Repercussão

Organizações ambientais repudiam aprovação de PL do “não-licenciamento” ambiental

Texto-base do projeto relatado por Neri Geller (PP-MT) foi aprovado pela Câmara na madrugada desta quinta (13)
Texto substitutivo de deputado vice-presidente da Bancada Ruralista nacionaliza o autolicenciamento. Foto: Daniel Beltra / Greenpeace

Por Lu Sodré
Do Brasil de Fato

Para organizações ambientais brasileiras, a aprovação do PL 3729/2004, que flexibiliza normas e dispensa diversas atividades da obtenção do licenciamento ambiental, é um retrocesso inaceitável.

O texto substitutivo do projeto que visa criar a Lei Geral para o Licenciamento Ambiental foi aprovado na madrugada desta quinta (13) na Câmara dos Deputados por 300 votos a favor e 122 contrários.

O projeto relatado por Neri Geller (PP-MT), empresário e vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, dispensa 13 atividades do licenciamento ambiental, entre elas obras nas áreas do saneamento básico, distribuição de energia elétrica de baixa tensão e algumas atividades agropecuárias.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Suely Araújo, ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), e analista sênior de políticas públicas do Observatório do Clima, afirma que o PL aprovado protagoniza o maior retrocesso na experiência de licenciamento ambiental das últimas quatro décadas e coloca a não licença como preponderante a partir do grande número de isenções.

“Os órgãos ambientais deixarem de ter controle sobre a parte do saneamento básico é um absurdo. É inaceitável uma estação de esgoto ser isenta de licença e de outorgas de afluentes para o lançamento [dos rejeitos]. Não é porque são empreendimentos importantes que podem simplesmente deixar de ser controlados”, exemplifica Araújo.

Ela também critica a redação genérica do texto. “O projeto cita o melhoramento de infraestruturas pré-existentes, o que pode se referir a um bueiro em uma rodovia ou um alteamento de uma hidrelétrica que pode inundar outras áreas. As redações são bem perigosas”.

Outras organizações como Instituto Democracia e Sustentabilidade, Instituto Socioambiental (ISA) e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) também manifestaram repúdio à aprovação. O texto final do projeto não ouviu nenhuma entidade da sociedade civil e sequer passou por audiência pública.

“Vergonha. A boiada estar mesmo passando. A Câmara dos Deputados aprovou o fim do licenciamento ambiental no Brasil, que abre a porteira para mais desastres”, posicionou-se o Greenpeace.

Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, alerta para as consequências imediatas caso o projeto, que irá para apreciação no Senado após votação dos destaques, receba sanção presidencial sem vetos.

“Estamos rumo à COP 26 e o que o Brasil vai levar é uma lei geral de licenciamento ambiental que começa dispensando a necessidade da licença atividades que considera, por pressão do setor econômico, de baixo impacto. Atividades que agravam condições de escassez hídrica, abastecimento público, qualidade do ar, entre tantas outras”, comenta.

Segundo ela, o substitutivo de Geller elimina o principio fundamental do Licenciamento Ambiental, que é o controle social por meio da avaliação ambiental estratégica e de uma análise integrada.

O PL também inviabiliza o chamado zoneamento econômico ecológico, que permite uma ação de planejamento estratégico para direcionar as atividades econômicas de acordo com a realidade dos biomas brasileiros e de seus contextos socioeconômicos.

Já os defensores da proposta argumentam que há excesso de burocracia na forma com que os licenciamentos se dão hoje, processo que seria pela paralisação de obras importantes.

“É um texto que pensa de forma antiga, de forma retrógrada”, avalia Ribeiro.

Em entrevista ao Brasil de Fato, ela descarta a justificativa dos autores do projeto de que seu objetivo principal seria o de “vencer a burocracia”.

“Na verdade [o projeto] não aparelha, não equipa, não traz alternativas para os órgãos técnicos, para os licenciadores do meio ambiente e dos órgãos gestores vencerem rapidamente, com eficiência, segurança técnica e jurídica os processos e análises de licenciamento ambiental”, rebate.

A Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional também declarou “profunda indignação” com o texto aprovado.

“Liberou geral”

A proposta de lei que já havia sido duramente criticada por nove ex-ministros do meio ambiente cria ainda uma espécie de licença autodeclaratória por meio da nacionalização da Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

O dispositivo já existe em alguns Estados mas com determinação restrita e é acompanhado com um termo de referência de qual atividade será desempenhada, assim como conta com conhecimento prévio da área ambiental.

Agora, a LAC será omitida quase que automaticamente, com apenas alguns cliques de distância do responsável pelo empreendimento.

“Na forma como [a proposta] foi redigida significa simplesmente um autolicenciamento pela internet. Um registro que sequer obriga a análise do relatório de caracterização do empreendimento que é o único documento entregue. Soma-se a não licença com o autolicenciamento e sobre pouca coisa para se licenciar no país. Basicamente os megaempreendimentos”, observa Suely Araújo, ex-presidente do Ibama.

A ambientalista reforça que a ideia original do projeto era racionalizar e patronizar a Lei Geral do Licenciamento. “Mas o relator optou por simplesmente se livrar das licenças ambientais.”

Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, faz coro à crítica. “Não é colocando o pedido de licença na internet de forma autodeclaratória que vamos vencer a burocracia. Sem falar de gravíssimos impactos ambientais causados por episódios como Brumadinho, Mariana, pela ineficiência da transposição do São Francisco, de Belo Monte e outras tantas mega obras que vão tentar colocar na nossa cabeça de cima para baixo”.

Outros pontos

O projeto também exclui terras indígenas não demarcadas e territórios quilombolas não titulados da análise de impactos, concentrando o poder decisório sobre o licenciamento ao órgão regulador.

Há também considerável retrocesso na legislação sobre áreas protegidas já que o texto só prevê oitiva do órgão gestor de unidade de conservação caso a área seja diretamente afetada pelo empreendimento, não considerando possíveis impactos indiretos.

Araújo, ex-presidente do Ibama, relembra que atualmente há condicionantes para o licenciamento, tanto ambientais, como o desmatamento na área, quando socioeconômicas, como a construção de escolas ou postos de saúde.

De acordo com ela, o texto substitutivo leva a entender que nenhum desses requisitos serão exigidos, jogando a responsabilidade no colo de municípios e estados.

“A sociedade inteira vai pagar pelo impacto causado por um empreendedor específico que será isento. Se tira a responsabilidade do empreendedor e joga no colo do Poder Público. É um retrocesso que a sociedade não pode aceitar.”

A analista sênior de políticas públicas do Observatório do Clima endossa que no lugar da segurança jurídica, o PL 3729/2004 será propulsor de processos de judicialização, tanto em relação à própria lei quanto em relação a cada empreendimento que deixará de ser licenciado.

“O Ministério Público vai em cima, as organizações da sociedade civil também, com ações civis públicas. Estão com fome de liberação, de tirar requisitos. O que eles vão conseguir é muito processo judicial. É um tiro no pé. É uma pena.”

Os destaques no projeto estão sendo votados em segunda sessão na Câmara que ocorre na tarde desta quinta (13) mas, em razão da correlação de forças, não há perspectivas de que os pontos mais graves sejam revertidos.

“A ideia agora é um grande esforço junto ao Senado para aperfeiçoar esse texto, reverter os problemas e, se não for o caso, ir para o Supremo Tribunal Federal”, garante Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.

*Editado por Leandro Melito