MST por Despejo Zero
“Enquanto morar, viver e comer for privilégio, ocupar é direito”, afirma Kelli Mafort
Da Página do MST
A luta por dignidade e moradia passa hoje pela prorrogação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828, a partir da campanha por uma país sem despejos. O MST compõe o conjunto de Movimentos que luta por Despejo Zero e pelas medidas que ajudam a proteger milhares de famílias no campo e na cidade ameaçadas de despejo ou remoção.
Em junho do ano passado, o ministro do STF, Luiz Roberto Barroso, decidiu favoravelmente à suspensão dos despejos e remoções até dezembro de 2021, com um pedido de extensão protocolado por organizações populares, este prazo foi prorrogado até 31 de março deste ano.
Entretanto, com o fim da ADPF 828, as organizações novamente pressionam pela prorrogação por mais seis meses deste prazo ou quando cessem os efeitos econômicos e sociais da pandemia, ou até que o mérito da ação seja julgado pelo plenário do Supremo.
Confira abaixo a entrevista de Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, sobre a campanha MST por Despejo Zero e a luta por uma vida digna.
Pelo menos meio milhão de pessoas no campo e cidade voltam a sofrer a iminência de despejos ou remoções forçadas. Como estas histórias estão ligadas à história de luta do MST?
Lamentavelmente os despejos estão na base da história dos movimentos, especialmente do MST. Os despejos são aquela face da justiça que age rápido, através das reintegrações de posse contra o povo, e que é extremamente morosa em relação a todos os problemas fundiários que nós temos no nosso país que envolve os grandes proprietários. Sabemos que uma grande parte desses proprietários de terra são grileiros, invasores de terra pública, da União ou devoluta dos Estados, e a justiça demora anos e só faz alguma coisa quando provocada por situação concreta de ocupação de terra, de movimento popular.
Não é essa a mesma postura da justiça em relação à ocupação de terra; logo que a ocupação de terra ocorre, a reintegração de posse ela vem ligeira. Essa realidade nós estamos enfrentando agora, em meio à pandemia, então despejo ele só existe porque a ocupação de terra é um ato legítimo das pessoas que querem plantar, querem comer, viver, morar, com dignidade.
Enquanto morar, viver e comer for um privilégio, a ocupação ela é direito e ela é legítima. Por isso que a gente está nessa luta tão importante contra os despejos.
Além da pandemia da Covid-19, a medida ameaça direitos fundamentais destas famílias, em especial a fome que hoje assola a população. Como o movimento tem atuado diante destes diferentes desafios?
A pandemia não acabou. E nós não podemos normalizar a média de 200 mortes diárias que nós estamos tendo no Brasil devido à Covid-19. Os despejos, nesse contexto, podem representar uma bomba explosiva, porque está provado que todos os países que flexibilizaram normas [de combate à doença] tiveram respostas rápidas em relação ao aumento de casos, como estamos vendo agora em muitos países do mundo; novas variantes foram descobertas, e fazer o vírus circular pode ocasionar o surgimento de novas variantes; o índice de reforço vacinal, a terceira dose, ainda é muito baixo, e isso tem a ver com as desigualdades regionais; e sabemos que, devido à segregação social, mas também racial, existente em nosso país, os pobres, negros e negras são as maiores vítimas da Covid-19. Além disso, tem o impacto da pandemia, que está na economia, na relação de trabalho, está nas condições de vida que foram agravadas.
Existe uma pandemia de vírus, que não acabou, e existe uma pandemia de fome, e despejo durante a pandemia vai agravar uma situação que já é caótica. Serão 500 Mil pessoas no olho da rua após este prazo do dia 31 de março, e isso é extremamente grave. Temos que evitar isso.
Outra preocupação sobre os despejos no Brasil passa pela violência com estes acampados, muitas vezes envolvendo crianças e idosos, durante as remoções e desapropriações forçadas. Como a Campanha do MST por Despejo Zero está organizando a resistência nos territórios?
Tivemos a ADPF 828 em vigência, a lei do Despejo Zero do Congresso, que acabou por excluir os rurais mas que estendeu o direito dos moradores urbanos, e outros mecanismos bastante importantes como a resolução 90 do CNJ, que também recomenda a suspensão dos despejos, e a recomendação nº 10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, e mesmo com todos esses elementos, aconteceram despejos violentos durante a pandemia.
Nós precisamos denunciar isso. Foram atitudes de milicianos, que agiram em função e à mando dos interesses dos proprietários desses imóveis, atitudes extremadas por parte de GCMs, e também por polícias militares dos estados, à revelia da lei. Tivemos também situações onde juízes de comarcas ignoraram a existência da lei de Despejos Zero e da ADPF 828, e muitas vezes ocupações mais locais, que não são ligadas aos movimentos, que não tem toda a assessoria de Direitos Humanos, acabaram por não reclamar rapidamente na justiça e dizer da importância e da existência destes aparatos legais.
