Audiência Pública
“Se o campo não planta, a cidade não janta”, pauta audiência pública na CDH da Câmara dos Deputados
Por Solange Engelmann
Da Página do MST
“Se o campo não planta, a cidade não janta”: nesse tom teve início a Audiência Pública Extraordinária virtual realizada nesta quarta-feira (12/5) pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, para discutir a necessidade de incentivos à agricultura familiar e a Cúpula dos Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas (ONU).
O debate se concentrou na retomada de políticas públicas de incentivo à produção, comercialização e acesso aos alimentos, e em projetos de lei que incentivem a agricultura familiar no país, bem como a participação do país na Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU. O presidente da Comissão, deputado federal José Carlos Veras (PT/PE) iniciou a sessão chamando atenção para a importância de criar políticas públicas para a agricultura familiar nesse momento de crise no Brasil, com “incentivos à produção, comercialização e acesso aos alimentos”. E ressaltou o papel da Cúpula como espaço fundamental para compartilhar ideias e experiências, visando mudanças quanto à forma que o mundo produz, consome e descarta alimentos, procurando avançar no debate de políticas sobre segurança alimentar.
Veras solicitou aos expositores para que, em seus depoimentos, apontassem as dificuldades enfrentadas hoje no país, pelos agricultores/as familiares, no acesso ao orçamento, aos programas de apoio e na produção de alimentos, além de ressaltar a importância da audiência para buscar soluções, junto aos governos (federal, estaduais e municipais). “É a soberania alimentar que está em jogo, com 125 milhões de brasileiros/as passando fome, a solução é uma ação importantíssima é do apoio à produção da agricultura familiar para produzir os alimentos pra ir às mesas do povo brasileiro. Como agricultor familiar sertanejo sei, senti e sinto na pele, no dia a dia a dificuldade que encontra cada agricultor, cada agricultora para produzir os alimentos”, afirmou.
A realização da audiência atendeu aos requerimentos do deputado federal Padre João (PT-MG) e do presidente da Comissão, deputado federal José Carlos Veras, e contou com a presença de convidados do Governo Federal, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), de movimentos populares, confederações e organizações do campo. Além da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) e Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (BSSAN), Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.
O pesquisador Renato Maluf, da Rede PENSSAN, apresentou dados de uma pesquisa de dezembro de 2020, que avaliou o impacto da pandemia na condição alimentar e nutricional das famílias brasileiras. Segundo ele, a pesquisa revelou que o Brasil, embora propagandeado com um dos maiores produtores mundiais de alimentos, não consegue assegurar o direito humano à alimentação de grande parte da sua população.
“Chegamos a conclusão que, no total de 211 milhões e 700 mil pessoas, quase 117 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar naquele momento, destes quase 44 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente pra atender suas necessidades e 19 milhões se encontravam na situação mais grave, que é de conviver com a fome”, apontou. Ele argumenta ainda que, não apenas a convivência com a fome tem piorado, mas todas as condições de inseguranças alimentar se agravaram, o que compromete o padrão alimentar da população, ainda que não se registre a evidência da fome.
Porém, Renato explica que as condições de falta de alimentos e insegurança alimentar, ou seja, a fome no país, é ainda mais grave no caso das populações pardas e negras, de famílias chefiadas por mulheres e com baixa escolaridade. “A condição da insegurança alimentar é mais grave quando o responsável tem raça ou cor da pele preta ou parda. Quando a pessoa de referência do domicilio é mulher, a vulnerabilidade é maior, e quando a referência do domicílio não tem escolaridade ou tem o ensino fundamental incompleto é maior ainda. Isso quer dizer que, conviver com a fome no Brasil tem cor da pele, gênero e escolaridade – pardos e pretos, mulheres e pessoas com baixa escolaridade são mais expostas a vulnerabilidade”, revela.
Já na área rural a pesquisa aponta que as condições de insegurança alimentar e fome são ainda mais graves e se aprofundam no caso da falta de água e perda de renda na comercialização da produção. “Fizemos também uma pergunta sobre a disponibilidade de água na área rural. E a segurança alimentar grave, aquela onde há convivência com a fome, dobra quando não há disponibilidade adequada de água para produção de alimentos, e também é o dobro quando não há água suficiente para o consumo dos animais. Na área rural, a pesquisa também perguntou sobre dois outros fatores, que comprometeram o preço da sua produção agropecuária, por alguma razão ele teve um impacto negativo no preço daquilo que produz e, em consequência teve um impacto negativo na sua renda ou quando não consegue comercializar. A condição de segurança alimentar devido sua redução na capacidade produtiva, cai pra 18%”, aponta Renato.
Para o pesquisador da Rede, o fato do país estar convivendo com o retorno da fome, em patamares que já haviam sido superados em governos anteriores (Lula e Dilma) com programas voltados à agricultura familiar, atingindo 77% dos domicílios em segurança alimentar entre 2004 e 2013, o que tirou o país do Mapa da Fome da ONU em 2014, “é consequência do desmonte de políticas públicas que a gente vem assistindo, desde 2016 e o agravamento, a radicalização desse processo com o atual governo. Isso significa que a condição alimentar nutricional das famílias brasileiras, entre as quais as famílias rurais vêm sendo agravadas por esta condição, além dos impactos da pandemia.”
