Combate à fome
Comunidades do MST partilham resultados da Agricultura Familiar e Camponesa na pandemia
Por Aline Albuquerque Jorge e Angela dos Santos Machado*
Para Página do MST
No Brasil, a pandemia do novo coronavírus aprofundou a situação de vulnerabilidade social que afeta parte da sociedade. Junto com a crise sanitária, muitas pessoas tiveram que lidar com o desemprego, com a falta de acesso à moradia e aos itens necessários para proteção contra a Covid-19.
Além disso, nesse período, vários produtos de necessidade básica passaram por diversos reajustes. Somente em 2020, o gás de cozinha teve seu preço aumentado nove vezes, chegando a custar em algumas cidades mais de R$ 100,00 reais. O mesmo aconteceu com os alimentos, inclusive aqueles que constituem a base da nossa alimentação. Segundo levantamento realizado pelo IBGE, em 2020, o preço do arroz subiu 76%, do feijão carioca 16,2%, do óleo de soja 103,8% e do leite longa vida 27%.
É evidente que esses frequentes reajustes, que tornam o custo de vida tão alto no país, fazem com que o restrito auxílio emergencial pago pelo governo federal à população economicamente vulnerável, cujo maior valor na atualidade é de R$ 375,00 reais (destinado às mães solo), não chegue nem perto do suficiente para a garantia de uma vida digna.
Como consequência de tudo isso, a extrema pobreza tem crescido no país e a insegurança alimentar já atinge mais de 116 milhões de pessoas, conforme dados publicados no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan).
Durante esse momento de crise, os movimentos sociais camponeses, em especial o MST, contribuem de forma significativa para o combate à insegurança alimentar, através da construção de campanhas e articulações com instituições, ONGs e outros tipos de movimentos, que resultam na doação de milhares de toneladas de alimentos em todo país.
Não são caminhões carregados com a soja ou o milho do agronegócio que temos visto chegar nas periferias, abrigos e comunidades indígenas, mas sim, caminhões carregados com frutas, legumes, hortaliças, tubérculos e cereais, oriundos da produção camponesa dos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária. As doações não contribuem apenas para saciar a fome daqueles que as recebem, mas também para adequada reposição dos nutrientes e o aumento da imunidade, considerando a diversidade e a qualidade dos alimentos doados, sendo que vários deles são orgânicos ou agroecológicos e, portanto, livres de agrotóxicos.
A multiplicação das doações de alimentos realizadas pelos movimentos durante a pandemia nos estimulou a iniciar uma pesquisa para compreender a dimensão e o significado dessas ações. Como ponto de partida, decidimos trabalhar com as doações efetuadas pelo MST, tanto de forma individual como em conjunto com outros movimentos e instituições. Para isso, passamos a analisar e sistematizar as notícias publicadas pelo Movimento em sua página web e redes sociais, relativas às doações.
Entre março de 2020 (início da pandemia) e março de 2021, quando decidimos suspender o trabalho, identificamos 474 ações realizadas em todo o Brasil, que somadas correspondem à doação de mais de 1.760 toneladas de alimentos in natura, 98.000 marmitas, 9.600 cestas, 22.000 litros de leite, 8.200 pães, 2.700 cestas básicas, além de centenas de kits de alimentos com produtos de higiene e cafés da manhã solidários. Certamente, o número de ações e de alimentos doados são ainda maiores, considerando os casos em que a doação não foi divulgada, ou ainda, aqueles em que a notícia não informava a quantidade de alimento doado, dificultando o registro.
Constatamos que muitas das campanhas desenvolvidas concentraram-se em datas representativas para a luta camponesa, dos trabalhadores, das mulheres, entre outras. Em abril de 2020, por exemplo, mais de 380 toneladas de alimentos in natura, 10.700 marmitas e 1.000 cestas foram distribuídas em todo o país, principalmente, em função do Dia Nacional da Luta pela Reforma Agrária (17 de abril), data criada em memória aos trabalhadores Sem Terra assassinados no Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. Outro exemplo é o mês de julho de 2020, em que comemora-se o Dia Internacional do Agricultor Familiar (25 de julho), e mais de 400 toneladas de alimentos in natura, 6.000 marmitas e 2.700 cestas foram entregues no país.
