Reportagem Especial
Investimentos na Reforma Agrária e agricultura familiar são alternativas para crise no Brasil
Por Solange Engelmann e Iris Pacheco
Da Página do MST
Em meio a uma das maiores crises econômica, política e sanitária, trabalhadoras e trabalhadores rurais se reinventam para se manter no campo e apresentar uma viabilidade de projeto que contribua com a soberania alimentar do país. Esse não é um processo que começou agora, ao contrário, é fruto de muitas lutas e histórias. Se na reportagem anterior fomos primeiro para as regiões Norte e Nordeste, desta vez, fomos direto para o assentamento Hugo Chaves, em Tapes, no Rio Grande do Sul. É aí que vive Salete Carollo, 56 anos, assentada e Dirigente Nacional do MST.
A trabalhadora Sem Terra iniciou sua participação no MST em 1992, por meio da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), e relata que desde 1999 as famílias do seu assentamento buscam formas de contribuir com a produção de alimentos saudáveis para o autoconsumo e a manutenção dos trabalhadores que vivem na área conquistada, bem como contribuir para a segurança alimentar e o abastecimento do mercado local. No assentamento são desenvolvidas várias experiências de agroecológicas, em que a principal é a do arroz orgânico.
“A experiência de produção agroecológica do arroz orgânico deve ser compreendida dentro de toda a cadeia de produção organizada e coordenada pelo Grupo Gestor do Arroz Orgânico do MST, do Rio Grande do Sul. Inclusive, a Unidade de Beneficiamento de Arroz localizada no assentamento só se justifica considerando o volume de produção da cadeia do arroz orgânico”, argumenta.
Juntamente com uma parte das famílias que vivem no assentamento Hugo Chaves, a família de Salete, composta pelo casal e três filhos, trabalha em regime coletivo na Cooperativa de Produção Agropecuária (CPA), da Cooperativa de Produção dos Assentados de Tapes (COOPAT). Nessa CPA, a terra, o trabalho e a divisão da renda são organizados de forma coletiva. Somente uma parte do terreno de 1.250 m², localizado na agrovila onde estão as residências, é de cultivo e organização individual de cada família. Já na área coletiva os assentados produzem arroz orgânico, cultivam pastagem com animais, lenha, batata e mandioca para o consumo interno.
“Nessa área coletiva há aproximadamente 60 hectares com arroz orgânico, onde se colhe anualmente 300 mil kg de arroz em casca. Uma área de aproximadamente 60 hectares destinados à pastagem, onde são criados gado leiteiro, bovinos de corte e búfalos, no sistema de piquetes”, conta Salete.
No espaço de produção coletiva o assentamento Hugo Chaves também mantém duas agroindústrias. Sendo uma Unidade de Beneficiamento de Arroz e uma Indústria de Panificação, que segundo a trabalhadora Sem Terra, fornecia a maior parte da renda das famílias assentadas antes da pandemia, mas teve sua produção reduzida com o coronavírus.
“Com a pandemia, essas indústrias sofreram impactos significativos reduzindo sua produção e, consequentemente, a renda das famílias. Estimativas recentes indicam que a cooperativa faturou em 2020, somente 25% do faturamento de 2019”, constata.
Além do grupo de famílias que se organiza e trabalha de forma coletiva, os demais assentados produzem de forma individual, no modelo tradicional, e há casos de assentados que são produtores orgânicos. Segundo Salete, essas famílias cultivam diversos produtos como hortifrutigranjeiros, leite, queijo e ovos, comercializados no mercado local. Alguns produtores também participavam de feiras e outros atuavam na entrega à domicílio.
“Tanto a produção das famílias individuais, quanto a das agroindústrias da CPA, abasteciam o mercado local através das três feiras do município, da entrega à domicílio, dos contratos de fornecimento de alimentos para a prefeitura municipal, via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Assistência Social e outras formas de compra pública,” ressalta.
Assentamentos e agricultores familiares sem políticas públicas na pandemia
Saindo do Sul do país, subimos até o Nordeste e conversamos com a assentada e integrante da Coordenação Nacional do MST, Débora Nunes, que ressalta como esse ataque à agricultura familiar é deliberado pelo governo Bolsonaro e de que forma ameaça a permanência dos povos no campo.
“Em 2020, quando foi definido o isolamento social e para isso o povo precisaria de condições, o Congresso discutiu o auxílio emergencial e Bolsonaro vetou a agricultura familiar de acessar esse auxílio. Houve então, a proposta do PL 735, que se desdobrou na Lei Assis Carvalho, para fomentar e estimular a produção de alimentos. A mesma quando aprovada foi vetada quase que integralmente por Bolsonaro. Isso demonstra que há uma maior hegemonia de setores conservadores e o próprio agronegócio com forte expressão no Congresso Nacional. Não é à toa que as bancadas do boi, da bíblia e da bala tem forte relação com a questão da terra”, salienta.
