Exposição

Retomadas: o debate continua, arte, memória e direitos na Unicamp

Seminário foi feito com as curadoras do Núcleo em exposição no MASP, Sandra Benites e Clarissa Diniz, além de contar com a presença de representantes do MST e pesquisadoras
Foto Marília Fonseca – MST-SP

Por Lays Furtado
Da Página do MST

Na tarde do último dia 7 de outubro, a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) sediou o seminário Retomadas: o debate, arte, memória e direitos. O evento ocorreu em parceria com a Assessoria de Cultura da Diretoria de Direitos Humanos da Unicamp, com o objetivo de debater as interações entre arte, memória e direitos humanos partindo dos processos acumulados pelo Núcleo Retomadas, em exposição no MASP até o final de outubro,  integrando a mostra Histórias Brasileiras.

O debate foi mediado pelo docente da Unicamp, Dr. Gilberto Alexandre Sobrinho; contando com a participação das curadoras do Núcleo Retomadas, Sandra Benites e Clarissa Diniz; além da presença de Jullyana de Souza e Lucimeire Barreto Rocha do Coletivo de Arquivo e Memória do MST; e Sônia Fardin, pesquisadora do Acervo João Zinclar.

A iniciativa em analisar a trajetória do Núcleo Retomadas nasceu a partir do episódio ocorrido em maio deste ano, quando o MASP (Museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand) vetou obras Edgar Kanako Xakriabá, do Acervo João Zinclar e do Coletivo de Arquivo e Memória do MST, integrantes do Núcleo.

A medida foi derrubada após o questionamento das curadoras do Núcleo frente a imposição do MASP e que impulsionou não só a realização da exposição, mas uma série de outras formas organizadas de resistência frente a tal episódio, instigando debates urgentes, como o que foi pautado durante o seminário Retomadas: o debate, arte, memória e direitos.

O seminário propiciou uma análise coletiva, assumindo o calor das discussões que versaram  sobre o papel da arte e da cultura nas lutas sociais e a importância da salvaguarda do legado e memória da história da classe trabalhadora, povos indígenas e sua diversidade, implodindo também as cercas das instituições, museus, entre outros espaços de poder que todavia serviram a elite brasileira.

Reunidas no Auditório Raízes do complexo da Unicamp, as participantes da mesa iniciaram o seminário com um pequeno resumo feito pelas curadoras fora a trajetória do Núcleo  Retomadas, que reúne documentos e obras que refletem acerca do processo de luta por territórios, sejam eles espaços, corpos, línguas, imagens acalorando relações entre representações e presença.

Vetos e a retomada do latifúndio das artes

Clarissa Diniz explica que todo esse processo político e pedagógico que aconteceu ao longo do Núcleo, gerou o aprofundamento do debate do papel da arte e sobre o engajamento que se trás com ela. Com isso, as reivindicações feitas pelas curadas para retomar o Retomadas – após os vetos feitos pelo museu, que voltaram atrás da decisão –  implicou uma série de garantias que foram cumpridas parcialmente pela instituição.

Entre as reivindicações aceitas pelo Masp, se incluíram as imagens vetadas do acervo selecionado pelo Núcleo, a distribuição gratuita de cartazes com as imagens do Retomadas, gratuidade de acesso à exposição às quintas-feiras enquanto houver a mostra, e a retirada da cláusula dos direitos patrimoniais do museu sobre as obras, assumindo a partir de então  propriedade copyleft.

Apesar dos pedidos acatados pela instituição, a reivindicação não aceita pelo museu foi sobre a realização de uma publicação acerca dos processos que ocorreram em resistência aos vetos, e os desdobramentos deste debate no campo das artes. Como alternativa, as curadoras emplacaram uma campanha de financiamento coletivo, aberta via site catarse e disponível para doações até o próximo dia 9 de novembro. Tendo alcançado a meta de contribuições, a publicação será feita pela Expressão Popular, editora vinculada ao MST.

Questionada sobre a relação entre os vetos e as reflexões sobre o trabalho da curadoria nas artes – em contraponto ao que se vislumbra enquanto um trabalho glamouroso na esfera artística – Clarissa afirmou que “a institucionalidade da arte é violência”. E que diante das interdições impostas pelo Masp, “recuar era não perpetuar essa violência”, declarou, mencionando também que o papel da curadoria é também “atribuição de sentido do que a arte pode fazer, arte como território, arte enquanto alianças de sentidos coletivos, sociais”.

Foto: Marília Fonseca – MST-SP

Para a curadora Sandra Benites, o que esteve em jogo sobre o retrato das Histórias Brasileiras, tema central da exposição da qual integra o Núcleo Retomadas – na mostra do Masp sobre o marco dos 200 anos da Independência do Brasil – “não é só a memória do passado, mas pro futuro. A sociedade Juruá [branca], não indígena não entende isso, principalmente as instituições”.

Sobre a resistência aos vetos, Sandra menciona que “foi preciso ter coragem, foi muito difícil pra mim, eu fiquei deprimida, mas eu tive que me reerguer de novo”. Afirmando que entrou como curadora pela mesma razão em que se rejeitou a aceitar os vetos do Masp, “A gente vem combatendo esse silenciamento, enquanto corpo racializado, como mulher, indígena. Me vi enquanto uma mulher silenciada e isso levou a gente a tomar coragem, não sabíamos que isso iria dar repercussão. Como eu já venho de luta, eu carrego esse corpo coletivo, e fui pela maioria, enquanto indigena”.