Dentre as regiões brasileiras, o Sul foi onde se concentrou a doação de mais de 50% dos alimentos in natura, quase 45% das marmitas e 50% das cestas. Na sequência, temos a região Nordeste que se destacou na doação de quase 40% dos alimentos in natura. Já a região Sudeste se apresentou como a segunda maior doadora de marmitas (36%) e de cestas (35%). Esses dados que colocamos aqui em porcentagem estão expressos em número total de toneladas nos mapas que apresentamos a seguir.
É certo que as doações realizadas pelo MST e por outros movimentos se constituem em legitimas ações de solidariedade. De acordo com Ceres Hadich, assentada do norte do Paraná e integrante da direção do MST, “solidariedade não é dar aquilo que está sobrando, solidariedade é dar aquilo que a gente tem, inclusive aquilo que pode nos fazer falta”. Ela afirma que, nesse momento, o MST está cumprindo a sua missão histórica de produzir alimentos saudáveis para o povo brasileiro.
Mais do que solidariedade, as doações de alimentos são uma autêntica forma de denunciar a ausência do Estado em um momento de crise sanitária e aprofundamento da crise econômica e social. Essas ações demonstram que os assentamentos e os acampamentos são territórios de produção de alimentos diversos e saudáveis, além de cumprirem a função social da terra, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988.
Por meio das doações, o MST constrói articulações com diversos outros movimentos, ligados à luta indígena, por moradia, por direitos trabalhistas etc., possibilitando o fortalecimento e a reivindicação de pautas em comum. A partir da organização coletiva, formam-se espaços de diálogo e socialização política, tanto dentro dos acampamentos e assentamentos que doam a comida, como nas cozinhas onde as marmitas são preparadas ou nas ruas, onde o Movimento, ao entregar as doações, interage com a população e divulga suas diversas formas de produção. A solidariedade do MST vai na contramão do discurso do governo Bolsonaro, que ao tentar criminalizar a luta pela terra, associa o Movimento ao terrorismo.
Essas ações evidenciam que a implantação de um projeto de Reforma Agrária Popular, tal como defendido pelo MST, deve ser tratada como uma questão de interesse social. Além da redemocratização do acesso à terra, a Reforma Agrária Popular consiste na construção de um outro modelo de desenvolvimento, cujo pilar central é a produção de alimentos diversificados e saudáveis em larga escala e com preço justo para o povo brasileiro.
Mesmo em meio a tantas adversidades, ao longo de mais de três décadas de existência, o MST conseguiu assentar cerca de 400 mil famílias e promover, nos assentamentos, a constituição de associações, cooperativas e agroindústrias que revelam a potencialidade da Reforma Agrária. Percebemos que o resultado da luta do MST e de outros movimentos tem ajudado pessoas e chegado a lugares onde o agronegócio, as grandes empresas de alimentos e, muitas vezes, nem o Estado chegam.
Apesar de termos interrompido o levantamento das notícias, observamos que o MST continua realizando ações solidárias, como no 25 de julho deste ano, no último domingo, em que mais uma vez, em celebração ao Dia Internacional do/a Agricultor/a Familiar, toneladas de alimentos estão sendo doadas ao povo brasileiro. Segundo o levantamento atualizado divulgado pelo MST, cerca de 5 mil toneladas de alimentos e 1 milhão de marmitas já foram doadas no país, desde o início da pandemia. Por todas as questões abordadas, registramos aqui a nossa gratidão ao MST e a todos os movimentos e instituições, que em tempos tão difíceis têm demonstrado humanidade e nos dado sopros de esperança.
*Aline Albuquerque Jorge é pesquisadora e doutoranda em geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Angela dos Santos Machado também é pesquisadora e doutoranda em geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)