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Campanha da Fraternidade 2021: um compromisso de amor
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Quem tem familiaridade com alguns preceitos religiosos cristãos sabe que, desde a semana passada (terceira semana de fevereiro), estamos na Quaresma. Nesse período, entre o feriado de carnaval e o domingo de Ramos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realiza anualmente a Campanha da Fraternidade, que determina um tema da realidade concreta do povo brasileiro a ser transformada, e um lema, que explicita em que direção se busca a transformação.
A cada cinco anos, a campanha é promovida de forma ecumênica, ou seja, em conjunto com outras denominações cristãs. Seu objetivo é despertar a solidariedade dos fiéis e da sociedade em relação a um problema que envolve a sociedade brasileira, buscando caminhos de solução. Assim, a Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano procura superar as diferenças e vencer o racismo, o preconceito, a discriminação, as injustiças, enfim, tudo o que causa dor, sofrimento e morte, com o tema “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”.
O lema “Cristo é nossa paz: do que era dividido fez uma unidade” (Ef 2,14a) traz à Campanha a reflexão sobre a importância da fraternidade e do diálogo, mas tem sido motivo de discordância entre a Igreja e os católicos conservadores. Estes acusam que temas como combate ao feminicídio, prevenção à violência contra pessoas LGBTQI+ e incentivo à preservação ambiental são ditados por “esquerdistas revolucionários” e por isso “não deveriam ser debatidos nas igrejas”.
Para dialogar sobre estes temas, a Página do MST conversou com Lusmarina Campos Garcia, teóloga, pastora luterana e pesquisadora de direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Dom José Valdeci Santos Mendes, bispo diocesano de Brejo, no Maranhão.
Confira!
As campanhas de fraternidade anualmente têm um princípio de conscientizar sobre temas que valorizam a vida. Qual a motivação da mensagem “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” deste ano?
Pastora Lusmarina: O motivo deste tema é promover a convivência pacífica, a reconstrução da paz social. O Brasil tem sido marcado nos últimos anos, por uma atitude bélica de enfrentamento e desrespeito nas relações individuais e sociais. As Igrejas têm responsabilidade pública com relação às pessoas que delas fazem parte, e também com relação à sociedade mais ampla. Por isso, falar de fraternidade e diálogo como compromisso de amor é chamar as pessoas e a população para a retomada de atitudes mais respeitosas e acolhedoras, menos beligerantes, mais amorosas.
Dom José: A Campanha da Fraternidade sempre tem início exatamente quando começa a Quaresma, e a Quaresma para nós é um tempo de conversão, é um tempo de mudança de vida, e é nesse sentido que a cada ano a gente procura refletir um tema presente na sociedade, que nos desafia também a vivenciar esta fraternidade. Por que então o tema fraternidade e diálogo: compromisso de amor? Exatamente para dizer que nós precisamos caminhar juntos, não é a diferença de credos que vai nos separar, mas pelo contrário; a riqueza de cada igreja, de cada religião deveria nos favorecer sempre mais nessa busca por um mundo novo, um mundo melhor. Somos chamados e chamadas para estarmos abertos ao diálogo, e maior que ao diálogo com as igrejas cristãs, fazer também este diálogo inter-religioso com outros credos, com outras religiões. O amor vem em primeiro lugar como defesa da vida, nos leva cada vez mais à luta por justiça, por um mundo melhor.
A cada cinco anos a Campanha faz esta parceria entre várias igrejas cristãs. Como isso se reflete no lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”?
Pastora Lusmarina: Se as Igrejas querem que a sociedade volte a dialogar, elas precisam dar o exemplo. A Campanha da Fraternidade Ecumênica é um testemunho público de que é possível cruzar as barreiras daquilo que nos diferencia e, por vezes, nos divide, para experimentar a unidade. Jesus Cristo é o centro da nossa fé, é a fonte de onde jorra o amor, a misericórdia, o acolhimento e a justiça. Então, quando o Jesus dos Evangelhos se torna a nossa referência, temos o caminho da unidade estabelecido.
