Agroecologia
Na área em fez renascer a Mata Atlântica, Comunidade José Lutzenberger (PR) conquista o direito à terra
Por Lizely Borges
Do Terra de Direitos
A preservação do “verde maravilhoso” de uma pequena área de Mata Atlântica localizada no litoral do Paraná, como nomeia a guardiã de sementes crioulas, Luzinete Souza Oliveira, obteve uma importante segurança legal nesta semana. Após 21 anos de reivindicação coletiva e resistência a ameaça de despejo, as 22 famílias de camponeses e agricultores familiares residentes na Comunidade Agroflorestal José Lutzenberger, localizada em Antonina (PR), comemoram a conquista ao território. Depois de o Governo do Paraná declarar, no dia 16 de agosto, a área como de utilidade pública para fins de desapropriação e realizar o pagamento de indenização ao antigo proprietário, o recurso de reintegração de posse que tramitava no Tribunal de Justiça do Paraná será arquivado. Com isso, a Comunidade que integra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem o direito ao território assegurado e reconhecido pelo poder público.
“Temos um grande respeito pela terra, por esse cinturão verde, de terra, de água. É um lugar maravilhoso. É um privilégio estar aqui, me vejo assim. As famílias devem falar o mesmo porque é o sentimento de nós todos. Desde 2003 que a área passou a ser bem cuidada, parou de ser usado veneno ou algum químico, sem nenhum prejuízo ao meio ambiente. Veneno pra nós é só na televisão”, declara Luzinete.
É justamente essa síntese feita por Luzinete e reconhecida pelo sistema de justiça que possibilitou o avanço no processo de regularização coletiva da posse. A área ocupada pelas famílias em 2004, localizada dentro de uma área de preservação ambiental de Mata Atlântica (Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba), era objeto de uma ação de reintegração de posse ajuizada pelo proprietário neste mesmo ano. No entanto, com a consolidação das famílias na área e um intenso trabalho de recuperação ambiental e produção agroecológica pelo campesinato, a ação da antiga Fazenda São Rafael – antes intensamente degradada pelo desmatamento e criação de búfalos – foi convertida em uma ação de indenização ao proprietário pela Juíza da Vara Cível da Comarca de Antonina.
Ainda que o proprietário tenha recorrido da decisão, a Juíza Substituta Sandra Bauermann da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná remeteu o processo, no ano de 2021, ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, atendendo a um pedido da Comunidade na busca por soluções pacíficas. Com acompanhamento da Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Paraná, foram estabelecidas negociações entre a comunidade, o proprietário da área, o Estado do Paraná, especialmente a PGE, a Casa Civil e o Ministério Público Estadual.
Após 11 audiências de mediação o Estado do Paraná assumiu, em Termo de Desapropriação, o valor indenizatório ao proprietário, com sua anuência e com o compromisso de respeitar os interesses de permanência dos moradores na área. Nas negociações o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) afirmou que não tinha interesse de regularizar a área, embora até 2015 fez avaliações da área e abriu processo administrativo para desapropriação.
Com forte identidade agrária e um histórico de violência no campo, a existência de um canal de diálogo no estado do Paraná – com composição mais diversa além das partes envolvidas – é compreendida pela comunidade e movimentos sociais como um avanço democrático.
“O CEJUSC e a Comissão de Conflitos Fundiários são espaços de mediação para uma solução efetiva e que respeite os diversos interesses e direitos humanos. Tais espaços são reivindicações antigas dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil brasileira, em razão da complexidade da estrutura agrária no Brasil”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt. Ao lado do MST e do professor e advogado Manoel Caetano Ferreira Filho, a organização assessorou a Comunidade no processo e nas audiências de mediação.
“Também é importante mencionar a decisão judicial da Comarca de Antonina, que foi a pioneira em reverter a ação de Reintegração de Posse em Perdas e Danos, em 2018, em razão da impossibilidade de despejo das famílias e a ocupação consolidada ao longo de todos esses anos. Foi essa decisão que também abriu a possibilidade de negociação, com apoio da Comissão de Conflitos Fundiários e do CEJUSC do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná”, recorda Naiara.
Para o coordenador do MST no Paraná, Roberto Baggio, a disposição dos integrantes do sistema de justiça em realizar escutas mais amplas a mais sujeitos e conhecer os territórios em disputa assegura procedimentos judiciais mais atento às realidades das comunidades. “Este modelo de mediação é importante porque mostra que é importante a busca pela solução dos conflitos quando todo sentam a mesa e, a partir, disto tentam buscar uma solução. Esperamos que esta mediação da Comunidade Lutzenberger sirva de referência a mais processos”, destaca
Agora, como próximos passos, o Estado do Paraná, em conjunto com as famílias que vivem na área e pesquisadores de instituições como a Universidade Federal do Paraná, devem avaliar os formatos jurídicos, socioeconômicos e ambientais que permitam que o assentamento continue produzindo alimentos saudáveis com respeito à biodiversidade da Mata Atlântica.
Desta vez, precisava ser diferente
Ao ocuparem, pela primeira vez, a área em 2004 as famílias da Comunidade Lutzenberger se depararam com um solo devastado. Mesmo sendo uma atividade incompatível com o Plano de Manejo de uma área de proteção ambiental, na área praticava-se a criação de búfalos e plantio e brachiaria, uma variedade que serve à pastagem de animais e sufoca as plantas nativas.