A destruição das políticas de apoio à Reforma Agrária e a agricultura familiar por Bolsonaro, agravadas com o impacto da pandemia atingiram profundamente os assentamentos, piorando a economia e a qualidade de vida das famílias.
“O fim da assistência técnica comprometeu a qualidade dos processos produtivos, bem como ações como elaboração de projetos e planejamento de longo prazo. O estrangulamento do PAA pelos cortes de recursos impactou principalmente os produtores individuais, que forneciam hortigranjeiros. No caso da cooperativa, as vendas para o PNAE respondiam pela maior parte da receita. Os cortes de recurso, assim como a paralisação das aulas presenciais, provocaram uma queda de 75% no faturamento em comparação ao ano anterior”, lamenta a assentada Salete.
Diante desse cenário, o povo brasileiro passou a conviver com o aumento nos preços dos alimentos, que só fez crescer o número de desempregados e mortes pela Covid-19, além da volta do Brasil ao Mapa da Fome. O economista Gerson Teixeira, analisa que o desmonte e as deformações das políticas de Reforma Agrária e da agricultura familiar tornam o abastecimento alimentar altamente vulnerável e, como consequência, impactaram no custo dos alimentos e da economia.
“Os impactos da interrupção do programa de Reforma Agrária, da extinção do PAA e da política de sustentação de preços para a agricultura familiar, e os desvios de finalidade no Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], geram efeitos diretos na erosão da base produtora de alimentos no Brasil. Some-se a esse fator a ‘extinção’ da política de estoques públicos por prevalecer a concepção neoliberal, segundo a qual o mercado regularia o abastecimento alimentar”, destaca.
O economista considera ainda que o Brasil só não enfrenta uma crise de abastecimento com consequências políticas, devido ao aumento do desemprego e a queda na renda da população com a pandemia, pois constata que o período do auxílio emergencial evidenciou que o país tem uma “supersafra” com apenas dois produtos, soja e milho, produzidos pelo agronegócio e que não atendem a necessidade alimentar do brasileiro.
Nunes também comenta sobre os desmontes e os aponta como uma tentativa, que não apenas destrói a Reforma Agrária e ataca os povos do campo, mas que unifica discursos políticos e ideológicos na sociedade a partir da ideia de que não há uma dicotomia entre projetos de agricultura para o campo brasileiro. Porém, “são dois modelos em sua essência totalmente antagônicos, diferentes, e não tem possibilidade de coexistência em harmonia”, afirma.
Ainda de acordo com Nunes, “além da disputa e da confrontação permanente de projetos na agricultura temos, sem sombra de dúvidas, o papel atuante do governo Bolsonaro que adotou o desmonte das políticas públicas para agricultura familiar, de ofensiva e paralisação sobre a Reforma Agrária. Inclusive com o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), um ministério que tinha função de formular, propor e executar políticas para seguimentos do campo que cumprem com a função da produção de alimentos, da diversidade, da preservação da biodiversidade.”
Essas ações sinalizam como o governo Bolsonaro tem avançado a passos largos intensificando um projeto que se expressou com o golpe da então Presidenta Dilma em 2016, e começou a ser implementado no país por Michel Temer com o desmonte de um conjunto de políticas públicas construídas nos últimos anos. Uma das primeiras áreas a sofrer com o desmonte foi a Reforma Agrária e a Agricultura familiar. O MDA foi extinto e incorporado, em um primeiro momento, ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Depois, foi reduzido à Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD), vinculada à Casa Civil. No atual governo, as sobras da SEAD foram incorporadas às funções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), controlado pela Ministra Tereza Cristina, uma das líderes da bancada ruralista.
Camponeses e agricultores buscam alternativas para resistir!
Diante da destruição das políticas públicas para o campo, como o PAA e PNAE, assistência técnica, entre outros, as famílias dos assentamentos buscaram na organização e na luta coletiva, alternativas para resistir e sobreviver e esse momento difícil.
A assentada Salete expõe que as famílias do assentamento Hugo Chaves, organizadas na CPA e de forma individual, buscaram reorganizar o cultivo e a variedade de produtos para o autoconsumo e ampliar as áreas de produção. Bem como participar de mais espaços de comercialização, como feiras locais, entregas à domicílio e vendas pela internet.
“Quanto às estratégias de sobrevivência frente a essa situação podemos elencar o aumento do esforço em produção para a subsistência. Na cooperativa, houve uma ampliação da área destinada ao plantio de pomar, cana, mandioca, melancia, melão, produção de mel, etc., para o autoconsumo; aumento da participação dos assentados nas feiras locais e um incremento nas áreas das hortas; também um incremento em outras atividades econômicas, visando a venda nas feiras, como produção de compotas, conservas, temperos prontos, massas, pizzas, produtos pré-prontos, produção de queijos e embutidos. Outras formas de comercialização é a entrega à domicílio. No caso da cooperativa, criou-se um canal exclusivo chamado COOPAT Delivery para tratar dessas vendas. No relacionamento com o consumidor, vem se intensificando o uso das redes sociais”, explica ela.