Juízes de comarcas locais também determinaram reintegração de posses que eram ilegais, mas depois que o barraco está no chão, que as famílias estão despejadas, quem vai lá reconstruir? Então quando o ato já está consumado, essas famílias ficam realmente no olho da rua.
Essa é a situação de violência a gente presenciou no Brasil, mesmo com a ADPF. Então imagina se não tiver a prorrogação da ADPF 828, o que vai acontecer no nosso país em termos de violência. Estamos em um ano eleitoral, a temperatura está elevada, os temas estão extremamente politizados em torno na questão da disputa de outubro deste ano. Não é tempo, ainda mais agora nas eleições, de ter despejo. Porque 500 mil pessoas na rua é caos, pessoas não tem para onde ir, afeta principalmente a vida de crianças e adolescentes destes espaços, então é uma forte violação dos direitos humanos.
Despejo a qualquer tempo é ato desumano, mas na pandemia é um ato ainda mais criminoso“
O MST também tem empenhado esforços para que a campanha alcance nível internacional. Por que estes despejos envolvem a todos?
O Movimento dos Sem Terra conta com a solidariedade internacional, dos nossos amigos e amigas organizados em comitês no mundo todo, e estes estão mobilizando uma grande campanha internacional escrevendo cartas e sensibilizando o judiciário brasileiro, especialmente o STF, pela prorrogação da ADPF 828. Além disso, nós temos uma ação bastante importante de juristas, personalidades, professores, universidades internacionais, que também estão fazendo uma carta e recolhendo adesões e nós vamos entregar isso na audiência que será realizada hoje, dia 29, para o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em mais uma tentativa de sensibilizá-lo sobre o quanto que os despejos, se não for prorrogada a ADPF 828, terá uma repercussão internacional.
Além disso, nós estamos sensibilizando também órgãos internacionais como a ONU, vendo com a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, porque tratamos que essas vai ser uma das maiores violações coletivas de violações de direitos humanos do período recente. Então é muito importante que a gente aumente a campanha internacional e a sensibilização dessas pessoas para que possamos ter a vitória na prorrogação da medida contra os despejos.
Diversas ações estão sendo articuladas para pressionar a prorrogação da ADPF 828, como as 2 mil cartas encaminhadas e a vigília que está sendo construída. Como individualmente e coletivamente as pessoas podem se somar a esta luta?
As formas de mobilização para a prorrogação da ADPF 828 são muitas. Mas uma em especial é bastante emocionante, e nos provoca a uma profunda reflexão sobre o que representa os despejos na vida das pessoas. 500 mil na rua é um número impactante, mas por trás desse número tem pessoas e histórias de vida. Essas histórias estão sendo contadas nestas cartas que estão sendo enviadas ao Supremo Tribunal Federal. Só do Movimento dos Sem Terra são mais de 2 mil cartas que já foram entregues, mas além disso, essa cresceu também para outros movimentos urbanos, porque foi abraçada pela Campanha Despejo Zero.
Nessas histórias a gente vê o quanto tem destaque a força das mulheres nos territórios, nestas comunidades impactadas pela ameaça de despejos. Muitas mulheres estão contando o que representa para elas ter um teto durante este período tão difícil da pandemia, e o desespero e o pavor que vai representar ir para a rua sem ter condições mínimas de sobrevivência, porque um aspecto importante é que viver em sociedade é uma forma de sobreviver. Foi assim no passado com os quilombos, com os mocambos, com a nossa resistência negra, indígena, popular, e não é diferente hoje.
Ter uma comunidade não é só ter um teto. Estar em uma comunidade é não passar fome, não passar necessidade, é ter alguém para te socorrer em suas necessidades mais imediatas. Quando um despejo acontece, essa comunidade é dispersada, as pessoas vão cada uma para um lado e perdem o elo de comunidade. E isso está nas cartas.
Além disso, estamos realizando audiências em nível local, em Assembleias Legislativas, como é o caso da recente audiência realizada na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, também na do Mato Grosso. Estamos também nesta campanha internacional de sensibilização, a nossa comunicação tem feito uma campanha intensiva de divulgação para a sociedade sobre o que vai representar essa bomba de despejos, e além disso estamos nas ruas: no dia 17 tivemos uma importante mobilização que foi presente em vários espaços, pelo menos 18 estados se mobilizaram pelo Despejo Zero, e além disso nós devemos também intensificar essas mobilizações no 30 e no dia 31.
Dia 30 é o nosso próximo dia “D” de mobilizações. Em Brasília nós vamos ter uma vigília, na qual vamos caminhar e fazer os nossos pedidos ao STF pela prorrogação da ADPF 828; além disso, nós devemos ter a audiência hoje na qual parlamentares, junto com movimentos populares, na qual iremos levar nossa reivindicação e nossos argumentos em relação à prorrogação da ADPF 828.