissem a si mesmos”, sua história, sua experiência e o inimigo em comum, a beleza cultural e artistica que possuiam como potência revolucionária para romper totalmente com as armadilhas e grilhões do homem branco.
Esta concepção de auto-organização comunitária local (poderiamos chamar de construção do poder popular local) vai influenciar de forma originária o chamado movimento black power e o surgimento do Partido dos Panteras Negras no início dos anos 1970 que terá forte expressão e luta articulada nacional e internacionalmente, além da construção de inúmeras instituições negras que vão influenciar a política de grandes cidades com a eleição de prefeitos negros, deputados e senadores, etc. A experiência dos Black Panthers em legítima defesa, certamente é o que vai materializar o que de melhor e mais radical continha o pensamento de Malcolm em sua concepção de auto-organização e auto-defesa da comunidade negra, elevando a um outro patamar a luta revolucionária negra nos EUA.
A proposta auto-organizativa de Malcolm demonstra clareza sobre a importância de constituir aparelhos privados de hegemonia e organização da comunidade negra em todos os espaços, instituições, círculos ou igrejas como um momento necessário tanto para autodefesa como fortalecimento e unidade interna.Por isso pregava o controle da política e dos políticos nas comunidades, nesse sentido o voto deveria ser muito bem utilizado pelos negros/as, pois era como uma “bala”, era preciso saber bem qual era o alvo antes de disparar, caso contrário, não valeria a pena.
Entretanto, esta proposta tinha um sentido revolucionário que ia muito além do que orientar taticamente o povo negro sobre como participar do processo eleitoral. Malcolm tinha um panorama da luta de classes do mundo em sua época e analisava criticamente que a máquina de guerra do imperialismo internacional estava sofrendo derrotas e/ou assinando tréguas em vários conflitos como Cuba, Indochina francesa, na Guerra da Coreia, da Argélia e em várias partes da África e dos outros continentes. Sua avaliação era de que não era mais possível para o imperialismo se envolver em uma guerra convencional – sobretudo pelo desconhecido poder bélico da Rússia soviética e da China – e, no entanto, a guerra de guerrilhas, o confronto no solo, era o ponto fraco das tropas imperialistas no campo de batalha a exemplo dos casos já citados anteriormente, pois, além de coragem “você precisa ter um coração pra ser guerrilheiro”, e isso ele (o imperialismo) não tem. “Nós temos que lutar para vencer”!
Visão Pan-africanista
Malcolm X construiu elementos para uma concepção crítica e atual do pan-africanismo, baseado em uma perspectiva da luta antirracista internacional e na autodeterminação dos povos africanos. De acordo com Marable, a Conferência Mundial das Nações Unidas contra o racismo e a discriminação racial, realizada em Durban (África do Sul) em 2001, foi de certo modo a materialização desta visão panafricanista de Malcolm que parte da ideia de que a liberdade dos negros nos Estados Unidos depende de uma estratégia geopolítica internacionalista.
Temos um inimigo em comum. Temos isto em comum: temos um opressor em comum, um explorador em comum e um discriminador em comum. Mas, uma vez que todos nós percebemos que temos esse inimigo em comum, então, com base no que temos em comum, nos unimos. (Trecho do discurso Mensagem às bases).
Muito influenciado pelas ideias de Marcus Garvey, da mesma forma que seu pai, Malcolm defendia que o racismo e a escravidão determinou a origem dos negros nos EUA, mas não decidiria seu futuro, pois as “pessoas de ascendência africana estavam destinadas à grandeza”.
*Editado por Gustavo Marinho