Dom José: A necessidade de união que a Igreja sentiu, a partir do ano de 2000, de realizar esta campanha juntamente com o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) – responsável pela campanha Ecumênica -, traz este ano o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”. Esse convite especial, também feito pelo Papa Francisco, nos chama a atenção para uma fraternidade universal, social, para nos unir neste compromisso em defesa da vida. Por isso é importante que as nossas diferenças não devam ser barreiras para nós. Papa Francisco diz: “precisamos destruir os muros e construirmos pontes, dialogar, aproximar, e cada vez mais superar as barreiras que existem entre nós”. E Jesus Cristo é esse ponto de unidade, que quer nos levar a um testemunho de fidelidade ao seu plano de amor, de solidariedade, de justiça e de comunhão. Por isso é muito importante esta dedicação.
Setores conservadores estão atacando a Campanha da Fraternidade publicamente nas redes. Como estes ataques são vistos?
Pastora Lusmarina: São grupos intransigentes e infiéis à própria tradição e teologia da Igreja Católica. Não aceitam o Concílio Vaticano II e, ao que parece, nem o Magistério dos Papas. Desrespeitam as Igrejas Protestantes referindo-se a elas como “seitas”. Desqualificam a ordenação das mulheres ao colocar entre aspas o título Pastora, quando referindo-se à Pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil.
No entanto, embora afirmemos que estes grupos são infiéis à tradição da Igreja Católica, é importante observar que eles estão instalados no interior da Igreja e funcionam, muitas vezes, com o beneplácito e sob os auspícios da organização eclesiástica. Este grupo específico, que atacou a Campanha da Fraternidade Ecumênica, é conhecido e frequentado pelas lideranças católicas do Rio de Janeiro.
As pautas históricas do movimento ecumênico são incômodas a determinados setores da Igreja. Não querem um ecumenismo com incidência pública para defender os direitos humanos, a justiça social, a redução da desigualdade, a justiça de gênero. Querem um ecumenismo domesticado, servidor do status quo, da hierarquia, da agenda capitalista, do escalonamento valorativo entre pessoas, grupos, religiões e classes sociais. Mas o ecumenismo histórico não adere a este tipo de programa. É profético, ousado, transformador.
Dom José: É claro que as campanhas vêm com desafios também, assim como o questionamento do porquê as pessoas não estão aceitando. Precisamos aprofundar sempre mais nesses tema, e acho que o que deve nos unir é a defesa da vida, é o compromisso com a justiça, com a solidariedade. Nós percebemos que, principalmente nesse tempo, são tantas pessoas que estão abaixo do índice de pobreza, que não têm alimento, que estão passando fome, então não podemos nos prender a algumas dificuldades que impeçam o diálogo dentro dessa caminhada.
Dentro destas dificuldades que enfrentamos daqueles que não aceitam, precisamos também ter a compreensão de que não podemos nos limitar a pequenas coisas, que precisamos lutar, nos comprometer com a vida em abundância. Nosso Senhor Jesus Cristo diz: “eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância”, então somos chamados e chamadas a caminhar numa perspectiva de comunhão e de solidariedade.
Temas como Auxílio Emergencial e Vacina para todas e todos são alguns dos desafios colocados para o próximo período. Como estas demandas estão sendo trabalhadas atualmente?
Pastora Lusmarina: Diversas organizações de igrejas e da sociedade civil têm se mobilizado em torno da continuidade do auxílio emergencial e da vacina imediata e gratuita para todas as pessoas. O auxílio emergencial é o que garantirá que as famílias não voltem a morrer de fome, processo que, aliás, já está em andamento no país. É obrigação do governo brasileiro prover uma renda básica para que as pessoas mais empobrecidas tenham a chance de enfrentar as consequências drásticas da pandemia.
