Revoga STF
SP é o estado que menos cumpre decisão do STF contra despejos na pandemia
Por Fernanda Rosário
Do Alma Preta
Em desabafo nas redes sociais, o balconista Vitor Lopes mostrou indignação sobre a situação de sua família, moradora da Vila Couto, no município de Cubatão, em São Paulo. Após 13 anos vivendo na casa construída pelos pais, todos viram a moradia ser demolida no dia 10 de fevereiro, após a empresa ferroviária Rumo Logística iniciar processo de reintegração de posse do terreno onde estava localizada. O caso acontece mesmo com a proibição feita pelo STF de despejos durante a pandemia desde junho de 2021.
A empresa Rumo administra o transporte férreo na região e está com projeto de obras no perímetro. As reintegrações de posse acontecem com a justificativa de respeito à distância de 15 metros da ferrovia prevista por lei como faixa não edificável por medida de segurança.
O pedido liminar para reintegração de posse das áreas ocupadas foi deferido em 23 de novembro de 2020. Segundo a concessionária, vistorias no local e contatos com os moradores da área foram feitos em dezembro de 2020, além de fevereiro e novembro de 2021. O caso foi paralisado por conta do avanço da pandemia e, no começo deste ano, a família recebeu notificação sobre a demolição das casas. Entraram em contato com um advogado, mas não conseguiram revogar a liminar da empresa.
“Não quiseram nem entrar em um acordo, falaram para o juiz que a gente morava em barraco. A prefeitura não nos ajudou em nada. A família do meu irmão também foi retirada”, comenta o balconista. Lucas Miguel Lopes da Silva, irmão de Vitor, tinha sua casa localizada na parte de trás do terreno dos pais e também foi destruída.
De acordo com documento que pediu a revogação da liminar feito por advogado, a família não foi inserida em nenhum programa social da prefeitura, que não tinha ciência da ação. A empresa ferroviária ofereceu uma garantia processual para as famílias impactadas de R$6 mil, mas os pais de Vitor não receberam a quantia até o fechamento deste texto.
Além disso, o documento ressalta que há 12 famílias que se encontram na mesma faixa de domínio operacional e possivelmente serão atingidas pelo cumprimento da medida liminar. O caso é um reflexo das muitas pessoas que continuam perdendo suas casas mesmo durante a pandemia.
Suspensão de despejos durante a pandemia não é cumprida integralmente
Está em vigor, até 31 de março de 2022, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, medida cautelar julgada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso que suspende os despejos, desocupações de imóveis e as desocupações coletivas em decorrência da pandemia, seja em área urbana ou rural.
A ação foi proposta no ano passado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Terra de Direitos e outras organizações. Mesmo com a ADPF, os despejos continuam a acontecer.
Daisy Ribeiro, assessora jurídica popular da Terra de Direitos e integrante da Campanha Despejo Zero, reforça que muitos juízes e gestores públicos têm desrespeitado as normas de saúde e realizado essas remoções durante a pandemia.
“Isso ocorre por uma priorização equivocada da propriedade frente à vida das pessoas, mesmo num cenário de múltiplas crises. Caso as decisões do STF sejam desrespeitadas, é possível que as famílias utilizem o recurso das Reclamações Constitucionais”, pontua.
De acordo com dados do levantamento realizado pelo Insper, a justiça de São Paulo é a que menos cumpre decisão do STF sobre despejos na pandemia, concentrando mais da metade das reclamações enviadas ao Supremo por descumprimento da ADPF. Até 30 de janeiro de 2022, segundo o estudo, 53 das 102 decisões do STF que determinam a suspensão de despejos na pandemia são de ações originárias de São Paulo. Logo depois vem o Distrito Federal representando 7 decisões e o Rio de Janeiro com 6 decisões.
De acordo com Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (CEBRAP), alguns fatores podem ser apontados para o motivo de São Paulo liderar essa posição.
“A primeira coisa é o acesso à justiça. Em SP, há um sistema de defensorias públicas e um acesso à justiça bastante consolidado. O segundo fator é que São Paulo é um dos estados com o maior número de aglomerados subnormais, que é a classificação do IBGE para favelas, cortiços e ocupações que são irregulares do ponto de vista do direito formal. Então, há uma quantidade muito grande de conflito em torno de terra e ocupação”, explica a professora.
Ainda de acordo com Bianca, deve-se levar em consideração que pode acontecer de alguns lugares terem muitos conflitos também, mas não conseguirem acessar o judiciário e isso não se refletir no STF.
“A terceira coisa que a gente precisa levar em consideração, mas que a gente não tem dados para comprovar é que pode ser que nos outros estados não se tenha tantas reclamações enviadas ao Supremo, porque juízes e juízas, desembargadores e desembargadoras da Primeira e da Segunda Instância não estão negando a ADPF”, pontua Bianca.
O levantamento do Insper ainda indica que, ao menos, 24.623 pessoas foram protegidas das reintegrações de posse, despejos e remoções por meio de reclamações enviadas ao STF pelo descumprimento da medida cautelar.
Os novos dados divulgados pela Campanha Nacional Despejo Zero também revelam que, até fevereiro de 2022, mais de 132.290 famílias estão ameaçadas de remoção pelo Brasil durante a pandemia. Além disso, mais 27.600 foram removidas mesmo durante a crise sanitária.