O agricultor Jonas Souza relata que a área tem um lençol freático próximo do solo, de cerca de 60 centímetros abaixo da terra. Com a criação dos búfalos houve naquele período um processo de compactação e rebaixamento do solo. Além disso, o desmatamento e desvio do curso do Rio Pequeno, localizado dentro da área onde reside a comunidade, intensificaram o processo de degradação ambiental e empobrecimento do solo. “Era uma área extremamente degradada. Quando a gente fez a ocupação, nos dois primeiros anos os búfalos ficaram e depois tiraram, e a gente estava quase convencido que ali não conseguiria fazer ocupação pelas condições que a terra estava”, destaca Jonas. Além disso, a criação solta dos animais configurava em risco para as famílias. “Na época, a gente conseguiu, com muito esforço, plantar arroz, feijão e banana, e o boi e o búfalo avançava nas nossas roças e comiam. Ficava difícil começar o plantio tudo de novo”, relata Luzinete.
A criação dos búfalos apenas deu sequência aos demais ciclos de exploração do meio ambiente por fazendeiros ou empresários. Antes disso, teve os ciclos de exploração da madeira, da palmito-jussara, dos monocultivos, da pecuária. Todos eles, relatam Jonas, contribuíram para um processo de expulsão dos territórios das comunidades caiçaras, dos posseiros e pequenos agricultores que não tinham a documentação da área que residiam há décadas. “Foi gerando uma tensão crescente. E muitas das famílias abandonaram as comunidades e foram para periferia das cidades. Sem acesso aos territórios e com precarização das condições de vida, as famílias começaram a denunciar o processo de degradação ambiental”, resgata Jonas.
Foi neste momento, e inspirado pela crescente pela movimentação em defesa de métodos de cultivos “mais limpos”, como a agroecologia, as famílias optaram pela implementação de um modelo de cultivo não tradicional. A Jornada de Agroecologia do Paraná, surgida junto com a comunidade, fortaleceu esforços internos para resgate de sementes e de conhecimento tradicional, pelo não uso de agrotóxicos e manejo mais cuidadoso da terra.
Uma memória da adolescência também esteve presente na defesa da agroecologia por Luzinete. “Há uns trinta anos tive uma experiência com veneno [agrotóxico] que nunca saiu da cabeça. Na mesma semana que passei veneno na bananeira para matar as pragas, quando fui ver se elas tinham morrido a bananeira tinha todos os sinais de que tinha levado uma facada, a água escorria dela, foi horrível”, recorda. Dessa vez então, no novo projeto de cultivo e uso da terra tinha que ser diferente. “Como algumas pessoas que vieram para a área tinham a prática de uso de veneno a gente teve que fazer informes e orientação cotidianas. A gente sempre colocava que naquela área teria que ser diferente – que seria uma área para olhos do mundo, para pensar o cuidado e na saúde da vida e meio ambiente”, rememora ela.
“Nosso ingá tem muita importância”
Para recuperar as espécies nativas perdidas pela degradação ambiental, o reflorestamento da área com a planta ingá foi fundamental, recorda a comunidade. A planta gera bastante nitrogênio e material orgânico essencial para recuperação do solo, além de criar um “lençol e folhas” propício para que as sementes germinem. “Nosso ingá tem muita importância”.
Espécies como a palmeira-juçara, o araçá, a grumixama, os ipês e o guarapuruvu foram recuperadas e estão fortemente presentes na área.
Com a recuperação da mata ciliar o Rio Pequeno, que sofreu desvio de curso das águas no período anterior à ocupação da área, retornou às margens originais. Em fotos aéreas e pesquisas universitárias, é possível perceber o estágio de recuperação da Floresta Atlântica e da Floresta Ombrófila Densa, aliada com alta produtividade de alimentos orgânicos e adaptados à biodiversidade regional.
Além da recuperação ambiental, a comunidade se destaca pela produção de alimentos agroecológicos. Cerca de 90% da produção da cooperativa local serve de alimentação às crianças das escolas estaduais de quatro municípios da região (Guaratuba, Morretes, Antonina e Pontal do Sul), através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A cada semana são enviados para a rede estadual 1.080 quilos de tubérculos, 1.545 quilogramas de frutas, 390 quilogramas de hortaliças e 45 quilogramas de temperos, além de produtos processados na microagroindústria familiar. As e os agricultores participam de feiras da região e comercializam cestas de produtos a moradores locais. Em razão dessas entregas – que também extrapolam os limites da comunidade -, em 2017 o Lutzenberger recebeu o Prêmio Juliana Santilli de Agrobiodiversidade.
Para Baggio a história recente da Comunidade José Lutzemberger revê dois projetos em disputa na agricultura brasileira. “De um lado, o proprietário que tenta despejar com violência aqueles que estão na área há muito tempo, destruição da Mata Atlântica, retirada da madeira, a introdução do plantio ilegal da braquiária para alimentar os búfalos e desvio do leito do rio”, aponta. De outro lado, aponta ele, um outro modelo econômico agrícola baseado na produção de alimentos saudáveis e no cuidado da biodiversidade existente na terra e na natureza.
“A experiência da Comunidade Agroflorestal tem uma importância estratégica. Ainda que de pequena escala, a comunidade revela seu vigor e potência de que é possível organizar uma agricultura que supere a dinâmica violenta e destrutiva do agronegócio”, conclui.
*Editado por Fernanda Alcântara