Gerson chama atenção para o fato de que os segmentos dos camponeses assentados e produtores da agricultura familiar não têm condições de sobreviver e desenvolver sua produção sem os incentivos do Estado brasileiro, que hoje estão destinados exclusivamente ao agronegócio. “São segmentos sociais que estão nos limites materiais da sobrevivência. Não têm como pensar na economia camponesa sem os incentivos do Estado”, denuncia.
Na concepção do economista, após o golpe de 2016 as elites rurais buscaram restabelecer a velha ordem político-institucional, de rebaixamento da agricultura camponesa e familiar e dar prioridade absoluta ao agronegócio exportador, além de considerar como ‘inimigas’ as políticas sociais e agrárias dos governos petistas, criminalizar os movimentos populares, indígenas, quilombolas, ambientalistas e as Organizações Não Governamentais (ONGs).
“Com Bolsonaro, o Brasil rural retrocedeu para posição anterior à CF [Constituição Federal] de 1988. De imediato, no governo Temer foi extinto o MDA, na sequência, teve início a escalada de retrocessos nas ações conquistadas pelos trabalhadores rurais, principalmente durante os governos do PT. Para as classes patronais rurais, em particular, se impunha não apenas a ‘limpeza’ dos espaços institucionais, mas, também, o reposicionamento dos camponeses nas franjas das disputas pelos recursos orçamentários da União”, conclui.
Hegemonia da bancada ruralista no Congresso
Nesse sentido, outro aspecto a ser considerado são as mudanças ocorridas na Câmara Legislativa e Senado Federal, onde historicamente o ruralismo está inserido. Com aliados importantes para o setor do agronegócio, o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) considera o momento como o melhor para aprovar suas pautas prioritárias, tais como licenciamento ambiental, defensivos agrícolas e regularização fundiária. Dos 513 deputados federais em exercício no Congresso, mais de 260 são da FPA.
Débora avalia esse cenário como agravante. Para ela, o poder que a bancada ruralista adquiriu é a possibilidade de trânsito livre dos seus interesses e o que vão conseguir legislar, pois não há um executivo que funciona. “A bancada tem conseguido destruir conquistas históricas do povo brasileiro e que não afeta somente quem está no campo. São questões essenciais que têm relação com a própria soberania nacional, como a questão da venda de terras para estrangeiros e da ofensiva permanente sobre territórios indígenas e quilombolas”, pontua.
Assim, é possível compreender porque o agronegócio – que infringe leis, tem trabalho análogo à escravidão, licenciamento ambiental em terras indígenas e quilombolas e usa agrotóxicos, até mesmo letais para a vida humana – tem tantas ‘benesses’ do governo, como refinanciamentos de longo prazo e baixíssimos juros. Enquanto, a Reforma Agrária e a Agricultura Familiar sobrevivem ao calvário da falta de recursos públicos.
É fundamental salientar que, este é um problema social, político e econômico que está presente na história do Brasil, ou seja, as questões fundiárias brasileiras são profundamente marcadas pelo racismo, pela desigualdade social e de gênero. E mesmo havendo brechas para rupturas, como a tão conhecida Lei de Terras, de 1850, o Estado brasileiro vem ao longo da história, garantindo a manutenção da base estrutural de poder da concentração de terras e da exploração no campo.
De acordo com o último Censo Agropecuário do país, realizado em 2017, cerca de apenas 1% dos proprietários de terra controlam quase 50% da área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com áreas menores a 10 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol) representam metade das propriedades rurais, mas controlam apenas 2% da área total. Além disso, o número de pessoas que se encontram em situação de conflito por terra, também assusta. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2010, haviam 351.935 pessoas em todo o território nacional lutando pelo direito à terra e água, hoje, esse número é de 578.968 mil.
Diante dos imensos benefícios de investimentos públicos, que o Estado brasileiro tem destinado ao agronegócio ao longo dos anos e a falta de compromisso desse modelo com a soberania do país, como agir enquanto sociedade civil organizada? É possível campo e cidade entenderem a tarefa histórica de cuidados com os bens comuns, a biodiversidade e a soberania alimentar e defendê-las? Na próxima reportagem vamos falar sobre os desafios coletivos de construir condições de vida no campo, em meio ao atual cenário.
Serviço
Ficou interessado em conhecer os produtos da Cooperativa Coopat? Você pode acessar o canal COOPAT Delivery pelo Instagram @coopat_tapes.
*Editado por Fernanda Alcântara