Solidariedade Sem Terra
Sim, existe fome em Curitiba. Mas existe quem seja solidário
Por Juliana Barbosa
Do Plural Curitiba
Mais um dia de Marmitas da Terra. Ainda de madrugada, às 4h, começa o preparo do arroz para ser servido quentinho no almoço. Às 8h, voluntários chegam à cozinha. Tomamos café e partimos para o preparo: lavar, cortar, cozinhar, montar e distribuir. Esse é o processo, permeado por muita conversa sobre a atual conjuntura do país.
As primeiras marmitas já ficam prontas e logo chegam carros de algumas ocupações urbanas para levar às famílias. Antes dos voluntários almoçarem (comemos o mesmo alimento que é partilhado com as pessoas em situação de vulnerabilidade), levamos as marmitas para as praças Rui Barbosa e Tiradentes, no centro de Curitiba.
Para preparar um almoço bom e digno para aquelas pessoas, aos sábados, vamos até o Assentamento Contestado, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na Lapa (PR). Manejamos a horta, plantamos e colhemos os alimentos agroecológicos para que pelo menos uma vez na semana aquelas pessoas recebam um bom alimento livre dos agrotóxicos. Desde outubro de 2020, já foram colhidas mais de 14 toneladas de alimentos.
Marco histórico
Nesta quarta, 7 de setembro, o projeto Marmitas da Terra chega à marca de 151 mil refeições distribuídas em Curitiba e Região Metropolitana desde abril de 2020, quando iniciou a pandemia. Nesta quarta-feira, também completam-se 200 anos de uma suposta (in)dependência do Brasil – mas “para quem?” Se existem as Marmitas da Terra, é porque o Brasil não é independente para todo mundo, apenas para uma elite privilegiada da população.
Toda quarta, 1.350 refeições são feitas por mão de trabalhadoras(es) que sentem a necessidade de ajudar o próximo. A ação Marmitas da Terra faz parte da campanha nacional de Solidariedade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a quem enfrenta a fome na pandemia. Além dos almoços, o Movimento também já distribuiu mais de 1.000 toneladas (1 milhão de quilos) de alimentos em todo o Paraná desde o início da pandemia de Covid-19.
São 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (publicado em junho de 2022). E é uma experiência única conhecer os rostos que estão por trás desses números.
Em uma dessas quartas-feiras, me deparei com uma menina de aparência de 5 anos, com os olhos lacrimejando, cabelo bagunçado, em seu rosto estampada a fome. Ela estava com sua mãe e irmãos no coração da capital paranaense, praça Rui Barbosa, onde muitas pessoas, carros e ônibus passam, porém se torna um ambiente invisível perante a sociedade.
Filas só aumentam
Diversas pessoas estavam na fila: adultos, idosos e crianças esperando por uma marmita, o que talvez seria sua única refeição saudável no dia. A movimentação começa, pombos rodeiam a praça aguardando migalhas caírem ao chão. Frases ditas por quem está na fila soam no ar: “chegaram as marmitas”, “mulheres e crianças primeiro”.
Ver aquela situação me abala, não temos o poder de decidir quem come e quem não come; quem está decidindo isso é o governo que colocou o povo na miséria. Distribuímos as refeições preparadas com amor e carinho, seguimos nosso projeto político de terra para quem trabalha e comida para quem tem fome, mas a quantidade de pessoas nas filas aumenta a cada semana.
Os olhares de carinho e agradecimento nos motivam a continuar nosso trabalho. Sim, é por amor, mas ainda mais nosso projeto político de alimentação saudável. “Chama bastante atenção. Os olhos olham, o estômago come e o organismo inteiro se alimenta pela intenção de preparar esse alimento com tanto carinho e coisas nutritivas”, disse Lúcia Paiva, trabalhadora que pegou uma marmita.
O alimento traz esperança para aqueles que partilham e aqueles que recebem, a fé de um país justo e igualitário, onde crianças não estejam na rua e sim em escolas. Então o projeto Marmitas da Terra traz também essa esperança de um coletivo que acredita que pode construir um Brasil melhor.
Como diria Paulo Freire, patrono da educação brasileira: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
Este texto é parte do projeto Periferias Plurais, que convida seis jovens de Curitiba e região a falar sobre suas vidas e suas comunidades.