Pesar
A morte e a morte de Dermi Azevedo
Por Kiko Nogueira
Do DCM
O Brasil só terá paz quando acertar as contas com a ditadura e estabelecer um limite histórico para a barbárie. Sem isso, estaremos sujeitos a um Bolsonaro a cada quatro anos.
O jurista Pedro Serrano trouxe uma história triste numa live de ontem no DCM sobre o marco temporal e os indígenas. Algo que não pode ser esquecido.
O jornalista e cientista político Dermi Azevedo, de 72 anos, morreu na manhã de quarta-feira (1) em São Paulo, vítima de infarto.
Foi poupado, de certa maneira, do desmonte do Mal de Parkinson. Mas Dermi já havia morrido antes.
Ele foi preso pela primeira vez em 1968 com líderes estudantis do XXX Congresso da UNE. Exilou-se no Chile em 1970 e 1971, voltou ao Brasil e foi novamente detido em 1974.
Agentes do DOPS encontraram em sua casa o livro “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil”, coordenado pela educadora Maria Nilde Mascellani.
Aí vem a excepcionalidade de seu caso em meio à coletânea de monstruosidades dessa era.
Seu primogênito Carlos Alexandre Azevedo — o Cacá —apanhou. O bebê de apenas 1 ano e 8 meses havia ficado em casa com a babá quando os pais foram sequestrados pelos homens do psicopata Sérgio Paranhos Fleury.
Recebeu um soco na boca por chorar de fome. Com os lábios sangrando, também foi ‘conduzido’ ao DOPS, onde tomou choques elétricos, segundo testemunhas.
Após quinze horas de sevícias, Cacá foi jogado ao chão ao ser entregue aos avós. “Tudo isso o marcou profundamente”, contava Dermi.
O filho desenvolveu fobia social e suicidou-se em 2013, aos 40 anos, com uma overdose de medicamentos.
Dermi escreveu-lhe uma carta em 2014, que reproduzo abaixo. Não há dor que dê conta disso. Um país que aceita é um país condenado.
Longa vida a Demir e seu filho Cacá. Que seus algozes não descansem nunca.
CARTA AO MEU FILHO
Caro Carlos Alexandre Azevedo (Cacá)
Meu querido filho,
Bom dia!
Faz hoje exatamente um ano que você partiu para outra vida. Como aconteceu com muitas outras crianças, você foi uma das vítimas da cruel e sanguinária ditadura civil-militar de 1964. Com apenas um e ano oito meses, você foi submetido a torturas pela “equipe” do delegado Josecyr Cuoco, subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais violentos esbirros da história contemporânea.
Já no sofá da pequena casa em que morávamos no bairro de Campo Belo, na zona sul paulistana, os investigadores da repressão quebraram os seus dentinhos; mais tarde, você foi submetido a novos vexames na sede do DEOPS. Em seguida, na madrugada de 14 de janeiro de 1974, você foi levado a São Bernardo do Campo, onde moravam seus avós Carlos e Joana. Eles foram acordados com o barulho dos agentes que jogaram você no piso da sala…
Toda a sua vida foi marcada por esses acontecimentos. Quando você, anos mais tarde, tomou conhecimento do que viveu, você leu muito e estudou a história da repressão fascista. Em entrevista à repórter Solange Azevedo, da ISTO É, você sussurrou: “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura… Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil…”.
É isto mesmo, meu filho. Ainda há muita gente que não acredita que milhares de brasileiros e de brasileiras, de estrangeiros e de estrangeiras que viviam no Brasil, dedicados aos mais oprimidos e excluídos, tenham sido perseguidos e esmagados pela ditadura…”
Ainda há cidadãos, fardados ou não, no Brasil e na América Latina, que praticam e legitimam a tortura…
Definitivamente marcado pela dor…por sua dor e pelo sofrimento (inenarrável ) de sua mãe e de seus irmãos, você decidiu partir..
Cabe a mim, seu pai, a tarefa quase apenas de compartilhar a narração do seu calvário, de denunciar – como jornalista – os crimes da ditadura e de lutar para que dores e agonias, como as que você viveu, nunca mais aconteçam…
Do seu pai
Dermi Azevedo