Nesse contexto, Débora Nunes, da Direção Nacional do MST e assentada da Reforma Agrária no Nordeste reforçou a necessidade da retomada de políticas públicas voltadas para a agricultura famílias e para Reforma Agrária, com ações do Estado brasileiro, que garantam as condições pra que a agricultura familiar e camponesa possa se viabilizar e cumprir seu papel, que é produzir alimentos para população. Ela também denuncia que mesmo a agricultura familiar representando 77% dos estabelecimentos rurais e sendo responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos no país, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, isso não tem garantido que este segmento agrícola seja prioridade por parte do Estado, que além disso, também paralisou as políticas de Reforma Agrária no país.
“Não temos sentido nem visto a prioridade da agricultura familiar por parte do Estado brasileiro, ao contrário, vivemos o desmonte e ataque deliberado deste governo a agricultura familiar, a quem está no campo e se compõe a esse projeto genocida. Políticas que foram construídas ao longo dos anos pelos agricultores/as, que são essenciais pra produção de alimentos e, com consequentemente pra o enfrentamento à fome no país. Nessas ofensivas está a paralisia total da Reforma Agrária, o Incra atuando contra a sua efetivação, realizando uma contra Reforma Agrária na tentativa de reconcentrar terra e não garantir as condições aos assentados da Reforma Agrária para que possamos permanecer no campo, produzindo alimentos saudáveis em meio a pandemia”, argumenta.
Outra ofensiva do Governo Federal, contra a agricultura familiar, segundo Débora, é a tentativa de desmonte do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a retirada de prioridade de assentados/as da Reforma Agrária, quilombolas e indígenas da política dos 30% para merenda escolar. A falta do auxílio emergencial aos agricultores familiares e o veto à Lei Assis Carvalho, que garantiria um auxílio de emergência aos agricultores familiares e camponeses para fortalecer a produção de alimentos também foram mencionados.
Claudeilton Luiz, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), lamentou o agravamento na situação da fome e da pobreza no país, relembrou que o Brasil também bate recordes de desemprego, com mais de 14 milhões de brasileiros/as desempregados, que encontram dificuldade para colocar o alimento na mesa e também denunciou o veto do governo Bolsonaro á Lei Assis Carvalho.
“Mesmo diante desse contexto, que a pandemia passa a se intensificar não existem uma proposta, nem mesmo o auxílio emergencial, que possa dialogar e caminhar na perspectiva de superar esse contexto de fome que vive o Brasil. Em 2020, na busca de solução, diante do contexto da fome, as organizações do campo social e deputados da oposição conseguiram aprovar a Lei 14.88, conhecida como a Lei Assis Carvalho, que tinha um objetivo de oferecer um fomento produtivo, crédito emergencial e garantir a comercialização, objetivo central como prática para enfrentar o contexto de fome e pandemia, que o Brasil estava vivendo. E infelizmente, a resposta que se teve do executivo foi, quase que praticamente na íntegra foi vetar essa lei”, explica.
Cúpula dos Sistemas Alimentares
O deputado federal Padre João trouxe o debate em relação à Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, que está prevista para ocorrer em setembro de 2021, e tem um papel importante para indicar caminhos na organização da governança e abordagem em relação a temas sociais e econômicos, que requerem medidas intersetoriais, contínuas e diálogos entre a comunidade internacional. Porém, o deputado denuncia que essa Cúpula foi cooptada pelas grandes empresas de alimentos e pelo agronegócio e convocou a sociedade civil a se articular para criar um evento paralelo e denunciar o que vem ocorrendo no Brasil com o aumento da fome da insegurança alimentar.
“O que está sendo construído, que o Brasil tá levando pra essa Cúpula? É um quadro pintado ou a realidade de mais de 20 milhões de brasileiros/as passando fome, os ataques do PNAE, do PAA, da Reforma Agrária, do esforço do governo em legalizar as terras griladas, dar legalidade aos desmatamentos? Senão, temos que levar, enquanto organização da sociedade civil, movimento populares do campo, das águas, das florestas. Temos que nos unir para mostrar ao mundo, num evento paralelo da Cúpula”, defendeu.
Nesse contexto, de fome, insegurança e desemprego, que não se deve somente à pandemia, mas às medidas adotadas pelo Governo Federal. Luiz do MPA, aponta a importâncias dos movimentos populares, confederações e organizações populares do país e construir coletivamente espaços para participar da Cúpula dos Sistemas alimentares da ONU e fazer a denúncia do aumento da fome no Brasil e a falta de alternativa apresentadas pelo Estado para resolver esse problema.
Assim, diante dos vários desafios a assentada do MST, relembra que os trabalhadores/as da Reforma Agrária seguem produzindo alimentos, em isolamento produtivo, para o autoconsumo das famílias e a doação à população em condução de vulnerabilidade. “Mesmo com todas as dificuldades e a ofensiva do governo pra com a agricultura familiar e a Reforma Agrária temos conseguido seguir na resistência produzindo alimentos, fazendo ações de solidariedade, partilhando aquilo que produzimos, com outras pessoas que estão na periferia, que estão nas favelas, grotas e que não tem tido direito à alimentação”, conclui Débora.
Ao final da sessão o presidente da CDHM, José Carlos Veras afirmou que será gerado um relatório da Audiência Pública, com as contribuições e gargalos levantados pelos convidados e pelos parlamentares que será entregue à ministra Tereza Cristina do MAPA, para que soluções sejam adotadas em relação ao tema, com o acompanhamento da Comissão. E chamou a atenção para a necessidade de liberação de recursos para a construção de cisternas, para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a urgência na votação do Projeto de Lei Assis Carvalho 2.
Confira audiência na Íntegra abaixo:
*Editado por Fernanda Alcântara