De igual modo, é dever do Estado prover a vacina. Mas, como temos visto, as políticas do governo federal têm dificultado mais do que facilitado a produção e compra das vacinas. Então, há diversas frentes de luta, tanto no âmbito judicial, político, social, quanto da área de saúde. Do lado das lideranças religiosas, uma das frentes de luta é o pedido de impeachment que apresentamos no dia 26 de janeiro e que continua em vigor. Abrimos novamente para a coleta de assinaturas. Deste modo, as pessoas que quiserem ser signatárias do pedido de impeachment das lideranças evangélicas e católicas, podem acessar no nosso site.
Dom José: A Comissão sócio-transformadora da qual da CNBB faz toda uma articulação com as pastorais sociais, com os movimentos sociais e os movimentos populares, no sentido de dizer a importância da vacina para todas e para todos e do auxílio emergencial, uma vez que o nosso povo está passando fome, passando necessidade, que a pobreza está crescendo sempre mais, e tantas pessoas já perderam a sua vida. Estamos nesta mobilização, juntamente com todos os movimentos populares e sociais, para lembrar que não dá para dizer que a pandemia é uma “gripezinha”, que precisamos de fato nos comprometer cada vez mais com a vida. Estamos também mobilizando nas dioceses, nos nossos espaços regionais, para ressaltar a importância da vacina e no mutirão pela vida.
A quaresma é um período em que se incentiva ao povo pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação. Qual é a recomendação para os próximos 40 dias de quaresma de reflexão e luta?
Pastora Lusmarina: O lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica diz, que “Cristo é a nossa paz”. A paz que é Cristo, para além de ser um estado de tranquilidade interior de cada pessoa, é uma ação ativa, coletiva, em busca da justiça para todos e todas, em busca da dignidade humana e da preservação da natureza.
Estamos vivendo um tempo de profundos sofrimentos por causa da perda de pessoas queridas para a Covid-19, por causa da política de morte que tem sido praticada pelo governo federal, por causa da violência de gênero, de raça, econômica, religiosa e ecológica que se estabeleceu no seio da nossa sociedade. Todas estas violências nos colocam diante dos nossos limites e nos fazem duvidar se somos capazes de prosseguir.
Mas, sabe aquela força que nos vem quando parece que vamos fraquejar, e não fraquejamos? Sabe aquela coragem que nos enche quando a gente acha que vai desistir, e não desiste? Esta é a força que Deus embutiu em nós, no nosso corpo, na nossa alma. Esta é a capacidade de vencer a dor, o medo, a tristeza, a violência e declarar que, com Deus e com os irmãos e as irmãs, somos capazes de cruzar os limites e estabelecer novos mundos, novas histórias e novos inícios.
A recomendação para os próximos 40 dias é: lembrar de onde vem a nossa força, onde se origina a nossa paz, encarar a tirania governamental lutando por vacina para todos e todas, pelo auxílio emergencial continuado e pelo Fora Bolsonaro! É aprofundarmos a nossa fé no Cristo-Paz para convivermos em respeito e amor com a nossa família, com as pessoas que pertencem a outras religiões, a outros campos políticos, a outras formas de ver as relações e o mundo.
Dom José: Para a Igreja, a Quaresma é um tempo de conversão, é um tempo de olharmos para a nossa própria vida, de superar as barreiras, por isso, durante esses 40 dias da Quaresma, nós chamamos a atenção para a importância de refletir nas nossas dioceses, paróquias, comunidades, esse empenho pelo diálogo que vai além das igrejas, um diálogo inter-religioso. É muito importante que de fato a Campanha da Fraternidade nos leve a vivenciar essa solidariedade e, ligado a isso, tem o Fundo Nacional de Solidariedade, que tem beneficiado tantas comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, povos indígenas, lares de idosos, pessoas com deficiência, crianças, grupos de mulheres, apenas citando alguns.
Que a solidariedade seja também um sinal concreto de compromisso com a vida para com os nossos irmãos e irmãs. Que possamos vivenciar esta Campanha da Fraternidade lutando pela vida, na comunhão, nesse diálogo com outras igrejas, com outras religiões, e assim perceber que em primeiro lugar deve estar a defesa da vida, e vida em abundância.
*Editado por Solange Engelmann