Reintegrações de posse em áreas de risco
Em relação ao caso da família Lopes, o vereador da cidade de Cubatão/SP Rafael Tucla (PP) tomou conhecimento ao assistir o desabafo do balconista nas redes sociais.
“Sensibilizado com a situação abrupta sem conceder valores justos para indenização, acionamos os demais vereadores e pedimos que o objeto da comissão recém formada (Comissão Especial de Vereadores) fosse ampliado para também apurar as possíveis irregularidades e injustiças na forma abrupta em que agiu o governo municipal”, declara.
“Vamos continuar atuando para que as famílias inicialmente removidas sejam indenizadas e assistidas, bem como, para que as demais famílias do bairro, que terão seus imóveis afetados, tenham suas respectivas reparações. Entendo que uma ampliação da malha ferroviária deve trazer o progresso por onde passa, todavia o progresso não isenta a referida empresa de suas responsabilidades sociais e jurídicas”, pontua o vereador.
Em nota, a empresa Rumo informa que a companhia procura impedir e retirar ocupações irregulares da faixa de domínio para garantir a segurança da operação e, principalmente, das pessoas. “A preservação dessa faixa é uma obrigação decorrente do contrato de concessão firmado com o governo federal. Trata-se de uma área que deve ficar livre de qualquer tipo de ocupação, garantindo assim a segurança da comunidade e da operação ferroviária”, pontuam.
Segundo a empresa, a ADPF 828 não se aplica à reintegração de posse em faixas de domínio da ferrovia em razão da segurança das pessoas expostas ao risco de desastre ferroviário. A nota também informa que as famílias foram cientificadas com antecedência da ordem de reintegração e tiveram um prazo para desocupação voluntária. “A ação teve a presença de uma assistente social e contou com um caminhão e montadores de móveis para apoio às famílias”, diz a nota.
A Alma Preta Jornalismo também entrou em contato com a prefeitura do município de Cubatão, mas até o fechamento do texto, não teve um retorno.
Segundo Benedito Roberto Barbosa, advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo e membro da Campanha Despejo Zero, quando o ministro Barroso aprovou a liminar da ADPF 828 estabeleceu três exceções: nos casos de ocupações ou invasão de terras indígenas, em flagrante ocupação de áreas consideradas de risco e em áreas ocupadas também pelo crime organizado e por milícias.
“Embora haja essa exceção na ADPF, não significa que você não pode demandar da justiça proteção do Estado para essa família ameaçada ou em situação de risco. No Brasil, o setor imobiliário, as prefeituras e o próprio poder público de uma forma geral têm utilizado o argumento do risco para despejar as pessoas. É necessário também pensar e analisar caso a caso, denunciar junto ao Supremo Tribunal Federal e ao judiciário de uma forma geral essa situação e ao mesmo tempo solicitar proteção do estado”, explica o advogado.
De acordo com a advogada Daisy Ribeiro, qualquer medida em área de risco deve sempre obedecer a Lei 12.340/2010 e as Resoluções n. 10/2018 e Resolução n. 17/2021 do CNDH.
Prorrogação da ADPF 828
Apesar do avanço da vacinação contra a Covid-19, a crise social continua e tem aumentado. A população em situação de rua da capital paulista cresceu 31% nos últimos dois anos, segundo dados do Censo da População em Situação de Rua de São Paulo de 2021. De acordo com o Plano Municipal de Habitação, de 2016, a cidade de São Paulo precisaria de 358 mil novas moradias para zerar seu déficit habitacional.
“Nós estamos vendo os efeitos deletérios da pandemia principalmente na economia de um modo geral. Diante disso, acredito eu que nós teremos, sim, a prorrogação da ADPF, diante dessa situação”, ressalta Gleibe Pretti, professor de Sociologia da Estácio.
Carmen Silva, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) – que coordena cinco ocupações e um empreendimento – conta que as ocupações organizadas pelo movimento também sofrem ameaças de despejos e reintegrações de posse durante a pandemia. “Por mais que sejam ocupações antigas, os processos de reintegrações vão sendo movimentados”, explica.
Já próximo ao fim da prorrogação da ADPF 828, a Campanha Despejo Zero chamou as pessoas às ruas em todo o Brasil na última quinta-feira (17) para pedir mais uma prorrogação da suspensão dos despejos e seguir lutando por políticas públicas de habitação.
“Nós da Campanha Despejo Zero esperamos que o STF estenda o prazo, reconhecendo que a pandemia não acabou e a crise social permanece grave, impactando famílias já hipervulneráveis”, destaca a advogada Daisy Ribeiro.
A professora do Insper Bianca Tavolari pontua que se o STF não prorrogar o prazo, não há nenhuma outra proteção contra despejos e remoções.
“A gente tinha uma Lei que foi aprovada no ano passado (Lei 14.216/2021), só que o prazo da Lei foi 31 de dezembro, então já acabou. A gente tem algumas normas estaduais, mas em âmbito federal a gente só tem a ADPF, por isso essa decisão do Supremo é tão importante, porque ela pega conflitos urbanos e rurais”, finaliza a professora.
*Editado por Fernanda Alcântara