Para Benites seria uma traição aceitar a retirada das obras da mostra, que romperia o sentido coletivo entre representatividade e presença. Como a primeira curadora indígena do museu, menciona que “a ideia de inserir ou de inclusão não é apenas trazer pessoas para esse espaço pra dizer que tá ocupando. Na verdade, quando a gente ocupa esses espaços a gente modifica eles também”.

E reforça o sentido sobre a importância dessa memória e discutir a complexidade desses corpos que a integram, “é importante a gente entender a diversidade”. Destacando também a relevância do entendimento coletivo “do que é arte e como moldar ela para as próximas gerações”.

Acervos populares, herança da história da classe trabalhadora

As imagens vetadas da exposição Histórias Brasileiras do Masp, em sua grande parte pertencem a acervos populares, entre eles o Acervo do MST e Acervo João Zinclar, com fotos que o fotógrafo João Zinclar realizou em vivências com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Além da foto de Edgar Kanaykõ, sobre o retrato de uma mulher indígena em protesto, segurando um cartaz onde se lê o pedido de “Justiça Histórica”.

Foto de Edgar Kanaykõ, uma das que chegou a ser vetada pelo Masp

As pesquisadoras de acervos presentes na mesa, e que contribuíram com a seleção de artigos que foram vetados pelo museu, ressaltaram a importância de tais acervos populares para a preservação da história da classe trabalhadora. Bem como ressaltaram as dificuldades de se empenhar tal tarefa diante de tantos desafios para que se mantenha a longo prazo, a preservação dessas memórias.

Lucimeire Barreto Rocha, que é historiadora e integra o Coletivo de Arquivo e Memória do MST, contou sobre sua trajetória no Movimento que iniciou desde sua infância, enquanto “cria do MST”, e que passou a contribuir com a salvaguarda da memória da organização a partir de 2018, aliando esforços em conjunto com o Coletivo que foi criado a partir de 2014, e que segue com um compromisso histórico de reunir, catalogar e preservar a memória de quase quatro décadas do Movimento.

A militante e pesquisadora Lucimeire, também conhecida como Meire, reafirmou que o MST tem “o objetivo a luta pela terra, mas não só”, e que o Movimento se dedica também aos cuidados de sua memória e cultura. Assim como tece frentes empenhadas em seus territórios pela educação, saúde, comunicação, produção, comunicação, entre outras, “não é só ocupação”, contou durante sua exposição na mesa.

Meire também ressaltou a importância do Movimento ocupar os espaços das artes que todavia foram vitrines da elite brasileira, como aconteceu no Masp. E lembrou também da ocupação artística feita este ano pelo Coletivo de Cultura do MST no Theatro Municipal de São Paulo, com participação na Ópera Café – de Felipe Senna, a obra parte de um libreto de Mário de Andrade adaptado por Sérgio de Carvalho.

Outra pesquisadora, historiadora e militante do MST presente na mesa, Jullyana de Souza, esteve envolvida desde o início do Coletivo de Arquivo e Memória do Movimento, explicou as formas organizativas pelas quais o Coletivo se debruça, e dimensiona os desafios dessa tarefa que contempla os cuidados de um acervo privado de pelos menos 20 mil fotografias, 500 caixas de documentos e mais de 600 cartazes – fora os acervos descentralizados que existem em várias partes do país onde os Sem Terra estão presentes.

Jullyana explica que esta frente da memória do Movimento se inscreve também na dimensão dos processos políticos da salvaguarda da história da classe trabalhadora brasileira, e do MST em si que é um dos maiores movimentos sociais de trabalhadores/as organizados não só no Brasil, mas no mundo.

Foto Marília Fonseca – MST-SP

“O Movimento sempre teve a consciência histórica da importância de manter essa memória, que retoma outras lutas, é um debate político e material que a gente tem que fazer […] principalmente porque essas organizações estão sendo atacadas” – sinaliza Souza, frente à vários desafios, recurso, estrutura, identificação de fundo documental, entre outros.

“Queremos fazer uma rede de acervos populares, de coletivos, de sindicatos e buscar alternativas para nos dar condições de preservar nossa história, a gente precisa preservar a nossa história” – anunciou Jullyana, considerando que há um projeto em curso de “apagar a memória e história do povo brasileiro e classe trabalhadora de modo geral”. Inclusive citando que os lamentáveis episódios de destruição desses acervos, como o fogo no Museu Nacional no Rio de Janeiro e na Cinemateca em São Paulo, como reflexos disso.

Sônia Fardin, também historiadora e pesquisadora do Acervo João Zinclar, concordou com a necessidade dos coletivos dedicados à salvaguarda da história da classe trabalhadora encontrarem soluções em conjunto sobre a preservação destas histórias, apresentando o exemplo do portal Baobáxia. E lembrou que o trabalho do próprio João Zinclar – enquanto fotógrafo dedicado aos movimentos sociais – já trazia essa preocupação sobre que “imagens temos que construir para disputar politicamente a sociedade e disputar a revolução”.

*Editado por Fernanda Alcântara